Quando chegamos a este mundo, esquecemos tanto as maravilhosas como as tenebrosas memórias vividas em outras vidas. Contudo, não esquecemos a experiência, o ensinamento. É esse ensinamento que se torna instinto ou intuição, dependendo do que estejamos a falar. Mas o que significa encarnar e voltar aqui? O que significa ter de voltar a conhecer o mundo maravilhoso que desabrocha perante os nossos olhos, sem que o possamos totalmente influenciar ou impedir? O que significa voltar para esta realidade, virtual ou não, em que existem tantos desafios, tantas provas, tanta dor? De onde vimos? Onde estamos? Para onde caminhamos? Que mais não é a vida que perguntas e respostas?
O que fazer quando algo no interior nos chama e não sabemos o que fazer com isso? Que fazer quando tudo parece desmoronar, ficando apenas este veículo e os outros a relembrar que estamos “vivos”? Que fazer quando já nem a nossa própria vida tem um sentido ou quando simplesmente não o queremos encontrar mais? Que memória é esta que nos atrai para a desistência? Mas que memória é aquela que nos diz: “Luta! Tu és mais do que isto!”? Na verdade, tudo é prova e tudo é ensinamento, queiramos nós ver desta forma tudo e todos.
Quando a biologia se une de uma forma tão perfeita que consegue gerar um pequeno embrião, este é um verdadeiro milagre. Quantas vezes não teria tentado a natureza criar um ser e percebido que não era o momento, que não era naquela forma, que não era para ser? Mas, então, por que teimamos em querer tudo à nossa maneira?
Estas são perguntas que pelo uma vez na vida devemos fazer. Não somos apenas pó, nem apenas barro, somos também luz. A luz que nos caracteriza é apenas um raio do Sol brilhante do qual tomamos parte, mesmo que de forma inconsciente. Esse raio é o que nos vai orientando o caminho ao longo do percurso neste espaço, a que chamamos vida. Mas que vida é esta? Como é que a vivemos? Decidimos vivê-la ou deixamos que seja a vida a dizer como viver?

De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? Uma das pinturas mais famosas do pós-impressionista Paul Gauguin. Domínio Público

O ser humano é um ser sociável, sendo a convivência a maior prova que podemos encontrar na nossa limitada vida, dentro das nossas (i)limitadas existências. Não será isto um contrassenso? Como é que podemos ser um ser tendencialmente sociável, mas o nosso maior desafio ser precisamente a convivência? Jorge Angel Livraga diz-nos que, na realidade, a convivência é a maior prova do discipulado (do discípulo). Quem nunca experienciou a sua dificuldade? Algures na nossa vida reside o nosso calcanhar de Aquiles da convivência, seja na família, na cara-metade, nos amigos, nos colegas, nos conhecidos ou naqueles muito pouco conhecidos. Podemos valorizar mais ou menos; podemos estar mais despertos para nos sentirmos melindrados com esse facto ou não, mas todos vamos passando por essa prova. 

Os grandes mestres eram seres que se entregavam às comunidades às quais se dedicavam, mas que necessitavam do seu tempo de silêncio e de discernimento. Na história da Humanidade, encontramos diversos exemplos de homens e mulheres que tiveram a capacidade de captar as mensagens divinas como se estivessem em amena conversação com Deus. Como tal é possível? É importante trabalhar o discernimento, que não é mais do que a capacidade de conhecer o Coração, sendo o Caminho do Coração o caminho privilegiado no discipulado nos mistérios, como nos indica a transcrição de Helena Petrovna Blavatsky, na Voz do Silêncio, mas que também nos é apresentado em menor ou maior grau, de forma direta ou indireta por tantos Homens Sábios, sendo um deles Santo Inácio de Loyola. 

Imagem que ilustra Sidarta Gautama passando as suas palavras aos seus seguidores, após ter atingido o Nirvana, à sombra de uma figueira. Creative Commons

Seremos nós incapazes de alcançar um estado de Alma puro? Será apenas para uma determinada “elite”? Sim, são uma elite, mas, na verdade, para que hoje possamos testemunhar os Sábios e os seus ensinamentos, eles tiveram de trilhar o seu próprio caminho, sujeitando-se à Lei do Karma e à Lei do Dharma. Quantos de nós não gostaríamos de saltar as partes dolorosas e complexas, para podermos penetrar diretamente na Luz Perpétua, no Nirvana, no Paraíso, ou simplesmente como quisermos chamar? Provavelmente, todos. Contudo, o consciente, de que o importante é o caminho que é trilhado, a forma como procuramos ser e viver, percebe que cada vida não é mais que um passo no desenvolvimento individual do raio que somos. É importante percebermos que para seguirmos caminho, é preciso preparar e planear. Como? Nada mais simples e nada mais complexo: aprender a ouvir, ver, sentir, cheirar e saborear. Somos prova viva de que todos os desafios que nos são colocados são superáveis por nós e têm um ensinamento para nós e para quem connosco enfrenta a questão, queiramos nós ter a abertura para apreender os ensinamentos da Vida. Mas que significam estes sentidos, neste caminho? Claro está que sabemos que cada corpo tem a sua subdivisão em sete, por usarmos essa forma esquemática, mas podemos realmente ver com um pouco mais de lucidez como se espelham os nossos cinco sentidos na nossa Vida Espiritual. 

Anjos guiando as almas no pós-vida. Domínio Público

Podemos transpor tudo aquilo que é básico, tudo aquilo que faz parte dos nossos instintos para aquilo que é mais elevado, para que aprendamos a Intuição. A Intuição não é mais do que a voz da nossa Alma que nos indica o caminho, aquilo que é melhor para nós. No entanto, existe a necessidade de já existir um caminho trilhado, em que se controlam já os corpos inferiores, ou pelo menos já há um mínimo de conhecimento acerca dos mesmos. Quando ainda não está bem descoberto, raramente temos laivos de Intuição, mas vivemos muito por instinto, em especial o instinto de sobrevivência. Acaso, seria assim, e é assim, tanto para a sobrevivência, física, vital, emocional e mental. Todos temos já algumas defesas para estes corpos, que nos permitem perceber se existe mesmo um perigo à espreita ou se somos levados por esta vida corrente corrida, sendo que alguns profissionais de saúde falam mesmo do stresse como sendo uma arma instintiva, que nos permite estar sempre alerta, só que, estando em constante ativação, cria problemas crónicos, que podem levar a doenças e distúrbios nos diferentes corpos, porque fomos programados para ter estes instintos pontualmente, mas no mundo atual temos que estar sempre alerta, sempre com solicitações, sempre à espreita de oportunidades, sempre, sempre em busca de algo e à defesa de outro tanto. Contudo, não é possível vivermos neste ambiente competitivo, neste ambiente de rivalidade uns com os outros, connosco próprios e até mesmo com a natureza, durante muito tempo, sem que tenhamos algo a perder. Parece que estamos a falar de viver apenas o stresse do presente, mas o que acontece é que vivemos em comparação com o passado, o que podemos ou devemos fazer melhor, e como posso fazer mais? E como ultrapassar determinada situação? Entramos na nostalgia e começamos a viver no passado, sem que tenhamos tomado uma decisão consciente, podendo traduzir-se em depressão, falta de vitalidade, nostalgia e perda de força física. Como dizíamos, a fazer comparações e há poucas coisas menos saudáveis do que as comparações constantes que podemos fazer, por possivelmente causar inveja, angústia, dor, tristeza, frustração, em maior grau do que qualquer sentimento positivo que gere. Estes sentimentos acentuam ainda mais as discrepâncias e a nossa forma de ver como seres imperfeitos. Contudo, o stresse de que falávamos também nos transporta para o futuro, gerando a ansiedade, que também se sente em todos os corpos e que se pode traduzir, por exemplo como tremores, dificuldade em respirar, insónias e insensibilidade, o estar-se alheado a tudo, exceto à questão nos transporta. 

Uma pessoa diagnosticada com panfobia, do livro de Alexander Morison de 1843, The Physiognomy of Mental Diseases. Creative Commons

Como podemos realmente viver, conhecendo estas formas de nos exprimirmos com o coração no lugar certo? Qual é esse lugar? Podemos afirmar categoricamente que nada no exterior é bom? Ou que tudo o que vem de dentro é puro? Percamos um pouco de tempo a perceber a relação entre a filosofia platónica e a aristotélica, como comparação. Platão, mestre de Aristóteles, fez chegar até nós a imensidão dos Arquétipos, que se expressam na forma como vemos os deuses, aliciando-nos a olhar para o Alto, para o Belo, para o Justo, para o Verdadeiro e para o Bom, como Ideais a alcançar. Aristóteles ensina-nos a olhar para nós na nossa circunstância, na nossa vida de todos os dias, a percecionarmos os Valores de Platão na terra que nos habita e que habitamos. Eles não estão a contradizer-se, estão a complementar-se. Qual o Ideal que devemos seguir? Onde deveremos trabalhar? Aristóteles responde-nos, indicando que a Felicidade é um estado que se vai conquistando atrás de cada virtude posta em prática, até se atingirem os Arquétipos, os ditos Dons Divinos. Que Ideais perseguimos? Deve ser esta a questão diária que fazemos de manhã. Todo o momento diário de um dia, passamos a redundância, culmina, ou assim deveria acontecer, na busca pela Beleza, pela Justiça, pela Verdade e pela Bondade, culminando tudo no Amor, que nos transcende a nossa compreensão humana e que nos impele a seguir em frente e a dar um salto de fé, em direção ao desconhecido que somos de nós mesmos. Os Ideais que nos devem guiar são estes. Se os aspirantes a filósofos ou a discípulos aspirarem aos ideais intermédios, algum dia alcançarão a sua Perfeição? Os Sábios procuraram a mediocridade ou o médio ou aspiraram o Alto? Temos a tendência, por medo, a achar que os Ideais deveriam ser rebaixados a patamares mais baixos, que deveríamos facilitar a nossa vida e a dos outros, com menos exigência, com menos perspicácia e com mais benevolência. Será este o caminho? Pode não ser, e não será, nesta vida que atingiremos a Perfeição, mas devemos sempre relembrar que a Meta não é o fim, senão o próprio caminho: o aprender a ouvir a melodiosa voz da nossa Alma, que nos segreda aquilo que temos medo de aceitar, seja por ser grande demais, seja por nos ofuscar, seja por sabermos que mais dia, menos dia teremos de deixar de lado os nossos apetites e começar a abraçar os nossos deveres, por serem aquilo que a Alma quer; o cheirar os odores doces das flores de cada conquista por cada momento em que nos conquistámos por cada virtude colocada em prática, porque o Bem deixa sempre um rasto que permanece, mesmo quando parece que não se toca nada, nem ninguém, mas a verdade é que uma ação maliciosa perdura menos em distância do que uma bondosa, e podemos observar isso na natureza: como ela recupera após uma tempestade, criando beleza e rejuvenescendo, reinventando-se, ensinando-nos a dar sem medida e sem desejar nada; aprender a ter uma visão ampla e em perspetiva acerca de tudo, que nunca conseguimos ter a real noção da importância e da mensagem contida em cada momento, senão a uma determinada distância, e este é um dom, que a Vida, sábia, nos vai tentando ensinar que temos de aprender a relativizar e a ver a mensagem escondida nas entrelinhas da vida, é aí que reside a verdade e não nos pequenos (grandes ou pequenos) acontecimentos da vida; aprender a sentir o doce toque da Alma, a sua mão a indicar o caminho, na maior parte das vezes mais longo, mais sinuoso, mas também mais virtuoso, mais frutuoso e aquele que é para cada um de nós; poderíamos até pensar que a vida é a madrasta má dos contos de fadas, mas na realidade a vida é apenas a expressão da Alma que somos, que nos conhece e sabe o que é incrivelmente certo para nós, deixemo-nos, pois, guiar por ela; por fim, temos de aprender a saborear todos os presentes que a vida nos dá e ainda mais aqueles que nos parecem envenenados, porque, na verdade, são esses que trazem consigo os presentes mais dourados, mais divinos e belos que poderemos algum dia almejar. O culminar de todos estes sentidos da Alma é a mais infinita gratidão pela existência, nossa, dos outros e do Universo. 

Alma levada ao céu por dois anjos, William-Adolphe Bouguereau. Domínio Público

A gratidão é a chave que abre todas as portas, nomeadamente a porta do discipulado. Se considerarmos as características que um discípulo deve ter, como poderemos alguma duvidar de que ele tem de ser grato? Se compete ao discípulo trazer consigo a devoção, a investigação, o serviço, a coragem, a humildade, a entrega, a inteligência, a cordura, a paciência, e outras mais poderiam ser enumeradas, como é que elas se relacionam com a gratidão?

A gratidão é a promotora da humildade, do nada esperar, mas tudo aceitar como Dom e como Ensinamento, sabendo que nada depende de si próprio, exceto os seus pensamentos, sentimentos e as suas ações. A humildade leva-nos a uma entrega mais honesta e altruísta pelo Bem da Humanidade, por este caminho que fazemos juntos, ensinando-nos que é precisamente no serviço, na investigação e na devoção que nos encontramos a nós próprios no emaranhado de máscaras e fachadas que vamos construindo e desconstruindo com o passar dos acontecimentos experienciados; sabendo que só quando conseguimos equilibrar nestes três caminhos, que juntos fazem O Caminho, é que nos encontramos realmente um passo cada vez mais perto da Verdade do que somos e do que Tudo É. A gratidão não nos faz desesperar, mas, pelo contrário, faz-nos ter a paciência de esperar e de ansiar por mais, voltando a convidar-nos para uma maior entrega aos Ideais e à Verdade. Para tudo isso, é importante a cordura. Esta cordura não é facilmente classificada, porque dentro de si encerra umas quantas características que cada uma por si só é menos do que todas unidas nela, tais diversas vides frágeis sozinhas em contraposição da resistência de vides todas juntas e unidas. A cordura baliza aquilo que é a nossa ânsia de mais aventuras e demais afazeres da nossa necessidade de quietude, de silêncio e de paz exterior para que possamos travar as batalhas internas a despontar. Não podemos ter medo, porque o medo é apenas uma ilusão, tudo de resto também o é, mas este é uma ilusão incapacitante, em menor ou maior grau. O medo deixa de ser instinto de sobrevivência, quando não existe um perigo iminente, nem quando penetramos fundo e re-interpretamos todos os cenários. Contudo, o medo presente num determinado momento decisivo da nossa vida é o que nos ajuda a distinguir um temerário, um inconsequente, de um corajoso, de um cordato, de um ser inteligente. Sejamos, assim, gratos também pelo nosso medo, que, quando ultrapassado, nos leva mais longe do que estávamos momentos antes. Não esqueçamos: aquilo que não nos mata torna-nos mais fortes! E como podemos perceber que estamos mais fortes? Na verdade, vemos isso na Inteligência interior que nos acompanha, que nos ensina a escutar, a cheirar, a saborear, a ver e a sentir a nossa Alma. Esta Inteligência não é inata na forma como descrevemos a palavra mundanamente, nem pode ser exatamente aprendida. Então como? Esta Inteligência é desde o princípio da Existência, mas quando encarnamos encontra-se adormecida, tal prova, para nos fazer procurar pela nossa verdadeira essência, pela luz interior que temos, pelo raio de Sol que somos e pelo Todo que aspiramos.

A natureza humana é crente, mesmo sabendo que não há ninguém cem por cento crente, nem cem por cento ateu. Todos temos o nosso “deus”, o nosso Eu Superior, que nos guia e que nos permite ir conhecendo as pequenas verdades da Verdade e que nos ensina a esperar e a continuar a fazer caminho, mesmo quando aparenta já não ser possível.

Este é o Caminho de Volta a Casa, quando recomeçamos a cada passo, a cada novo momento, a cada vida dentro desta vida e de outras. É preciso Orar e Vigiar, Acreditar e Servir, Amar e Esperar. A Felicidade é uma escolha, como diz Aristóteles, e é através dessa escolha que podemos chegar aos Arquétipos e os Arquétipos são apenas espelho daquilo que temos adormecido em nós, que desesperadamente quer sair para a luz, mas, para tal, necessita que adentremos nas nossas sombras e as combatamos, que tenhamos a coragem de escutar as nossas feridas internas para as curar, para nos libertarmos dos grilhões, como Buda o fez, para nos permitirmos ler as nanopalavras nas entrelinhas, que são realmente a verdadeira mensagem para levarmos connosco. Então, o Caminho de Volta a Casa é uma escolha consciente, passo a passo, virtude a virtude, esperança a esperança, fé a fé, combate a combate.

Voltar a Casa é ter a coragem de abraçar a Intuição, de nos deixarmos queimar pelo Amor que ouvimos desde sempre, por aquele fogo que nos consome e que nos transforma e nos faz levitar, tal como sentimos nos sevilhanos a caminhar. Sigamos o seu exemplo: não caminhamos, flutuamos, com calma, com serenidade e com cordura, com fé no dia de amanhã, com esperança em nós e na Humanidade, no amanhã que todos os dias nasce e que todos os dias morre. 

Voltar a Casa não é mais do que o abraçarmos cada criança ferida dentro, cada raiva explosiva, cada frustração gritante, cada escuridão esquartejante e curar tudo, deixando que seja a Alma a guiar-nos de Volta ao Todo, ao Uno, à Perfeição que podemos e seremos um dia, no amanhã sem tempo com Amor.

Joana Simões

Imagem de destaque: Relevo budista de 8m, feito entre 1177 e 1249, Mara, Senhor da Morte e Desejo, agarra uma Roda da Reencarnação que descreve o ciclo budista. Creative Commons