Na minha última viagem a Inglaterra, tive a fortuna de visitar a antiga catedral de Winchester. Milenar centro de peregrinação e religiosidade, um dos vórtices mágicos do planeta, o lugar em que no século XI se elevou a atual catedral gótica sobre alicerces normandos que ainda são visíveis no cruzeiro, foi assento de santuários mergulhados no mais remoto passado, anterior ainda aos romanos.
Uma característica excecional desta grande obra é que, por baixo dela, corre uma via de água do rio Avon, o que a converte numa espécie de nau de pedra sobre as correntes das águas, com todo o conteúdo simbólico e esotérico que isso implica. Desde outro ponto de vista, é como a mística ponte que, através das geladas águas subterrâneas, permite a união de uma e outra margem.
Nos seus subsolos, ainda brotam três fontes e a sua especial construção permite-lhe ter uma acústica formidável através de toda a sua nave, como podemos comprovar ao escutar o seu famoso órgão, e mais ainda no curioso costume de deixar os sinos a soar durante mais de uma hora seguida durante toda a tarde. Como os sinos foram programados para que soassem à maneira de arpejos, parecem mãos de anjos que tangem colossais harpas, mais além das altas abóbodas. O efeito é dificilmente transferível: para quem não o tenha vivido, é quase impossível imaginá-lo.
Mas o meu artigo não se refere à catedral em si, mas a um humilde homem, William Walker, mergulhador profissional, nascido em 1864.
As águas, durante quase mil anos, tinham carcomido os alicerces da catedral e, no início do século XX, esta parecia condenada à destruição, pois grandes gretas se abriam nas suas paredes e toda essa maravilha gótica afundava–se sobre a sua base. Os meios técnicos da época e a disposição das paredes submersas não permitiam a injeção de materiais sustentadores e os engenheiros encontravam-se diante de um problema aparentemente sem solução. É então que surge a figura heroica de William: ele oferece-se para descer através de um pequeno orifício e carregar nos seus braços, um a um, os sacos de cimento necessários para fortalecer as estruturas submersas. Mas a metragem cúbica que os engenheiros calculam ser a necessária para sustentar o enorme edifício escapa às possibilidades lógicas de uma ação meramente manual e menos ainda de uma só pessoa. O mergulhador não se retrai e com o seu pesado escafandro arejado à mão pelos seus companheiros no porão da catedral, mergulha nas geladas águas.
Decorre o ano de 1906. Dia após dia, sem descanso, o mergulhador baixa e sobe uma escada transportando sacos, blocos e vigas nos seus braços.
Não mede o tamanho do seu trabalho; entrega-se a ele totalmente, não lhe importando a sua saúde nem o que lhe pagam por isso. A sua obra é de autêntico amor. Todos duvidam que possa realizar mais do que uma pequena parte… um ser humano não pode suportar esse trabalho quotidiano em tais condições. Mas o mergulhador já não é um ser humano, é a encarnação da vontade e da constância. Trabalha até 1912 e nesse espaço de tempo calcula-se que baixou 25.800 sacos de cimento, 114 900 blocos de concreto e 900 000 tijolos. Os seus braços levaram em seis anos mais de 500 toneladas.
Na catedral, eleva-se a sua estátua em bronze, mostrando as suas mãos estendidas, ferramentas únicas na sua titânica obra. Hoje, uma placa reza: “Catedral de Winchester, construída para a glória de Deus; 1087-1093. Preservada do perigo pela graça de Deus; 1905-1912”.
Tiremos o exemplo de William Walker. Ele trabalhou e deixou a sua vida no seu humilde mas transcendental esforço para que outros pudessem continuar a orar sob o teto primoroso de nervuras e a escutar o coro de sinos. Desceu aos gélidos abismos para que pessoas que não chegou a conhecer pudessem gozar de tanta beleza.
Durante séculos, essa joia mística albergará milhares e milhares de crentes em Deus. Como a antiga catedral, o nosso mundo atual cai sobre os seus alicerces ao ser investida pelas ondas da Idade de Aquário. Façamos surgir a nossa vocação de mergulhadores; mergulhemos nas geladas ondas com os braços carregados com as firmes rochas das nossas obras e, ali, na obscuridade, juntemo-las umas com as outras para sustentar o mundo. Rezemos com as nossas mãos no quotidiano labor. Já virão outros para gozar das belezas de um mundo embalado por rítmicos sinos.
Jorge Ángel Livraga
Extraído do livro Artigos Jornalísticos
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Imagem de destaque: Catedral de Winchester. Creative Commons
Lindo o relato que Jorge Livraga faz da tremenda tarefa de um desconhecido mergulhador que não permitiu que o andar do tempo fizesse ruir a obra Divina.