Em tempos, Jorge Angel Livraga (1930-1991) escreveu um artigo, muito interessante, não tanto pelo tema em si mesmo, mas sobretudo pela sua visão sobre a temática. Esse artigo foi intitulado «O que fazem os mortos no além», refletindo numa linguagem acessível, as relações que os mortos têm com os vivos, ou simplesmente, a comunicação entre desencarnados e encarnados. Em certo momento, Jorge Livraga transmite-nos a convivência com o mecanismo da mediunidade, sem referir o termo, escrevendo que «tanto os vivos como os mortos são interdependentes e fazem-nos chegar os seus desejos e temores por uma espécie de telepatia, e nós fazemos o mesmo com eles». Mas logo confessa que esta instrução que nos fornece é voluntariamente limitada. Claramente que Jorge Livraga tem a noção da complexidade deste mecanismo espiritual complexo, muitas vezes conhecido por sexto sentido. A mediunidade é de facto esta capacidade de o ser humano compartilhar o mundo físico e espiritual, apoiado no princípio universal da crença na sobrevivência da alma. A humanidade também tem o seu próprio Espírito, que podemos designar por «Espírito do Mundo», anima mundi, ou simplesmente «Espírito», o Geist ou Weltgeist, entendido como a atividade humana exercida no interior da mente do ser humano. A mediunidade é então um intermediário de si mesmo, proveniente dos níveis mais profundos da personalidade anímica, da consciência subliminar. Geist é um conceito central na obra «A fenomenologia do Espírito», de Georg Friedrich Hegel (1770-1831), que deve ser interiorizada como a história do Espírito ou da Consciência, muito difícil de entender, mas que influenciou muitos outros pensadores.

Os estudos do professor de filosofia da ciência, da universidade de Turim, Ernesto Bozzano (1862-1943), e do filósofo, educador e escritor brasileiro, José Herculano Pires (1914-1979), foram determinantes para nos elucidarem sobre uma história do Espírito. Ernesto Bozzano trocou muita correspondência com o físico e químico britânico, William Crokes (1832-1919) e com o físico e escritor inglês, Oliver Lodge (1851-1940), ambos investigadores dos fenómenos espiritualistas, e com o médico fisiologista francês, Charles Richet (1850-1935) que fez estudos sobre o ectoplasma. Todos eles, atores da comunidade científica, que não descuraram a importância da investigação dos comportamentos espiritualistas. Foi neste plano que Ernesto Bozzano desenvolveu a sua visão sobre a história do Espírito, com uma versão posterior, na obra de José Herculano Pires, intitulada «O Espírito e o Tempo». Este autor identificou diversos níveis históricos para a manifestação da consciência humana, que não sendo exatamente cronológicos, apelidou-os de horizontes da evolução do Espírito, como se fossem limites físicos alcançados pela visão.

Representação gráfica do espírito, por Robert Fludd. In Utriusque cosmi maioris scilicet et minoris metaphysica, physica atqve technica historia (1619). Tomus II. Tractatus I, sectio I, liber X, “De triplici animae in corpore visione”. Domínio Público

Por um lado, a razão desenrola-se no processo histórico de busca recorrente de equilíbrios, ordem e equidade, presentes numa visão utópica, que leva Platão (séc. V-IV a. C.) a sonhar com a República, Francis Bacon (1561-1626) com a inspiração da Nova Atlântida e, Karl Marx (1818-1883) com o projeto da sociedade sem classes. Por outro lado, assinalam-se também, as origens mediúnicas da religião, que tiveram os seus momentos decisivos da evolução humana, com o aparecimento de Hermes, Moisés, Buda, Confúcio, Jesus, Maomé, os quais vieram revelar aos seres humanos, alguns mistérios ocultos do processo da vida, ensinando-lhes princípios para a orientação espiritual.

O primeiro horizonte designa-se por tribal e está associado à mediunidade primitiva. O nosso ancestral do paleolítico não tinha ainda a perceção para os fenómenos metapsíquicos, mas trazia consigo uma predisposição, um código proto-espiritual que o impeliu naturalmente, a adorar as pedras, os rochedos, os animais e os fenómenos celestiais, preparando-o para as manifestações mitológicas e politeístas.

O advento da agricultura, há cerca de 12000 anos, levou à sedentarização dos povos, permitindo o desenvolvimento da atividade anímica, e o aprofundamento na crença dos espíritos da Natureza. A terra representava a deusa-mãe e o céu com o seu expoente no sol, simbolizava o deus-pai. Como vem explanado por José Herculano Pires, o ritual osírico transferiu-se para os cerimoniais da ressurreição cristã, tal como o dogma da Virgem-Mãe tem a sua origem no mito da virgindade da terra, a deusa-mãe que permaneceu imaculada e após a fecundação do deus-sol fertilizava os solos após o inverno. Osíris é o deus egípcio fluvial que purificava a terra, cuja representação também encontra equiparação em S. João Batista. Desde os tempos mais ancestrais que a constelação de Virgem é a primeira a aparecer no céu, logo depois do solstício de inverno, simbolizando a preparação da terra para receber a luz da regeneração e os frutos da fecundação. Este horizonte agrícola manifestava ainda o mito do pão e do vinho, através do ritual da impregnação, tal como era testemunhado pelas deusas Deméter e Ceres e os deuses Dionísio e Baco, em cujas cerimónias pagãs, o pão era impregnado pelo vinho, simbolizando a matéria fecundada pelo espírito. Estes rituais mitológicos acabaram por conformar o deus agrário que está representado no Antigo Testamento.

Dionísio, escultura em mármore, século II aC. C., Museu do Louvre. Domínio Público

A mediunidade coletiva foi dando lugar ao culto individual dos espíritos e a ideia do renascimento foi adquirindo substância. Começou-se a vislumbrar o horizonte civilizado, marcado pela fusão do humano com o divino nos chamados Estados Teológicos, no Egito, Assíria, Babilónia, China, Índia, Israel e Pérsia. Os arquétipos coletivos são representados nos antigos mistérios egípcios, babilónicos e gregos, mostrando que são em simultâneo, uma espécie de sonhos e complexos da humanidade, de que nos fala o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). O inconsciente coletivo foi interiorizando a necessidade da evolução por via da espiritualização do ser humano, fenómeno tão bem retratado no dilúvio bíblico de Noé, na epopeia suméria de Gilgamesh e no dilúvio grego de Deucalião.

O movimento perpétuo da história do Espírito, chegou ao momento de operar a transição do politeísmo para o monoteísmo, com os testemunhos dos profetas do Antigo Testamento. Tínhamos alcançado o horizonte profético, em cujos sacerdotes estão representadas as dimensões, social, mediúnica e espiritual. Mas houve outros eventos históricos de relevo, neste horizonte profético: a reforma grega do orfismo pelo pitagorismo, a indiana do hinduísmo pelo budismo, a chinesa do taoismo pelo confucionismo, a síria do judaísmo pelo cristianismo. Constata-se então, uma fusão no espaço hebraico, dos horizontes agrícola, civilizado e profético, preparando o advento do cristianismo. Porém, os seres humanos ainda não estavam preparados para compreenderem esta revolução espiritual, apesar de posteriormente, emergir a insistência sublime do movimento franciscano, em vivificar diafanamente, a mensagem de Jesus Cristo. De uma forma geral, a filosofia foi-se tornando serva da teologia, constituindo um tempo para a racionalização dogmática da fé, operando-se outra transformação com o movimento renascentista, que promoveu a luta contra o fideísmo. Releva-se o processo de Erasmo de Roterdão (1466-1536) que criticou os desvios aos verdadeiros fundamentos da mensagem de Cristo, e a reforma protestante de Martin Luther (1483-1546) e John Calvin (1509-1564) que incitou a igreja a promover a sua renovação, com a realização do concílio de Trento (1545-1563) ou da Contrarreforma, motivando a ampliação dos poderes da instituição do Santo Ofício da Inquisição e o nascimento da Companhia de Jesus.

Esta longa trajetória foi preparando um novo horizonte espiritual organizado e, chegados ao século XVIII-XIX, estavam criadas as condições espirituais para o aparecimento da mediunidade organizada, cuja referência principal é a nebulosa de Emanuel Swedenborg (1688-1772). Este polímata e espiritualista sueco deixou uma vasta obra, reconhecida pela UNESCO como registo da memória do mundo. Helena Blavatsky considerava que Swedenborg foi um dos maiores visionários da história, mas o seu saber era sobretudo motivado pela sua intuição. O século XIX foi rico de experiências espiritualistas, como se o processo mediúnico estivesse emergente, destacando-se os casos do teólogo escocês, Edward Irving (1792-1834) com o acometimento geral do dom das línguas ou xenoglossia, a clarividência do espiritualista Andrew Jackson Davis (1826-1910), as manifestações tiptológicas dos Shakers da Califórnia ou Sociedade Unida dos Crentes na Segunda Aparição de Cristo, fundada em meados do século XVIII e, das irmãs Katherine Fox (1837-1892), Leah Fox (1814-1890) e Margaret Fox (1833-1893). Relembramos que a própria Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891) organizou a Societè Spirite, em 1872, na sua estadia pelo Cairo, para investigação dos fenómenos espiritualistas. Blavatsky reconhece a existência de uma natureza perispiritual, que envolve o corpo físico humano, semelhante a um «aglomerado de partículas grosseiras ou emanações humanas dotadas de imperfeições, fraquezas, paixões, enfim, de apetites humanos, que são capazes, sob certas condições, de se tornarem efetivas, que os budistas chamam de Skandhas, os teosofistas, de alma e, Allan Kardec, de perispírito». Ao referir-se a Allan Kardec (1804-1869), Blavatsky reconhece neste educador francês, o valor da sua Codificação Espírita.

Helena Petrovna Blavatsky. Domínio Público

Mais recentemente, no último quartel do século XX, a comunidade científica começa a despertar interesse na investigação dos estudos percetuais. Neste âmbito, destaca-se a inovação do psiquiatra Ian Stevenson (1918-2007), e dos seus seguidores Bruce Greyson, Jim Tucker, Kim Penberthy, Edward Kelly, Marieta Pehlivanova, entre outros, do departamento de Estudos Percetuais, da universidade de Virginia (EUA), na investigação científica sobre as «Experiências de Quase-Morte» (EQM) e as «Crianças que Recordam Vidas Passadas». Em 2014, surge o manifesto para a ciência pós-materialista, assinado por cerca de 300 investigadores de diversas universidades e instituições de investigação científica mundial, para aprofundamento de fenómenos espiritualistas.

Há uma outra história da humanidade, dentro de cada um de nós, que se vai maturando na consciencialização coletiva da vivência das experiências fenomenológicas qualitativas. É um problema difícil para a consciência humana, uma vez que não podemos fugir a essa natureza tão íntima, independentemente da forma como cada um sente a ligação ao divino. Como referiu o filósofo alemão, Martin Heidegger (1889-1976), o «Espírito há de ser por sua vez, afim com o tempo e com a sua essência», pois a evolução espiritual não se antecipa no tempo.

Carlos Paiva Neves

Imagem de destaque: Ilustração das correspondências entre todas as partes do cosmos criado, com a anima mundi retratada como uma mulher, do Utriusque cosmi maioris scilicet et minoris metaphysica, physica atque technica historia de Robert Fludd. (Oppenheim, 1617). Domínio Público