Na secção de Ecce Homo dedicada a Assim Falava Zaratustra, Nietzsche identifica a atitude integral de afirmação de Zaratustra com o conceito de Dionísio. Zaratustra é «o mesmo o eterno sim», que afirma e assume plenamente o eterno retorno. Mas no livro Assim falava Zaratustra, a apresentação da doutrina do eterno retorno é feita passo a passo. Por exemplo, começamos no capítulo «Da Redenção», onde não nomeia o eterno retorno, mas o insinua. Neste capítulo confrontam-se duas conceções de temporalidade, a que quer libertar-se do tempo indo além, para alcançar uma essência imperecível e a da vontade, que «quer retroceder». Aparece o corcunda (máscara do erudito desgostoso com o peso da história e a sua erudição), que percebe que não é a eles que Zaratustra não confessa que o tempo regressará, mas que ainda não se atreve a dizer a si mesmo.

O Eterno Retorno (O Ouroboros). Domínio Público

No discurso «Da Visão e do Enigma» de Zaratustra, encontramos a famosa abordagem da doutrina do eterno retorno. Zaratustra está num navio que o leva de volta para casa, para a caverna, na companhia de marinheiros que admira, já que têm um espírito aventureiro, que preferem o perigo à segurança. Conta-lhes, depois de alguns dias de silêncio, uma visão que teve, na qual caminhava por um caminho ascendente nas montanhas e um demónio, meio anão, meio toupeira, o atraía para o abismo. Pode simbolizar a parte da sua própria psique que o impede avançar e crescer, pois disse que o que derramou foram «gotas de chumbo no ouvido», que são as vozes que zombam dos nossos esforços. O anão também representa o espírito do peso e encarna a moral gregária, a virtude enegrecida, e a interpreta de acordo com a tradição pessimista de Eclesiastes: «nada de novo sob o sol».

Zaratustra reúne a coragem necessária para a resposta, porque o conhecimento já o tem. Na verdade, o confronto entre os dois não é uma dialética racional, mas uma luta de forças. A vontade prevalece: «Alto, anão!», disse: «Eu! Ou tu! Mas eu sou o mais forte dos dois: tu não conheces o meu pensamento abismal! Esse não podias suportá-lo!».

Zaratustra. Domínio Público

O anão salta para o seu ombro e param diante dum portão onde está escrito «Instante». O caminho e a porta é uma representação do tempo. Pergunta-lhe Zaratustra se acredita que esses caminhos que convergem na Porta (passado e futuro) se contradizem eternamente. E então é o anão que formula o eterno retorno sem considerações: «Toda a verdade é curva, o próprio tempo é um círculo».

Zaratustra segue o diálogo desde essa afirmação:

«Cada uma das coisas que podem correr, não deveriam já ter percorrido naquela rua? Cada uma das coisas que pode acontecer não deveria ter acontecido, ter sido feito, ter acontecido já alguma vez? E se tudo já existiu, o que pensas deste momento? Esse portão também não devia ter existido? E não estão todas as coisas bem amarradas com força, de modo que este instante arrasta atrás de si o que está por vir? (…) Não teremos nós todos já existido? Teremos que retornar eternamente?»

Platão meditando sobre a imortalidade da Alma. Domínio Público

Embora Zaratustra esteja revoltado com as deduções, neste caso usa a argumentação, com a premissa do anão «O tempo é um círculo», e salta para a conclusão «tudo retorna». Neste texto, ignora uma das premissas necessárias para o argumento: «Se o tempo se estende infinitamente, mas há apenas uma quantidade finita de partículas materiais, então todas as possíveis combinações dessas partículas terminam em algum momento, no qual tudo inicia retornar».

O capítulo termina com o pastor sob a luz do luar mais desolada, no meio dos selvagens penhascos, com uma serpente negra pendurada na boca, que deslizou enquanto dormia e que representa precisamente o niilismo. Como ele não consegue tirá-la de lá, a ordem é «morda! arranca-lhe a cabeça!», uma solução pouco racional, mas com um resultado vital:

«Já não é pastor, já não é homem, um transfigurado, iluminado que ri! Nunca antes na terra tinha rido um homem como ele riu!

Ó meus irmãos, ouvi uma gargalhada que não era de homem – e agora me devora uma sede, uma saudade que nunca se apazigua. Minha saudade desse riso me devora: oh, como aguento ainda viver! E como suportaria morrer agora!»

Essa transfiguração do pastor é porque ele encontrou a fórmula para a afirmação da vida, encontrou como converter-se übermensch.

Em «O Convalescente», são os animais que expõem o eterno retorno sem escrúpulos. Na quarta parte do livro, o mais feio dos homens, que representa o sentido histórico, o assassino de Deus, anuncia que vale a pena viver na terra.

A doutrina do eterno retorno pode ser interpretada de forma cosmológica, como uma descrição do cosmos, mas na secção 341 de La gaya ciencia, uma das mais significativas, apega-se à interpretação antropológica, a atitude do ser humano diante do tempo.

Nietzsche, 1862. Domínio Público

Nietzsche não apresenta o eterno retorno como uma doutrina cosmológica, é um recurso retórico, curiosamente da mesma forma que Platão na República fala dos metais nas almas dos homens para alcançar coesão na sociedade. O que busca Nietzsche é a afirmação da vida e deste mundo. Em vez de postular uma vida celestial após a morte, a promessa do cristianismo, um mundo além deste, o que oferece Nietzsche é fazer o  instante eterno, afirmando o momento presente.

Disse Diego Sánchez Meca que: «se o eterno retorno nada mais é do que uma interpretação instrumental, não uma verdade em si, é compatível com uma ideia da história em que nenhuma necessidade superior ao indivíduo ordena o devir o cumprimento de fins universais. A única necessidade que atua na história são os indivíduos, que se comportam necessariamente como vontades (…). O eterno retorno não mais é que uma destas interpretações, com as quais, no entanto, o ser humano poderia superar o niilismo.»

A Niilista, Paul Merwart (1882). Domínio Público

O termo niilismo é geralmente interpretado como uma rejeição a princípios religiosos e morais, uma ausência de qualquer tipo de valores e a crença de que não há um sentido de vida, e muito menos um plano divino. Mas, curiosamente, Nietzsche define o cristianismo como uma religião niilista, porque evitou o desafio de encontrar um sentido na vida terrena e buscava uma ordem transcendente. O niilismo era para Nietzsche o resultado da morte de Deus, causada pela civilização moderna, e devia ser superado. Das definições de niilismo apenas contempla a rejeição de um plano divino e de princípios religiosos, mas não a ausência de uma ética. As ações do ser humano são justificadas nesta vida terrena e presente, aqui existem uns valores, mas não estão em relação a um prémio que se obterá noutra vida, mas em relação com o presente.

A doutrina do eterno retorno é perigosa. Alguém que seja capaz de aceitá-la seria aquele que supera a decadência do homem moderno, seria um übermensch, aquele que supera os valores tradicionais, e não precisa de um céu, de um além desta realidade. É este amor ao destino, paradoxalmente, que nos vence ou nos leva, dependendo de como o olhamos, à decadência. Por outro lado, este homem não acredita, apenas repete. Se tudo retorna, então não há liberdade, tudo está determinado com antecedência. Tudo o que passou voltará em todos os seus detalhes. Poderíamos perguntar: por que o übermensh tem que tomar decisões para superar a condição atual? Em que consiste a sua vontade de poder? Precisamente em que é necessária uma capacidade heroica para aceitar esta ideia.

A doutrina do übermensch desligada do eterno retorno perpetuaria a decadência porque, uma vez criados novos valores, seria necessário poder criar outros novos. E, inversamente, a doutrina do eterno retorno desligada do übermensch seria determinista, mas assim a transformação do homem produz o milagre de aceitar o mistério da vida no seu conjunto, transforma-se numa criança, com a inocência da brincadeira, do amor à vida, como se vê no discurso «Sobre as Três Transformações», talvez o mais famoso do livro Assim Falava Zaratustra. Nele simboliza a tradição e os seus valores como um grande dragão.

Na mitologia europeia, os dragões guardam a entrada de cavernas cheias de ouro, mas, neste caso, o dragão não permite sair da caverna, da civilização decadente com os mandamentos das suas escamas. «Tu deves»: esta é a transformação do camelo em leão, opõe o «eu quero» ao «tu deves». Mas não é suficiente e tem que se transformar em criança, porque a criança, disse Zaratustra, é «inocência e esquecimento, um novo começo, um jogo, uma roda que se move por si mesma, um primeiro movimento, um santo para dizer sim». O leão disse não aos valores decadentes, a criança disse sim, é uma prefiguração da vontade de poder que se desenvolve em discursos posteriores, «o retirado do mundo conquista agora o seu mundo». E aparece «a roda que se move por si mesma» como um eterno retorno.

Como pode a vontade de poder agir no passado? Disse Zaratustra no discurso «Da Redenção» redimir o passado significa transformar tudo o que «era» num «assim o quis». Pareceria que a vontade é impotente para trás, prisioneira do tempo que flui do futuro para o passado, o que é inexorável, mas o que faz é uma afirmação positiva, não uma resignação. Esse é o amor fati, o amor pelo destino que integra o eterno retorno.

Sara Ortiz Rous
Publicado na Revista Esfinge em 1 de dezembro de 2022

Bibliografia:

CAMPIONI, Giuliano (2014): «Gaya ciência» y «gay saber» en la filosofía de Nietzsche, en Guía Comares de Nietzsche, ed. de Jesús Conill-Sancho y Diego Sánchez Meca. Granada, Editorial Comares, 71-91

D’IORI, Paolo (2006): El eterno retorno: génesis e interpretación; Cuadernos Nietzsche, CNRS, París, págs. 157-207.

NIETZSCHE, Friedrich (2011): Así habló Zaratustra. Edición, traducción y notas de Andrés Sánchez Pascual, Madrid, Alianza.

NIETZSCHE, Friedrich (2016): Ecce Homo. Edición, traducción y notas de Manuel Barrios Casares, Madrid, Tecnos.

NIETZSCHE, Friedrich (2016): La gaya ciencia. Edición, traducción y notas de Juan Luis Vermal, Madrid, Tecnos.

SÁNCHEZ MECA, Diego (2018): El itinerario intelectual de Nietzsche, Madrid, Tecnos.

Imagem de destaque: Zaratustra. Domínio Público