Aproxima-se o Natal. 25 de Dezembro, data do nascimento de Jesus Cristo… dia do nascimento de Mitra, Agni… mês do nascimento de Hórus. Pouco importa, é Natal. É Natal e toda a atmosfera muda. Tudo se prepara para a chegada do Pai Natal – as coroas assomam às portas, as luzes alegram as casas pelas noites mais frias, enquanto ele já vai subindo, acolhedor e benevolente, pelas varandas extáticas e silenciosas, ao mesmo tempo que à entrada de uma casa um anjo parado e belo toca o seu violino.
No mundo encantado das crianças, tudo isto é certo, tão certo como as fadas, os gnomos, os silfos ou as ninfas… e escrevem ao Pai Natal, porque ele lê as suas cartas e porque há de entrar pela chaminé nessa noite cheia de assombro e graça que se aproxima.
Os nossos cansaços
Há como que uma atmosfera mágica, uma oportunidade de alegria redentora. Mas os adultos estão cansados de histórias, de fábulas, de mitos. O mundo dos adultos é maduro, lógico; tem contas, cálculos, notários, quedas na bolsa, taxas de desemprego, fundos de pensões e, sobretudo, a certeza da ciência materialista, que explica o Sol, a origem da Humanidade, o sentido da existência, o Universo. Aos primitivos, há que lhes devolver as suas cosmogonias e os seus Espíritos da Natureza, que são uma manifestação infantil de representar o mundo. O Progresso, graças à Economia, por fim veio e salvou-nos.
Para alguns de nós, o Natal é unicamente sinónimo de consumismo. Outros discutem a origem do Pai Natal e desacreditam-no simplesmente por terem entendido a sua provável origem germânica, por saberem de São Nicolau, Sinterklaas, Santa Klaus; por saberem que o cachimbo é holandês, que Thomas Nast ajudou a moldar este imaginário, assim como a indústria. Foi algo construído socialmente, e fica então claro que não tem qualquer valor em si.
O que poderia ser a oportunidade de captar uma essência torna-se num instrumento de minimização. Agora que acreditamos ter visto com clareza como surgem os santos, os heróis ou o Pai Natal, eis-nos preparados para lhe retirarmos o prestígio. Porém, esta abordagem à quadra natalícia não responde a perguntas mais fundamentais: poderá o Natal ser mais do que um rito ou celebração cristã e o Pai Natal ser um símbolo? O Ocidente iconoclasta, como nos alerta Gilbert Durand[1], não entende mais a função evocadora dos símbolos, e os rituais estão a desaparecer[2]. O não conseguir dissociar a fenomenologia do sagrado da religiosidade cristã é outro dos traços característicos da crítica do nosso tempo.
A Filosofia, por sua vez, é o sublime esforço do meio justo; a nós portanto o seu equilíbrio – não sucumbamos ao consumo, mas também não rejeitemos visceralmente esta época festiva, e as suas figuras associadas, por serem somente o reflexo e o cenário de uma actividade comercial mais intensa ou o resquício de uma tradição retrógrada e anquilosada.
A dessacralização do Universo e a laicização da existência
Haverá algo por detrás destas histórias e festividades que possa ser útil ao nosso acto profundo de tentarmos ser humanos? No Ocidente laico, parece não haver nada a retirar destas perguntas. Vivemos num mundo desencantado, onde tudo é técnica e pragmático, onde a Natureza não é mais do que matéria-prima, um lugar onde a arte já não evoca ou pressente o Sagrado; num mundo e numa sociedade onde os valores religiosos e espirituais não têm mais guarida. O progresso, o crescimento – eis a nova religião[3].
Dessacralizámos o Cosmos, a nossa vida é laica. E, no entanto, sabemo-lo bem: a magia é antiga, as Luzes chegaram, Deus morreu – mas nem por isso a Realidade mudou.
Além daquilo que o rito e o símbolo encerram, a realidade é que esta celebração foi já alvo de poderosíssimas tentativas de esboroamento, que os seus símbolos foram removidos e proibidos, seja aquando do advento da própria Cristandade ou da Revolução Bolchevique, por exemplo, sem que se tenha conseguido erradicar do espírito humano a sua necessidade intrínseca.
A Natureza, quando é acometida, arranja sempre forma de reemergir; pois se atacamos formas, atacamos meros fantasmas, e a essência é indestrutível – o nosso convidado é então um delicado dilema.
A respeito da essência fundamental que subjaz à festividade, conviria lembrar as palavras de Françoise Terseur, no seu artigo “O Simbolismo da Festa de Natal”:
“Esta festa é uma reatualização de um culto tão antigo como o mundo. A sua finalidade é muito importante, pois é um ponto de encontro entre o visível e o invisível; um instante de pausa e reflexão que permite ao homem fixar-se no tempo e espaço, fazendo desse instante um elo entre o passado, o presente e o futuro.
As formas do culto podem modificar-se com as épocas, as civilizações, as religiões, mas a sua essência é permanente e revitaliza-se graças a uma nova fé canalizada numa nova religião. Tomando vários aspetos, mas perpetuando-se através dos tempos, a sua mensagem é eterna; a sua forma muda, mas o homem que a vive é o mesmo.
A Festa de Natal […] embora cristã na sua interpretação religiosa […] contém em si as mesmas raízes milenárias de tradição indo-europeia, das quais fazem parte elementos célticos, germânicos, greco-romanos, entre outros”. (Terseur, 2019: 70)
Este instante de pausa e reflexão que permitem ao homem fixar-se no tempo e no espaço é o Solstício de Inverno, período de recolhimento por excelência, de interioridade; tempo de transição entre a noite mais profunda e o crescimento da Luz; o germe, a certeza da vitória, o regresso da Primavera e da alegria para sacudirem a Noite do Mundo.
Nos povos celtas, neste período, os druidas, no cimo de uma colina, batiam com um ramo de “gui” na palma da mão, produzindo um som… Novamente auxiliados pelo belo artigo de Françoise Terseur, vejamos outros significados profundos e essenciais do Natal:
“Os druidas, ao produzirem esse som mágico apelavam ao despertar interno, refazendo com esse gesto um pacto de aliança entre os ciclos do homem e a natureza.
[…] Em conclusão podemos dizer que foi nosso objetivo […] redescobrir o verdadeiro sentido desta festa. Recordemos que esta tem para o homem um papel regenerador, ou seja, dá-lhe a possibilidade de revitalizar e fortificar a sua natureza — reunir nele aquilo que de melhor tem dentro de si. De uma certa forma, ao participar nesta festividade, o homem poderá levar uma centelha a esta chama nova, a única capaz de fundir a neve e dissipar as trevas. E o milagre do Natal reside neste grão de esperança que dorme em cada um de nós”. (Terseur, 2019: 72,73)
É no Natal que a Natureza desperta do seu sono, que cresce em Luz e se renova. Ao apelar para o melhor de nós próprios, ao estender esta ponte entre o visível e o invisível, é às virtudes a quem fazemos apelo de certa forma – é um convite à sua recordação e à sua prática.
Assim, o Natal é também uma janela colectiva de oportunidade da prática da redenção, da reconciliação, da generosidade – é um ensaio de Beleza e de Glória, um acesso conjunto e despercebido a uma forma de Sagrado, porque o Sagrado é um tempo que pára e que se reconhece a si mesmo. Acaso não parou a Primeira Guerra Mundial em 1914, para que as duas trincheiras inimigas pudessem confraternizar?
Estranho símbolo de nós mesmos e das nossas vidas quotidianas: armas, disparos, conflito, guerra, guerra, guerra; e, de repente, um momento possível de paz, como que um elevar de consciência que afinal também é real. Segundo consta, no dizer de um soldado alemão no seu diário: “Maravilhosamente espantoso, ainda que muito estranho”[4]. Mas logo de seguida o quotidiano que nos traga, com ou sem sentido, porque nos mandaram ou porque acreditámos que tínhamos que ir; e no entanto o hiato de tempo, a vivência desse outro tempo como que suspenso sobre a realidade mais imediata também existiu factualmente dentro e fora de nós – mas já foi esquecido, já jaz na memória como um rosto antigo que lembrámos a tentativa e a custo.
Há que se proteger de uma das faces negras da cultura actual – a sua dessacralização, o seu desconsiderar dos rituais e dos ritmos festivos da Natureza. A cultura secular ocidental tem por hábito rir de tudo aquilo que não consegue ver – quando não nega aquilo que não quer olhar. Muito provavelmente todos nós um dia acreditámos no Pai Natal; mas depois crescemos, vimos o mundo como ele era, um amontoado caótico e mecânico de compromissos e de seriedade, onde a poesia e a música são ocupações inúteis deixadas sozinhas nos anos passados da nossa juventude, quando éramos inocentes e não havíamos ainda entendido o sentido prático da existência. No entanto, valha-nos agora aqui a Bíblia: “Nem só de pão viverá o homem […]”[5].
Ah, Rimbaud, como tu tão bem o disseste: “É mais que certo, é oráculo o que digo”[6]– as ondinas, com os cabelos caídos por entre os joelhos, choram nas rochas à beira-mar ao ver os peixes asfixiados pela poluição, a cor desconfiada das águas; os gnomos metem as mãos inteiras sob os olhos que estalam em lágrimas, enquanto ficam imóveis, paralisados perante os avanços das chamas nas florestas, do cimento nas cidades que não pára de cobrir os jardins; os elfos, as fadas estão abatidas e pedem licença às poucas flores que sobram para pousarem as suas cabeças nos seus colos imaculados… Mas como tudo isto é mentira, e como hoje o nosso mundo não está mais infestado de demónios[7], há que saber-se que tudo isto pouco importa, posto que nada disto é real.
O Natal, as lendas, as renas, o Pai Natal são uma invenção desusada e antiquada que não faz mais qualquer sentido. A nós uma ceia normal, a televisão ligada, mais uma noite quotidiana como outra qualquer. Afinal de contas, a seguir ao dia 24 vem o 25, e a seguir ao 25 vem o 26… como é que nunca ninguém se apercebeu disto?
A ferida a curar e a Magnífica Carta
Para se voltar ao Sagrado, hoje, parece ser necessário ultrapassar como que uma primeira prova: o medo ao ridículo, ao escárnio. É toda a Modernidade que nos olha, quando quase ousamos começar a querer falar de Deus.
Stuart Kauffman, eminente biólogo americano, relembra o nome deste estado de coisas: reducionismo. E o que é mais interessante, identifica quatro feridas provocadas por esta visão redutora do mundo, e uma delas é precisamente a amputação da nossa espiritualidade natural.
“Uma terceira ferida refere-se ao modo como “humanistas seculares” agnósticos e ateus foram ensinados tantas vezes acerca da espiritualidade, que esta é insensata ou, no melhor dos casos, questionável […] nós somos assim então arrancados de um aspecto profundo da nossa humanidade. […] reinventar o sagrado […] pode abrir os humanistas seculares à legitimidade da sua própria espiritualidade.
[…] Parte da reinvenção do sagrado será a de curar estas feridas – feridas que sofremos sem nos apercebermos muito bem disto”. (Kauffman, 8,9)[8]
Como vimos, o Mundo foi esvaziado de demónios, mas também de anjos. No entanto, as crianças, pela sorte que as protege, costumam ser mais puras do que nós. A sua pureza permite ver sem consciência e geralmente sem memória. As crianças acreditam no Pai Natal, e por isso vivem-no. Neste mundo sem mitos, despojado de fantasias e de doenças da imaginação como a astrologia e a alquimia, onde reina imperial a Condessa Ciência, uma criança atemorizada perguntou ao redactor de um jornal se era por fim verdade que o Pai Natal existia.
Estamos nos Estados Unidos da América, e corre o ano de 1897. O jornal é o The Sun. A menina e o redactor trocam uma breve correspondência. A menina, de oito anos, pergunta-lhe:
“Querido director:
Tenho oito anos.
Alguns dos meus amigos dizem que o Pai Natal não existe.
O meu Papá diz: “Se o vês no The Sun, então é porque existe”.
Por favor, diga-me a verdade. Existe o Pai Natal?
Virginia O´Hanlon
115 West 95th Street”
O editor, Francis Pharcellus Church, tomou o tempo de responder a esta carta de suma importância. A sua resposta foi publicada pelo jornal como um editorial, no dia 21 de Setembro de 1897.
Aqui, então, de modo a irmos curando as nossas ferias, a carta, a magnífica carta:
“VIRGÍNIA, os teus amigos estão enganados. Eles têm sido afectados pelo cepticismo de uma Era céptica. Só acreditam naquilo que vêem. Pensam que algo não é possível se as suas pequenas mentes não são capazes de o entender. Todas as mentes, Virgínia, seja de homens ou de crianças, são pequenas. Neste grande Universo, o Homem é um mero insecto, uma formiga no seu intelecto, quando comparado com o mundo infinito ao seu redor e quando medido pela inteligência capaz de entender toda a verdade e todo o conhecimento.
Sim, VIRGÍNIA, existe o Pai Natal. Ele existe da mesma forma que existe o amor e a generosidade e a devoção, e tu sabes que isto existe e dá à tua vida o que de mais alto tem de beleza e alegria. Ai! Que aborrecido seria o mundo, se não existisse o Pai Natal! Seria tão aborrecido como se não existissem VIRGINIAS. Deixaria de haver a fé mais singela, a poesia, não haveria mais romance que tornasse tolerável esta existência. Não teríamos mais prazeres, excepto o dos sentidos e da visão. A luz eterna com a qual as crianças enchem o mundo seria extinta.
Não acreditar no Pai Natal! É como não acreditar em fadas! Poderias pedir ao teu pai que contratasse homens para vigiar as chaminés na Noite de Natal para agarrar o Pai Natal, mas mesmo que eles não o vissem a descer, o que provaria isso? Ninguém vê o Pai Natal, mas não há prova nenhuma que o Pai Natal não exista. As coisas mais reais no mundo são aquelas que os homens e as crianças não podem ver com os seus olhos. Já viste alguma vez fadas a dançar sobre a relva? Claro que não, mas não há nenhuma prova que elas não estejam lá. Ninguém é capaz de conceber ou imaginar todas as maravilhas que estão por ver ou que são invisíveis neste mundo.
Podes tirar o chocalho a um bebé e ver o que faz barulho lá dentro, mas há um véu cobrindo o mundo invisível, que nem o homem mais forte, nem mesmo a força unida de todos os homens mais fortes poderia retirar. Somente a fé, a fantasia, a poesia, o amor, o romance, podem afastar essa cortina e ver e retratar a superna beleza e glória que está além. É tudo real? Ah! VIRGÍNIA, em todo este mundo não existe nada real e duradouro.
Dizer que não há Pai Natal! Graças a Deus! ele vive, e vive para sempre. Mil anos a partir de agora, Virgínia, não, dez vezes dez mil anos a partir de agora, ele continuará a alegrar os corações dos pequeninos”.
Antony Capitão
Bibliografia:
A Bíblia.
BAIME, A.J. & VOLKER, J. 2018. What Happened When WWI Paused for Christmas. History.
CHUL-HAN, B. 2020. Do Desaparecimento dos Rituais. Relógio D’Água.
DURAND, G. 1993. A Imaginação Simbólica. Edições 70.
EDMONS, P. “Quando a guerra parou para se comemorar o Natal”. National Geographic Portugal.
KAUFFMAN, S. 2010. Reinventing the Sacred: A New View of Science, Reason, and Religion. Basic Books.
RIMBAUD, A. 1995. Uma Cerveja no Inferno. Assírio & Alvim.
SAGAN, C. 2012. Um mundo infestado de demónios. Gradiva.
SCHWARZ, F. 2019. O Desencantamento e Re-encantamento do Mundo Actual. Revista Fénix. [https://www.revistafenix.pt/o-desencantamento-e-re-encantamento-do-mundo-actual/).
TERSEUR, F. 2019. “O Simbolismo da Festa de Natal”. 40 Anos de Filosofia na Nova Acrópole. Edições Nova Acrópole.
Nota:
A tradução que se apresentou é uma revisão própria de uma versão encontrada na internet anos atrás, cujo endereço exacto não se consegue infelizmente mais reaver. Existem várias traduções da carta. A que se apresenta deve o crédito a quem a traduziu inicialmente, sendo que aqui se retocaram algumas palavras e expressões. Para a versão inglesa original, consultar por exemplo “Yes, Virginia, There Is a Santa Claus”. A imagem do editorial é retirada de uma pesquisa do banco de imagens da Google.
[1] Gilbert Durand, no seu livro A Imaginação Simbólica, refere-se ao Ocidente que perdeu a capacidade de diálogo com as imagens, com os símbolos, que esvaziados do seu conteúdo, perderam para nós o seu potencial de comunicação do indizível.
[2] Byung Chul-Han, no Do Desaparecimento do Rituais, faz alusão a como o rito se vai esfumando nas nossas sociedades modernas.
[3] Ver Fernando Schwarz, “O Desencantamento e Re-encantamento do Mundo Actual”.
[4] “Quando a guerra parou para se comemorar o Natal”.
[5] A Bíblia. Evangelho segundo S.Mateus, 4:4.
[6] Frase retirada do capítulo “Mau Sangue “, do livro Uma Cerveja no Inferno. A nosso ver, “Uma Temporada no Inferno” reflecteria melhor o sentido do livro. A citação completa: “É mais que certo, é oráculo o que digo. Eu vejo, e como não sei explicar-me sem palavras pagãs, preferia calar”.
[7] Referência ao livro de Carl Sagan, Um mundo infestado de demónios.
[8] Tradução própria a partir do original.