Em muitas ocasiões, expressões semelhantes nos aproximaram desta questão da Vida e da Morte.
Nesta ocasião diria, se a vida e a morte são temas importantes que passamos toda a nossa existência pensando neles – quer o expressemos ou não -, vale a pena dedicar-lhes uma palestra. Que mais uma vez possamos rever juntos temas antigos, fórmulas arcaicas, novos sistemas e abordagens para este tema antigo e moderno, hoje e sempre, que é poder resolver sobre a vida e a morte.
Sem querer plagiar Shakespeare, teríamos de nos perguntar; Ser ou não ser? Essa é a questão. Para nós reduziu-se a algo tão pouco simples como propormos que ser é estar vivo e não ser é estar morto. Ser – estar vivo – é possuir um corpo, ser manifestado; Não ser – estar morto – é carecer de um corpo, não ter manifestação.
Se for assim que abordamos o problema, entramos num jogo de oposições do qual dificilmente poderíamos sair. Se a questão reside na vida ou na morte, estaremos sempre num contínuo vaivém ao longo da nossa existência humana: isto é, todos os anos que passarmos revestidos com este corpo, serão atormentados de contradições.
Desde o primeiro momento enfrentamos com oposições. Primeiro as pequenas, quando somos crianças. É a oposição clássica da criança que tem de escolher entre o que não gosta, mas que tem de aceitar, e o que lhe agrada, mas que não lhe dão.
Estas duas oposições vão crescendo e crescendo, e sempre nos gerimos entre o que nos parece bem e o que nos parece mal; entre o que aparenta durar muito e o que dura pouco; entre o branco e o negro; entre o que nos atrai e o que rejeitamos.
Estas oposições vão gerando uma angústia contínua, porque embora toda a Natureza apresente este jogo dual, o que o ser humano procura e necessita é poder resolver esta dualidade, encontrar um ponto médio onde se posicionar e sentir-se firme, seguro.
No entanto, as contradições não se resolvem tão facilmente. Este jogo de opostos que manejamos, não só nos preocupa como ser humano individual, mas também é transmitido coletivamente. Há períodos históricos que se distinguem por um determinado modo de viver e outros por outro. Poderíamos classificar as épocas da História em espiritualistas e materialistas.
Esta dualidade que transmitimos à História e que nos aflige enquanto seres humanos, começa em princípio – se buscamos a primeira célula – na forma como o Homem focaliza a sua consciência. Todos nós temos o que os psicólogos chamam de consciência e que – para escapar às definições tradicionais – poderíamos imaginar como um foco de luz no nosso interior, que nos conduz pela vida e nos permite ver as coisas de determinada maneira.
A nossa consciência ilumina algumas coisas, deixando outras na obscuridade. Com essa luz dirigimo-nos para aquelas coisas que nos atraem e que vemos com total clareza; mas aquelas que deixamos de iluminar e que permanecem obscuras, nem sequer existem para nós.
Quando o foco da consciência está dirigido apenas para a matéria, viver é muito simples; viver é ter um corpo que pode ser tocado e palpado. Mas se a consciência se coloca na parte do ser que sente, que pensa, naquilo que começa a sonhar, então estar vivo não é simplesmente ter um corpo, mas algo mais profundo.
Quando o ser humano foca a sua consciência fora da matéria, há algo que é diferente da simples forma das pedras, da respiração das plantas, dos sentimentos dos animais. Não falaremos mais sobre vida ou morte, mas sobre outro tipo de vida e outro tipo de morte. Quer dizer: estar vivo com corpo, ou estar vivo sem corpo. Estar vivo com ou sem caraterísticas físicas, mas mesmo assim vivo.
Portanto, não há uma oposição, mas sim uma conjunção, onde estes dois elementos que chamamos de vida e morte não são igualmente conhecidos. É por isso que um dos dois nos interessa mais, embora na realidade devêssemos estar interessados em ambos, pois – porque fazem parte da mesma moeda, embora sejam lados opostos – têm naturezas semelhantes e afetam-nos da mesma forma.
Porém qual é a tradição atual? A vida é quase sempre agradável e por isso preferimos estar vivos. A morte é terrível, embora não saibamos muito bem porquê, pois todos confessamos que nada sabemos sobre a morte. Dizemos que a morte é dolorosa. Porém, assim como dizemos que ninguém jamais voltou do outro lado, também ninguém nos contou o quanto dói morrer.
Assim, continuamos a acreditar que a morte é sombria, fatídica e tremendamente dolorosa. Onde radica essa fatalidade, essa dor? Encontra-se na nossa ignorância, em não sabermos do que se trata, e como não a conhecemos, automaticamente é mau.
Esta é a forma com que julgamos tudo o que se apresenta perante nós na vida: o que conhecemos, e está ao nosso alcance da mão e da vista, é bom, mesmo que possa ter inconvenientes; aquilo que desconhecemos, como a morte, resulta em vez disso, terrível para nós – dizem-nos os antigos filósofos – e não podemos deixar de dar-lhes razão, que isto é um truque da Natureza. A Natureza manifestada que nos rodeia e da qual fazemos parte como seres vivos, precisa que tenhamos um corpo, que amemos esta vida com presença física para nos expressarmos aqui. E para ela, o mais singelo é fazer que temamos a morte, porque se não a temêssemos, dar-nos-ia exatamente o mesmo de estar aqui ou em outro lugar.
De modo que a Natureza nos cega e como não vemos, tememos e queremos fugir da morte e estar vivos. Pensamos que a morte nos arranca o bem precioso da vida e esquecemos – quase sem darmos conta – outro dom de que tantos pensadores nos falaram: a outra forma de vida. Aquilo que – sem chamar de Vida Eterna – chamaremos de vida que dura sempre.
O que podemos fazer para temer menos a morte, para não a ver tão negra e terrível? O conselho é tradicional: CONHECER. Para perder o medo é fundamental nos conhecermos e compreendermos a nós mesmos, e entender as leis da natureza.
Alguns dizem que o conhecimento acerca destes temas, não é mais do que ter fé. Desde o momento que não podemos ter qualquer certeza, sobre o que é a morte e o que nela acontece, não se trata de conhecimento científico, mas de um ato de fé.
Aceitamos que nestas questões preferimos as opiniões emitidas por aqueles que muito têm sabido e pensado, e que nos assinalaram o que devemos acreditar. Admitimos que seguimos estes seres, da mesma forma que depositamos fé em todos os conhecimentos científicos que não tenhamos conseguido comprovar.
Nós pessoalmente não fomos à Lua, mas acreditamos numa fotografia e num homem que disse que foi, num grupo de cientistas e no que apareceu no écran da TV.
Aceitamos pela fé que o átomo se divide, embora não tenhamos visto isso. Isto é fé na ciência e nos homens que a administram. Contudo, perdemos a fé nos filósofos e nos grandes místicos que nos falaram de outro átomo, de outra natureza material e de outra forma de vida. A isto também deveria ser dada uma dose mínima de fé, para poder compreender tudo o que há dentro da Natureza, e admitir que até a morte tem uma razão de ser.
Se nos puséssemos no plano científico, diríamos que a morte não é tão dolorosa, pois quando ela se aproxima de nós, todas as nossas faculdades são paulatinamente retiradas e aos poucos vamos perdendo a consciência e a sensibilidade.
Dói tudo aquilo que penetra pelos sentidos, e a nossa consciência quer perceber. Mas se os sentidos e a consciência estiverem relaxados, não haverá dor. Qualquer médico poderia corroborar isso cientificamente.
Se nos aprofundarmos no que eles nos explicaram, ao longo de centenas de anos, encontraremos histórias curiosas. Já falámos sobre isso antes, e poderíamos tornar a mencioná-los brevemente.
Neles a morte é definida como o limiar; o mesmo que se atravessa quando se entra na vida. Não é muito normal, o limiar que se cruza quando aparecemos na vida: um choro, uma família à nossa volta e a partir desse dia vão-nos alimentar e cuidar, cresceremos, aprenderemos e viveremos.
Grandes pensadores dizem que o outro limiar não é muito diferente. Inclusive, alguns autores antigos explicam que se entra na morte tal como se penetra na vida: um pouco adormecidos, numa espécie de choque. Pois a criança que ingressa na vida, sente uma mudança brusca, ao entrar repentinamente em um ambiente, numa atmosfera completamente diferente, ao respirar outro ar, ao fazer outra alimentação, etc. O recém-nascido dorme muito porque precisa se adaptar paulatinamente.
Os antigos filósofos dizem-nos que quem morre, dorme muito até começar a despertar. Ao perceber o que está acontecendo ao seu redor, ele encontra seres que, estando na mesma situação – já sem corpo – o ajudam, o cercam e o dirigem, constituindo uma nova família, novas amizades…
Depois de tudo, não existe tanta diferença entre o que pode viver nesta parte da existência, e o que se experimenta no outro lado da vida.
Os antigos filósofos dizem-nos que o poder da imaginação nessa nova vida é vital. A imaginação é o mundo das ideias em forma de imagens, e assim como, para estar neste mundo material usamos a matéria, para estar num mundo subtil, psíquico, usaremos as ideias e imagens para configurá-lo.
Os antigos alertam-nos que como não existia matéria nesse âmbito, as imagens e projeções mentais permaneceriam nuas. Aqui – na Terra – podemos esconder as nossas ideias, pensamentos e sentimentos, mas uma vez sem cobertura material, eles se apresentariam como são, e isso obrigaria o ser humano a purificar tudo o que sente e pensa, para não se cercar de vermes e lixo.
Assim como aqui sabemos cuidar das nossas coisas e mantê-las limpas, lá – no mundo da psique e da mente – aprenderíamos aos poucos, a limpar o nosso ambiente para nos encontrarmos cómodos e à vontade.
A força de recorrer a mitologias ou explicações infantis e singelas, muitas vezes pensamos que estar morto deve ser realmente entediante. Mesmo quando aceitamos a ideia de imortalidade, a transcendência da alma, acreditamos que a morte é como um sonho permanente, um estar sentado num delicioso cadeirão de nuvens, pássaros que cantam continuamente na copa de uma frondosa árvore. E assim por diante, durante anos e anos esperando para ver o que acontece.
Contudo não foi isso que foi ensinado.
Sabemos que aqui, na vida material não podemos ficar inativos, nem física, nem psicológica nem mentalmente porque, mesmo que o nosso corpo esteja parado, é muito difícil prender a mente ou fazer com que a psique permaneça estática, pois ambas flutuam.
Não podemos ficar inativos, mesmo que não tenhamos corpo, pois quando dormimos, estamos em perpétuo movimento. Temos que ver o que sonhamos, para onde viajamos, o que sofremos, choramos ou rimos nos nossos sonhos.
Este movimento interior faz que mais além da manifestação, o ser humano precisa continuar a sua evolução. E aqueles gostos que o capturaram na Terra, as paixões que o obrigaram a conhecer, a procurar, a encontrar, continuam a levá-lo a fazer o mesmo. Caminha, sem pés, mas caminha. Não há quietude, não há descanso.
Acredito que muito poucos daqueles que sentem inquietações interiores, se submeteriam a estar numa espécie de paraíso, imóvel, estático, tranquilo, onde nada acontece, nem se pode falar, nem aprender, nem sonhar.
Foi assim que muitos povos e civilizações antigas – alguns dizem que muitas verdades são aprendidas pela velhice que têm– mantiveram estas ideias e conceberam claramente que a VIDA É SÓ UMA. É um devir perpétuo, mas com um movimento cíclico, o que faz que por momentos estamos na parte alta da curva, e aparecemos com presença física, e outras vezes passamos para a parte inferior da curva, onde a nossa existência material desaparece.
Nesta evolução contínua, desenvolveu-se uma compreensão mais profunda do ser humano; uma sabedoria mais profunda sobre o que significa viver aqui e ali. Assim podemos compreender por que antigas filosofias religiosas – como o Budismo, falavam que o ser humano, enquanto estava na Terra, está sujeito à dor. E ele também está preso em algo muito mais terrível, que é a ilusão; a ilusão de acreditar que tudo ao nosso redor é estável, é fixo e tem existência real.
Diziam-nos os pensadores antigos, que não pode ter existência real e ser absoluto, aquilo que poderia ser destruído simplesmente com um golpe ou com uma chama de fogo.
As coisas materiais existem, mas não são eternas. E, o homem, preso nas falsas crenças da eternidade, sofre porque sonha com tudo que não dura, apaixona-se pelas coisas efémeras, apega-se a tudo o que lhe escapa das mãos. Por isso chora como uma criança que perdeu o brinquedo, como um adulto que sente a falta de um ente querido. E padece como qualquer um de nós, quando desejamos algo e quando vamos tocá-lo com as mãos, sentimos que acabou.
Por esta razão os budistas recomendavam considerar que a vida é apenas um trânsito, um momento, e que devemos por todos os meios despertar a nossa consciência para que os fortes laços da dor e da ilusão, não nos prendam tanto, a ponto de podermos voar livremente no momento que não tenhamos corpo.
O que disseram os egípcios quando falaram sobre estes assuntos? Eles tinham a antiga tradição do peso do coração do morto. O ser despojado de toda a corporeidade apenas apresentava diante dos deuses o seu coração – o conjunto de tudo o que sentiu e pensou ao longo da sua vida – o qual, diante do tribunal dos deuses, se punha no prato da balança, tendo como contrapeso – no outro prato – uma pluma: a subtilíssima pluma da Justiça.
Se o coração era leve como a pluma da Justiça, esse homem justo, aprovado pelo tribunal dos deuses, passava a viver outra vida no mundo sem dissabores, uma vez que a matéria já não pesava.
Mas se o seu coração tivesse inclinado a balança mais para o seu lado, este homem após um período de descanso, tinha de voltar à existência novamente e revestir-se de carne para aprender a trabalhar e a viver, até que o seu coração fosse justo, suave, subtil, até que não carregasse demasiado peso no seu interior.
E por que acreditamos que estes egípcios encheram os túmulos dos seus mortos com ofertas materiais? Não vamos continuar pensando que era porque acreditavam que o morto comia, e seguia-se pondo joias e tinha prazer nisso. Simplesmente acreditavam que tudo do mundo morria com o terrenal.
Aquilo que é da mesma natureza está no mesmo lugar. O que é de outra natureza voa para outras dimensões.
Sem dúvida, para falar da Vida e da Morte há muitas outras ideias concomitantes que teríamos de recolher para melhor compreender como se unem estas duas ideias aparentemente opostas.
Uma primeira lei que levamos desde a mais remota antiguidade é a Lei. Na natureza existe uma Lei, um cânone, algo que rege tudo o que existe desde o primeiro momento e que lhe deu forma, inteligência e vontade.
Esta lei é suficientemente perfeita e pura para que nós – humanos momentaneamente imersos na matéria – não possamos compreendê-la em sua plena expressão. E acontece que, como não a compreendemos, contrariamo-la. Se nos disserem que o caminho leva a determinado lugar, quase pelo instinto natural da matéria que é cega, em vez de caminharmos até lá, vamos na direção oposta.
Basta sairmos dessa Lei, para que o erro que cometemos produza uma reação, de tal forma que atuamos de acordo com essas velhas teorias, não por respeito e compreensão da Lei, mas por ação e reação. Se prosseguirmos e nada acontecer connosco, concebemos que está tudo bem e continuamos caminhando. Mas se com o nosso comportamento sentimos que tropeçamos em alguma coisa, a reação diz-nos que este não é o caminho certo. Então corrigimos a rota.
Assim – através da ação reação – assimilamos a experiência. As muitas tristezas – dizem os orientais que a dor é um veículo de consciência – fazem-nos reconsiderar e permitem-nos discernir por onde devemos caminhar para realmente SER.
O que não podemos evitar é de errarmos, e como erramos, assimilamos sementes que serão as causas que produzirão novos efeitos. Também acumularemos muitas ações que não geram reações e nos pesam e nos oprimem: são todas essas coisas que sonhamos, que queremos, que ambicionamos e que não podemos realizar, mas que nos pesam, e nos promovem para mais e novas ações.
Dizem os antigos que cuidado com aquelas ações, das quais se ambicionam os frutos, porque elas prendem o ser humano. De repente – como explicam os velhos Mestres – a morte encurta a vida e não completamos tudo o que desejamos, e é quase à força que temos de regressar para satisfazer o que desejamos.
Assim, quase sem querer, caímos naquele outro tema que tantas vezes discutimos e que é a Reencarnação, que se apresenta como uma coroa intransponível, da roda da vida e da morte.
Falar sobre reencarnação tem as suas desvantagens. A coisa mais simples é falar sobre a vida e a morte – simplesmente assim. Mencionar a reencarnação é mais problemático, porque passa uma má imagem. Ela é como um personagem que não tivesse tido tempo suficiente, nem meios económicos, para fazer uma boa propaganda sobre si mesmo e, portanto, a sua ideia é nefasta. Também se lhe fez má propaganda.
Apenas mencionar a palavra reencarnação nos deixa com os cabelos em pé e pensamos se não estamos blasfemando.
Quais são os problemas que nos distanciam da visão deste tema? O primeiro deles já antes mencionado temor à morte, ao desconhecido, a todos estes assuntos que não conseguimos digerir bem. O cuidado é tão grande, que preferimos antes, rejeitá-los que tocá-los. É por suspeita que permanecemos perfeitamente trancados em nosso castelo de vidro – que também não escapa da morte, evidentemente.
Outro problema que encontramos quando falamos de reencarnação é que muitas religiões – embora a tenham proibido e impedido de ser discutida – têm satisfeito questões íntimas e dolorosas do ser humano. Também não resolveram inquietudes vitais daqueles que sentimos, que vivemos e para quem nos resulta difícil compreender o que significa deixar de viver.
Outro problema é a quantidade de falsidades do misticismo de muitos personagens que, blindados no mistério que cobre todos estes temas, rodeiam-se ainda mais de segredo e sigilo, e dizem que nos explicarão uma grande verdade.
Há muito comércio e mentiras sobre estes assuntos que são altamente delicados e que requerem ser tratados com cuidado e verdadeiro conhecimento. Como muitas vezes fomos enganados por esses falsários do misticismo, acaba-se por dizer que todos os que falam em reencarnação são mentirosos.
Quando se menciona a reencarnação todos pedem provas; sim, mas evidências materiais. Mas estamos falando de algo que não é tangível, porque quando morremos o que resta não é sólido. E como podemos provar materialmente o que não é material? Estamos pedindo algo que é impossível desde o início.
Por outro lado, mesmo que houvesse provas, diríamos que não. Existem testemunhos; relatos curiosíssimos que foram registados em todo o mundo, e coletados por milhares de cronistas e escritores, bem como inúmeros livros que compilaram muitos casos comprovados de forma confiável com todos os dados. Mas apesar de tudo, insistimos em negar a reencarnação.
Outro problema é a falta de memória. Por que não nos lembramos das vidas passadas? É verdade que não nos lembramos de nada, mas não só de antes, mas também de agora, porque se nesta vida atual tivéssemos uma memória extraordinária e pudéssemos relembrar cada momento, diríamos que é estranho não ter também em mente o passado. Porém, é muito difícil para alguém manejar todos os detalhes e minutos da sua existência atual.
Se não temos capacidade de memória agora, se estamos perpetuamente desatentos e colecionamos apenas momentos, respingos de existência, como pretendemos registar muitíssimo mais.
É melhor aceitar que a Natureza – na sua misericórdia – lance um véu sobre nós para nos fazer viver o dia a dia com renovada ilusão. O que seria de nós se nos lembrássemos de tudo?
Os psicanalistas ajudam-nos a esquecer os nossos traumas, pois escondemos voluntariamente todos os acontecimentos que nos magoaram profundamente. Não temos todos os detalhes presentes, mas ficamos com a experiência, seja boa ou má. Não seria uma vantagem não lembrar? Não seria uma possibilidade – como disse Marco Aurélio – poder pensar que vamos viver cada dia, como se fosse o primeiro e o último?
Outras vezes a reencarnação é confundida com a ressurreição, e pensa-se que chegará o dia em que voltaremos a viver com estes mesmos corpos. É lógico que quando a ideia se torna tão materialista, quando ressuscitar é ser como parecemos hoje, torna-se difícil aceitar e acreditar.
A reencarnação é diferente. O que resta é outra coisa; é o que não tem corporeidade e para continuar a sua experiência, veste-se de corpo. É quando pensamos que não há possibilidade de reencarnação, de perduração do espírito, o momento em que a vida e a morte nos aparecem como opostos, e nos criam crises como a que vivemos hoje.
Estamos em crise porque estamos cansados do materialismo, cansados de saber, ver, ler e ouvir que, quando sentimos algo, nos dizem que tudo se deve a um desequilíbrio glandular. E, se trocássemos outra glândula, não seria pela arte, mas por outra coisa.
Estamos cansados de querer a uma pessoa, e que nos digam que isso se deve a um centro cerebral, e que se esse centro fosse manipulado, quereríamos a outra pessoa. Sentimos muito dentro de nós, que não é assim.
Estamos cansados que nos digam que quando sentimos necessidades místicas, é porque temos o nosso corpo frustrado.
Estamos inquietos porque há um grande número de questões na vida, que a ciência não consegue compreender. Porque acontecem muitas coisas, que aparentemente não têm explicação lógica.
Estamos fartos porque estamos desesperados e vivemos quase sem saber o que será de nós amanhã, por isso não ousamos sonhar. E quando sonhamos, fazemo-nos a fatídica pergunta, se seremos capazes de realizar tudo o que sonhamos ou se nos matarão antes, ou virá um tiroteio, ou se explodirá uma bomba, ou se a casa pegará fogo, ou haverá uma greve, ou ficaremos sem trabalho, ou se a nossa família nos desprezará.
Agora já não há quase valores, aos quais nos apegar, e é por isso, que nos desesperamos. E tendemos a procurar valores talvez muito antigos, que foram pregados há muito tempo, e que tornaram os seres humanos, não muito melhores do que nós, mas talvez um pouco mais felizes, um pouco mais seguros do que nós.
E notamos essa segurança e felicidade nas obras que nos deixaram.
Ainda existem livros com 2.000 ou 3.500 anos que lemos como se fossem novos e frescos, e que produzem em nós tranquilidade, paz e sensação de alívio.
O que reflete o nosso mundo de desespero? Tensão, ódio, insegurança, instabilidade. Ninguém sabe quem ele é, nem o que quer, nem por que está aqui. E tudo isso se reflete na literatura e na arte que deixamos para trás.
Começamos a pesquisar e a perguntar-nos que, se aceitamos cientificamente a existência da matéria e da energia, e estas duas coisas não são iguais, não poderíamos aceitar também que, além da nossa matéria, existe – não chamemos mais alma nem espírito, se a palavra incomoda – energia, que existe algo mais além do corpo?
Se os cientistas alertam que os nossos dois hemisférios cerebrais não são iguais, uma vez que parece que o lado direito regista impressões de muito maior subtileza e profundidade, do que as captadas pelo lado esquerdo, poderíamos começar a pensar que é hora de pôr a trabalhar esta parte do cérebro, para ver se desperta algo mais subtil em nós.
Se continuamente percebermos que a psicologia, como ciência já não é suficiente, e falamos de parapsicologia – sobre o que está além da psicologia, para lidar com mistérios e fenómenos verdadeiros que já não compreendemos -, temos de admitir que a ciência está ficando curta.
E daqui a um par de anos estaremos a falar de meta-parapsicologia, para ver se avançamos um pouco mais nesse mistério, que está além da nossa compreensão.
Estamos vendo médicos e psicólogos de todo o mundo, trabalhando em experiências de regressão hipnótica ou em tratamentos com drogas, para ver o que acontece com esses indivíduos que estão prestes a atingir o limiar. E, não estamos interessados no que relatam essas pessoas, porque acreditamos que são farsantes e que todas decidiram mentir sobre o mesmo tema.
Mas em todos os casos é assim.
É curioso observar em experiências de pessoas que não podem ser mentirosos porque estão prestes a morrer, e totalmente drogadas para evitar as dores, o que dizem quando têm momentos de lucidez.
Falam sobre coisas que não conhecem; descrevem mundos pelos quais nunca viajaram. E quando se comparam conceitos e aquilo que dizem ter visto, como relatam muitos livros antigos – como o Livro dos Mortos egípcio, ou o Bardo Thodol dos tibetanos, ou uma Teogonia como a de Hesíodo, é assustador ver a semelhança com que os homens, com nenhuma cultura, adquirem repentinamente uma facilidade de palavra e uma habilidade de escapar da matéria; isso ocorre somente, porque esta já é demasiado escassa para os deter.
É hora de chegar a uma conclusão que, mesmo dolorosa para a nossa mente racional, vale-nos e apoia-nos.
Se a fé é duvidosa, todavia, a dúvida é ainda mais. Se a fé não é estável, a dúvida também não o é. Se eu apenas sei que duvido, também posso dizer que só sei que tenho fé. Não vejo porque há de ser muito mais distinguido e nobre, aquele que aceita, que duvida, do que aquele que aceita que tem fé. As duas coisas são igualmente indefinidas.
Mas como uma destrói e a outra fortalece, escolhamos a fé: é muito mais singelo para todos nós.
Se se trata de escolher entre a vida e a morte, perguntemo-nos se quando estamos vivos, vivemos realmente. Estamos todos verdadeiramente vivos? É vida deixar-se estar, ou é vida o vibrar, o fazer, o sonhar, o buscar, o querer ter as coisas mais nobres e melhores?
Se chamarmos vida a tudo o que é mencionado, estamos de acordo: vivemos. Se singelamente nos deixamos estar e nos diferenciamos de um animal, pela forma do corpo, isso não é estar vivo. Logo, a vida não consiste em ter um corpo quente e poder percebê-lo através dos sentidos.
A vida é muito mais. A vida é algo que nos trespassa. A forma material é apenas um veículo; a vida entrou através dele e através dele sairá. É um momento, uma parte do conjunto. Devemos chegar a sentir esse outro que é viver sempre, umas vezes vestidos e outras despidos, diante do nosso próprio Deus, mas sempre vivos.
Ninguém se contenta com a ideia de desaparecer para sempre. Nós, que tanto estudamos os instintos humanos, nunca paramos para analisar esse outro instinto, que é o da eternidade. Aquele de querer durar, de perpetuar-se num filho, numa obra, num trabalho, numa construção, em qualquer outra coisa, mas por favor, que isso dure um pouco mais do que nós.
De onde vem esta necessidade, esta ansiedade, se não é o nosso anseio de eternidade?
Se pudéssemos elevar uma palavra, uma oração, um pedido para estarmos vivos; se tivéssemos a facilidade de evocar um talismã mágico para despertar verdadeiramente, que fosse som, que palavra diríamos? VIDA, unicamente VIDA.
E se para terminar esta palestra, eu pudesse repetir mais uma vez que a Morte é apenas uma forma diferente de viver e experimentar, talvez isso nos ajude um dia, a resolver um pouco do nosso dilema interior.
Tudo o que disse, da Vida e da Morte, se pode resumir numa só palavra: VIDA, SOMENTE VIDA.
Delia Steinberg Guzmán
Publicado na Biblioteca Nueva Acrópolis em 17-08-2023
Imagem de Destaque: Representação gráfica de consciência do século XVII. Domínio Público.