Cerinto e Simão vieram para ir e vir pelo mundo, mas inimigos de nosso Senhor Jesus Cristo, porque pervertem a palavra e a verdade, quer dizer, a fé em Jesus Cristo. Afasta-te, pois, deles, porque há neles morte, e grande contaminação e corrupção, naqueles sobre quem virá o juízo, o fim e destruição eterna.

Epístola dos Apóstolos

Todos os que trabalharam seriamente com a Doutrina Secreta de H. P. Blavatsky ter-se-ão dado conta da obra monumental e assombrosa que é, todo um mar insondável de conhecimentos, de erudição impossível, de sugestões impactantes, de raciocínios arrojados e impecáveis, de analogias diamantinas, brilhantíssima na sua exposição e sempre divertida e humilde nas suas ironias.

Mais de dez vezes terei lido o texto seguinte, e nunca havia imaginado como era fácil desenrolar a meada e descobrir a quem se referia, no capítulo A Doutrina dos Avatares, ao falar de Jesus Cristo como um deles.

Antes de mais, é necessário um contexto. Como quase todas as religiões (todas, se lermos nas entrelinhas), o cristianismo também aceitou a doutrina pitagórica da reencarnação e metempsicose. A pergunta: És tu o Elias que voltou? feita a Jesus, ou os ensinamentos de Orígenes, mais tarde proibidos no segundo Concílio de Constantinopla, são prova disso. O mistério da vida ininterrupta numa sucessão infinita de reencarnações está unido ao dos avatares ou da projeção de uma Chama Divina, num ser humano com todos os poderes da sua alma despertados, como no caso de um Jesus da Palestina ou do príncipe Siddhartha, que ao receberem essa Chama se convertem respetivamente, em Cristo (o Ungido de Deus) ou em Buda (o Iluminado). Essa mesma Chama retorna ao mundo e impulsiona a Humanidade no seu caminho evolutivo, uma e outra vez, seguindo uma lei de compaixão oculta e inexorável.

Mas a pessoa-cálice que a recebe, no umbral da perfeição humana, pode, depois de cumprida a sua missão, pode renunciar ao prémio da paz e felicidade absolutas do nirvana, e continuar a ajudar a humanidade, invisível aos olhos da mesma (em corpo astral), como Mestre de Mestres de Sabedoria e Iniciados, ou excecionalmente, assumindo um corpo físico. Ele abandona o corpo anterior e assume outro sem perder a consciência de quem é, pois, a morte já não tem nenhum efeito sobre Ele. H.P. Blavatsky, na sua Doutrina Secreta, explica que três das maiores almas da história, cada uma portadora de uma revolução espiritual, foram reencarnações sucessivas do duplo luminoso de Buda: Shankaracharya, o grande mestre vedantino; Apolónio de Tiana, no século I, o maior taumaturgo conhecido; e Tsong ka pa, o renovador do budismo mahayana e criador da ordem gelug tibetana. Todos os três, verdadeiros gigantes da filosofia e da espiritualidade. A condição daquele que, por amor à humanidade, renuncia ao nirvana é chamada de nirmanakaya no budismo. O texto de H.P.B. antes mencionado diz:

Mas na condição de nirmanakaya (ou nirvani «com resíduo») ele ainda pode ajudar a humanidade.

Buddha no Museu de Sarnath. Creative Commons

Assim disse Gautama, o Buda: Caiam sobre mim, os sofrimentos e os pecados do mundo, e que o mundo se salve,[1] uma exclamação de significado genuíno apenas compreendida pelos seus discípulos atualmente.

Se quero que ele fique até que eu venha, o que é que tu tens a ver com isso?[2] pergunta Jesus em corpo astral a Pedro. Até que eu venha significa até que eu reencarne novamente, num corpo físico. Assim, Cristo podia de facto dizer no seu corpo crucificado: Estou com o meu Pai e sou um com ele [ou seja, a sua condição é nirvânica], o qual não impediu o seu astral de tomar uma nova forma, nem impediu João de esperar o seu regresso e, quando este voltou, não o reconheceu e até se opôs, contra ele. Mas essas palavras do Mestre sugeriram à Igreja a ideia absurda do juízo final no milenarismo ou quiliasmo, no sentido físico.

Para além dos combates taumatúrgicos de João derrotando Apolónio de Tiana, que H.P. Blavatsky facilmente desmonta e em que não se teriam encontrado cara a cara; o que poderia fazer deste mago viajante um candidato ao que está a negrito no texto, a segunda afirmação é a que nos permite determinar quem era o Mestre reencarnado na afirmação da Doutrina Secreta. Além do Apocalipse, atribuído a João, o primeiro autor que se diz defender os mil anos de justiça e governados por Jesus, no fim dos tempos, foi precisamente Cerinto de Éfeso, educado na sabedoria dos egípcios. Esta ideia, milenarismo ou quiliasmo, que deve ser uma má interpretação de algum ensinamento profundo, fez com que inclusive o Apocalipse fosse rejeitado por grande parte dos primeiros Padres da Igreja, ou fosse atribuído a este mesmo filósofo gnóstico, discípulo predileto de Simão, o Mago (assim lhe chama H.P. Blavatsky, em Ísis sem Véu). A Primeira Carta de João é motivada precisamente para se opor e combater este mesmo Cerinto, e este sábio foi seu inimigo teológico. É Ireneu de Lyon quem por volta de 180, ou seja, um século depois dos acontecimentos, no seu catálogo de heresias, a maior parte delas gnósticas, arremete contra este tal Cerinto, embora o pouco que sabemos dele venha desta crítica.  O episódio relata que João, tendo ido com os seus discípulos às termas de Éfeso, viu Cerinto e saiu a toda a pressa, dizendo: Fujamos, para que o edifício não se afunde por estar nele Cerinto, o propagador de mentiras.

Se efetivamente Jesus, como nirmanakaya, reencarnou em Cerinto, a situação não é isenta de drama. O seu discípulo amado esperava, porque prometido, o seu regresso, mas o seu fanatismo impediu-o de o reconhecer ou mesmo de se aproximar dele; pelo contrário, fossilizado nas suas crenças e não iniciado nos Mistérios, lutou contra ele uma e outra vez. Não o olhava nos olhos, e se o fez, não o reconheceu, e talvez a história de Policarpo de Esmirna (de quem Ireneu teria recebido ensinamentos), discípulo de São João, encontrando-se com o filósofo gnóstico Marcião, fosse na realidade o encontro de João com Cerinto.

O filósofo gnóstico Marcião perguntou a Policarpo: Não me reconheces? e ele respondeu: Claro que te reconheço, és o primogénito de Satanás.

Pentecostes: o Espírito Santo desce sobre Maria e os apóstolos, de Anthony van Dick (1599-1641). Domínio Público

Hoje mesmo é fácil ver que a corrente mistérica e a seiva mística, e o Conhecimento, com maiúsculas, perdeu-o a nova religião com o afastamento, e ainda o extermínio dos filósofos gnósticos como hereges. Pois foram eles, e não só eles, mas também Ário e muitos outros, os Iniciados e os seus discípulos que teriam impedido que se convertessem num ninho de discórdias teológicas e de ódios menos que humanos, atacando-se durante séculos e milénios, até à morte, por acreditarem nisto e naquilo, ou seja, a morte e o sofrimento e a destruição no fio da navalha de uma questão doutrinária.

Voltando a Cerinto, sabemos por Ireneu que defendeu a doutrina dos avatares na sua justa medida, pois ensinava que Jesus era mortal, filho carnal de Maria e José, e que sobre ele, no Batismo (ou seja, na verdadeira Iniciação), teria descido (a palavra avatar, em sânscrito significa isso mesmo, descida) o Filho de Deus, o Ungido (Cristo) quem depois retornou ao Pai na crucificação, enquanto Jesus continuava a instruir os seus discípulos no seu corpo de luz, como vemos lindamente na Pistis Sophia. Cerinto dizia, segundo Ireneu, que tinha sido inspirado por anjos (ou seja, por deuses) e, tal como a doutrina platónica ou gnóstica, que Deus não tinha criado o universo por si próprio, mas através de espíritos ou inteligências, cada um deles artífice de um plano de consciência ou de existência, ou seja, de uma hierarquia de construtores. O autor do mundo (material, entendemos) não era o superior, mas o contrário. Enfim, a quintessência da filosofia gnóstica.

Pistis Sophia, um importante texto gnóstico. Nova Acrópole

Cerinto teria criado uma escola de filosofia e mística e propagado a sua doutrina entre os Gálatas, na atual Turquia. Pensa-se inclusive que a Carta de Paulo de Tarso aos Gálatas havia sido dirigida contra eles. É também considerado o destinatário da Carta Apócrifa de São Tiago (que se encontra entre os documentos de Nag Hammadi) e na Epístola Apostolorum, encontrada em 1895, e as suas doutrinas são criticadas juntamente com as do seu mestre Simão, o Mago.

Curiosamente, neste último documento, a Epístola aos Apóstolos, é explicado o significado (ou um deles) das Dez Virgens, as cinco despertas que mantiveram a chama, e as adormecidas que a deixaram apagar-se. Neste texto é dito que os apóstolos perguntaram a Jesus quais eram as sábias e quais eram as loucas, e Jesus respondeu que: As cinco sábias são a Fé, o Amor, a Graça, a Paz e a Esperança[3] e as cinco que seriam expulsas das bodas, o Conhecimento (Gnosis) e a Sabedoria (Sophia), a Obediência, a Paciência e a Misericórdia. Jesus logo predisse neste texto, que os falsos cristãos que adormecem serão deixados fora do reino e do redil do pastor e as suas ovelhas serão devoradas pelos lobos. Ou seja, aos gnósticos será vedada a entrada no reino de Deus.

Esta rejeição do que é desconhecido; do que é demasiado luminoso, que nos faz ver os nossos próprios flagelos; da sabedoria, porque a nossa ignorância se rebela contra ela e esforça-se por romper o Fio de Prata que a une ao Mestre, é a própria história do clericalismo que se entrincheira contra a verdade. Como nos disse o grande músico Gustav Mahler, a tradição é para manter o fogo aceso, não para adorar as cinzas.  Não sabemos se a personagem, a que a grande Blavatsky se refere, como a reencarnação imediata de Jesus, é o sábio gnóstico Cerinto, embora eu acredite que sim, por tudo o que expus, e que melhor maneira de terminar este breve artigo do que com as próprias palavras da autora da Doutrina Secreta, sobre Jesus, que se seguem às que escolhi acima: Desde então, o «Homem das Angústias» pode ter regressado mais do que uma vez, sem que os seus discípulos cegos o reconhecessem. Desde então, também, este grande «Filho de Deus» tem sido incessante e mais cruelmente crucificado, dia após dia e hora após hora, pelas Igrejas fundadas em seu nome. Mas os apóstolos, que eram apenas semi-iniciados, não souberam esperar por Ele, e não só não o reconheceram, como o desprezaram de cada vez que voltou.

José Carlos Fernández
Almada, 7 de janeiro de 2024

[1] Ou seja, que eu renasça para novas misérias (Nota de HPB).

[2] S. João, XXI, 21-22 (nota de HPB).

[3] Como seriam perigosas as primeiras 5 virtudes sem as segundas 5!

Imagem de destaque: João e o herege Cerinto de Éfeso nas termas, gravura de Jan Luyken, 1701. A biblioteca de Éfeso e uma página do Codex Tchacos (Imagem Composta). Creative Commons