Hoje vivemos numa era de liberdade, livre expressão, amplo acesso a meios físicos e digitais o que nos permite estar em contacto em muito pouco tempo com qualquer ponto do planeta. Ao mesmo tempo, este contexto levanta-nos dificuldades na gestão da informação, selecção do que efectivamente nos interessa e falta-nos tempo de qualidade, amizades profundas e significativas, enfim razões que nos justifiquem viver. Talvez um pouco mais de inspiração intuitiva e menos de utilidade materialista.
Sabemos que todos um dia vamos partir, independentemente dos avanços da genética, da clonagem… O que ficará de todo este esforço de acumulação material? O que guardaremos como importante no nosso interior, no nosso cofre ou celeiro de experiências do passado de que falava o autor que nos vai acompanhar nesta viagem, Viktor Frankl?
Acreditamos que nos deve ser dado tudo o que nos evite sofrimento, dor e decepção ao contrário do que sucedeu com os nossos avós que em geral tiveram de provar os três e superá-los. Hoje vivemos numa sociedade hedonista que valoriza os momentos de prazer em detrimento de quaisquer outros, a satisfação a qualquer preço, evitando ver toda a injustiça e desigualdades que povoam sem dó o nosso mundo. Por isso, ouvimos com frequência «Isso não, dá trabalho.», «É melhor fazer depois.», «Não há necessidade [desse esforço].»… Até as palavras mais frontais são furtadas a pronunciar. Tudo é superficial, passageiro, restringe-se a um aroma intenso sem árvore, sem flor, nem tronco nem raízes. Estamos realmente debilitados e desprotegidos na vivência e no fastio de tanto prazer, de tanta informação sem sentido, como sucedeu com a personagem do bebé gigante no filme de Hayao Miyazaki, «A Viagem de Chiiro». Mas justamente essa infantilidade, alargada por muitos mais anos do que o natural e necessário, tem por trás a tirania, a da sua mãe (no filme). Sem significado ou direcção prolongamos estados e acções psíquicos que não nos conduzem a nada de novo ou construtivo. Temos medo à perda, à mudança e, logo, a crescer e fortalecer-nos.
Aconselha Goethe:
“Se consideramos os homens somente como são faremos deles piores do que o que são. Por outro lado, se os tratamos como se fossem o que deveriam ser, conduzi-los-emos aonde devem chegar.”.
Frankl (1978) diz que esta máxima poderia tornar-se o mote de toda e qualquer psicoterapia. Assim se entende que se chame à Análise Existencial e Logoterapia, criadas por V. Frankl, Psicologia das Alturas.
Na nossa sociedade, a do consumo, da dependência, mesmo das adições, como diria Frankl, a do conformismo e do totalitarismo., continuamos a assistir ao mundo em guerra, à opressão das massas trabalhadoras que guerreiam pelo que creem ser seu direito numa forma de co-existência pouco justa. Por conformismo Frankl entendia o acto de fazer o que eu penso que os outros querem que eu faça, ser igual; e, totalitarismo, o acto de obedecer a alguém a quem delego a minha capacidade pessoal e individual. Não se trata de escutar um conselho mas de submeter-se cegamente, para assim iludir os riscos de uma decisão individual e claro as suas consequências inevitáveis. Uma vez que toda acção gera uma consequência. Mas poder assumi-la é também aceitar que se está em construção, a evoluir, a ser oleiro e barro a moldar-se para algo mais perfeito, melhor e que mais possa estar ajustado a servir finalidades escolhidas e reais. Às vezes, também, as consequências são surpreendentemente enriquecedoras e ultrapassam-nos, recebemos mais do que o que poderíamos imaginar. Porém isto só pode dar-se se assumimos como protagonistas as nossas acções, posições e escolhas.
Hoje surpreende-nos, como no passado, jovens adolescentes puderam casar-se tão precocemente e ser nomeadas rainhas, como tantas mulheres criavam com sucesso e autonomamente os seus lares, tão alargados em prole, e como jovens meninos rumavam para as cidades à procura de um trabalho que os libertasse da fome no mundo rural e foram capazes com os anos de criar as suas empresas, quase sem estudos prévios ou mesmo sem eles.
Vemos como a nossa realidade, em poucos anos, se tornou tão diferente, e como há uma assincronia entre o que valorizamos do conquistado e no que hoje colocamos a nossa [escassa] concentração e esforços.
Podemos saber por experiência que só o que conquistamos, portanto com algum esforço, o guardamos como válido. Sabemos também que muito do que nos é entregue o consideramos como devido e não o valorizamos tanto até que, por nós, tenhamos de fazer o caminho até ele. Já nos aconselhou Séneca para a posteridade “O que sem perigo vence não consegue a glória.”.
A liberdade salutar exige algum risco face ao desconhecido. O cientista tem de ousar interrogar o desconhecido para chegar a algum entendimento mais. O ser humano também. Não controlamos tudo e talvez este seja o primeiro aspecto a considerar.
No entanto como educamos hoje os nossos filhos? Não lhes damos tudo o que podemos e às vezes além disso para lhe evitarmos esforços?
Será que estamos a ter em consideração o processo de formação individual e social que só se pode dar conscientemente?
Como se demarca um desfasamento entre o que pensamos e vemos como claro e o que praticamos, o nosso autor propõe um exercício de purificação deste canal interior e de reencontro com a nossa verdadeira essência, a nossa consciência superior, o nosso coração, que para os antigos filósofos era fonte de juventude eterna, não física, porém dessa juventude que reluz no olhar de qualquer ser humano que se reencontrou mais uma vez, independentemente da sua idade cronológica.
Para isso sugere a humanização do Ser Humano, hoje muito próximo da técnica, a humanização do médico, de todo e qualquer um de nós. Como?
Tendo presente que a cada momento a vida dirige-nos uma pergunta, lança-nos um desafio ao qual temos a liberdade e responsabilidade consciente de responder. Liberdade, porque podemos responder ou não e escolher de que forma o fazemos. Correctamente, seguindo imperativos éticos e morais que nos dite o nosso coração-consciência:
“O mesmo sucede com o homem: actuando no cenário da vida, mas deslumbrado pela quotidianidade superficial, vislumbra, apesar disso e desde sempre – a partir da sabedoria do seu coração – a presença do testemunho, do grande espectador, mesmo que invisível, perante o qual é responsável pela realização, que se lhe exige, de um sentido concreto e pessoal para a vida.” (Frankl, 2011, p. 120)
Pois o Homem tende para valores, tende para Algo meta-quotidiano.
Ao mesmo tempo é responsável pelo que faz, do que passa da potência do seu inconsciente ao acto – à maneira de Aristóteles – e com o tempo transforma em hábito, devolvendo de novo ao inconsciente.
Por exemplo, eu tenho, em potência, a possibilidade de perdoar quem me agride acidentalmente ou de me amargurar com a situação e banir essa pessoa das minhas relações actuais e futuras. Na medida em que pratico uma ou outra decisão crio um hábito que, com o tempo, ficará mais sedimentado na minha conduta.
Este processo consciente de auto-educação implica mais liberdade do que aquela que habitualmente somos levados a exercer, fruto de uma sociedade caracterizada pelo niilismo, por uma visão unifocada da dimensão humana, ora só social, económica, física ou psíquica. Nos dias que correm o psiquismo dita muitas das circunstâncias com que socialmente nos deparamos. As interpretações de Freud deram azo a uma visão generalizada do Ser Humano que se apoia na vontade de prazer, na fuga ao desconforto em que circunstância for, do esquecimento à dimensão do sentido, do Logos, do significado, da autêntica intencionalidade que Frankl chama espiritual. O espiritual é a morada do eu-consciência, da mente superior, que nos permite a liberdade para o sacrifício, para sofrer com sentido como numa doença terminal ou para a qual não existe tratamento senão aguardar pelo tempo necessário à sua debelação ou a realização de uma obra ou missão que nos permita, como humanos, segundo afirmara Nietzsche, suportar um qualquer como tendo um para quê válido. Ou através do Amor que nos transcende, fazendo-nos voar além do sexual e do psíquico.
“(…) o amor é, exactamente, a vivência de outro ser humano, em tudo o que a sua vida tem de peculiar e singular. (…) O amor aumenta e aperfeiçoa em quem ama a ressonância humana para a plenitude dos valores. Abre o espírito ao mundo na sua plenitude de valor, à «totalidade dos valores». (…) o amor não torna o homem cego, como às vezes se pensa, mas, pelo contrário, abre-lhe os olhos e aguça-lhe o olhar para perceber os valores.” (Frankl, 1978, pp. 197-198).
Temos, portanto, três tipos de relações para Frankl, sendo que só o Amor é realmente construtivo para o Ser Humano. Vejamos o esquema abaixo:
Para Frankl ao Homem cabe-lhe protagonizar, dia-a-dia, três formas de valor: o vivencial decorrente de algo de que podemos usufruir, por exemplo uma música de que gostamos, uma boa comida, uma boa ideia… (o mais passivo), o de criação como criar um produto ou peça de arte, escrever um poema… e o atitudional que decorre da postura que tomamos a cada momento que a vida nos interroga. Este é totalmente activo, exige a decisão do eu e coloca o Homem no centro de protagonismo como o navegador no barco à vela que utiliza o vento conforme lhe convém, de acordo com o seu destino. Não domina o vento todavia também não é vítima deste.
Do ponto de vista colectivo, a prática e integração da logoatitude permite uma passagem da massa à comunidade. Dá-se uma nova acepção do Homem e retoma-se a sabedoria das antigas escolas clássicas de Filosofia enquanto arte de vida. Na comunidade, o indivíduo pode expressar-se e desenvolver-se ao contrário do que sucede na massa, em que se esquiva e dilui. Na primeira é imprescindível como uma tessela de um mosaico, na segunda é um segmento cinzento de um passeio de cimento, igual a todos os outros, como bem esclarece Frankl. Na primeira há co-construção – todos são diferentes, imprescindíveis e insubstituíveis – na segunda há sedução, confusão conceptual entre meio e fim e exploração.
Em síntese, Frankl define o Homem com três dimensões:
Sendo valoroso, o Homem acede ao mundo mais estável, onde as ideias e sentimentos se vivem com mais coerência – esta é a dimensão espiritual. Ocupado com as necessidades do quotidiano superficial, o homem adormecesse no biorobot físico e psíquico que é mais reactivo que activo, que é amplamente mais passivo que protagonista, que é mais alvo do que seta no horizonte.
Nas palavras do neurologista e psiquiatra, V. Frankl:
“(…) por isso o empedramento uniforme não adquire nunca o valor de beleza de um mosaico, somente tem um valor de utilidade, do mesmo modo que a massa só reconhece a utilidade do homem, mas nunca o seu valor e a sua dignidade.”
“A massa, enquanto tal, carece de consciência e de responsabilidade.”
“A tendência a fugir da responsabilidade é, no fundo, o móbil do colectivismo. A verdadeira comunidade é, substancialmente, uma comunidade de pessoas responsáveis, enquanto a simples massa não é senão a soma de entes despersonalizados.” (1978, pp. 113-114)
Entendemos que a sua renovada visão do Homem que apela à consciência da existência de um Logos, de uma dimensão superior à vulgar quotidiana, a uma vontade de sentido, ou seja, a que cada um descubra que sentido tem a sua vida que no fundo a justifique, a signifique verdadeiramente, acrescenta algo de muito valioso ao humanismo que hoje em dia podemos viver e apologizar através da nossa prática diária como sempre recomendou a Dama Filosofia. Quer dizer que pelo amor e prática do que é, vejo e sinto como Verdadeiro posso libertar-me, conhecer-me e encontrar-me. Posso Ser, ao invés de existir só. Ou Existir, ao invés de estar. Poder assumir um vínculo com a Vida que premeia cada partícula, perceber um pouco do seu sentido a nível cósmico, humano e individual, e aí encontrar a porta da felicidade que é como o fogo que se lança para o céu em momento de festa porém não pode já ser compartimentado.
Bibilografia:
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Frankl, Viktor – «Psicoanálisis y Existencialismo: De la psicoterapia a la logoterapia». Trad. Carlos Silva, José Mendoza. México: Fondo de Cultura Económica, 1978. 2ª ed.
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Frankl, Viktor – «El hombre dolente: Fundamentos antropológicos de la psicoterapia». Barcelona: Herder, 1987. 1ª ed.
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Frankl, Viktor – «La Voluntad de Sentido». Trad. Fundación Arché. Barcelona: Herder, 2002. 1ª ed.
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Frankl, Viktor – «Logoterapia y Análises Existencial». Trad. José A. de Prado, Roland Wenzel, Isidro Arias. Barcelona: Herder, 2011. 1ª ed.