«E às trevas, Deus chamou noite».

Gen. 1.5

O nosso laboratório, ou melhor, o nosso museu interior deve ser um museu tendencialmente vazio de peças, que se aprofunda na noite e se engrandece para o dia, mas vazio, digno da presença de Deus apenas. Mas para isso, temos de aproveitar este tempo nocturno e não ter medo de fazer perguntas ao seu interior, não temer cair pela frágil escada do crescimento hipócrita, e não temer arrancar a mais identitária das máscaras. Mais vale espreitar-se timidamente por uma cara de pecador que se deseja arrancar do que fechar os olhos dentro de uma máscara de virtudes que se quer manter, por maiores que sejam estas virtudes, porque, por não serem nossas, quando se forem, arrancar-nos-ão a insubstituível face, e o peso que sentiremos depois não desaparece. Com a experiência, a noite interior há-de converter-se numa metodologia, num conjunto de técnicas para a prospecção, escavação e análise, no mais real e brutal dos métodos invasivos, doloroso, é certo, porque pressupõe sempre a destruição do sítio arqueológico. O próprio frio da noite congela-nos, endurece-nos, só para nos estilhaçar depois, mas faz parte do processo de identificação e de levantamento de dados, se somos feitos disto ou daquilo, quantos pisos temos, o que o habita, onde e há quanto tempo, o que é passivo, organizado, perturbado, resoluto e até divino. Geralmente, começamos pela prospecção horizontal, e a nossa consciência vai-se tornando num sapador, abrindo pequenas trincheiras onde se possa esconder, ou, simplesmente, adormecer; por vezes, quando o nosso entusiasmo é crescente e heróico, decidimo-nos pela vertical, e aqui a consciência parece um drone de reconhecimento, parece voltar a ser mais um soldado do que um arqueólogo, é verdade, é quase como um esplêndido espírito de Deus sobre as águas obscuras ou um oleiro que se lança sobre o caos informe, mas munido de armas, muitas armas, e disposto à aventura da morte. Em todo o caso, e como nos perdemos muitas vezes, vamos aprendendo a perceber a importância do uso da nossa bússola interna, se a tivermos levado connosco, que nos apontará sempre um determinado oriente, mas também das estacas que fixam um eixo ao qual regressar, dos cordéis e fios de prumo que limitam a teatro de operações para não começarmos a pensar noutras coisas e a fantasiar, e vamos começando a colocar setas, algumas setas que nos recordem da meta, ou que, ao menos, nos impeçam de esquecer do caminho que já foi trilhado e, assim, recomeçarmos onde parámos. Vamos aprendendo que nada pode permanecer oculto para quem se habitua a ver na noite, mais ainda para quem já nasce de noite, e que vamos sendo tão breves e certeiros quanto os Espartanos, respondendo apenas «se» ao «e se eu não for capaz de a vencer?» perante toda a máscara e miséria. Volta e meia, neste método, surge aquela máscara principal, aquele sentimento de abandono com o qual já nascemos, de termos desprotegido algo que não podíamos ter abandonado, de termos tido medo, de termos fugido, traído, talvez, aquilo que maior esperança depositava em nós, o nosso melhor amigo cá dentro. E quando nos habituamos a isto, percebemos que a noite é uma redenção necessária, um nunca mais voltar a cometer o mesmo erro, uma forma de nos perdoarmos enquanto caminhamos. Todo este silêncio dilata a noite e permite investigá-la, dá significado a todos os seus segundos em direcção à luz, deixa de haver diálogo ou controvérsia, ninguém se queixa, ninguém duvida, ninguém fala em vão, pois tudo o que se vai dizer é de extrema importância. Mas é uma cruz grande e difícil de transportar, que vai estilhaçando tudo pelo caminho, e não só a noite, mas toda a vida se converte num calvário necessário e, de certa forma, belo. A arqueologia da noite interior encontra vestígios de guerras e de destruição de cidades, pois quando adormece o homem, acorda um mundo misterioso, feito de solidão e silêncio.

Orfeu perante Plutão e Prosérpina, Jan Brueghel, o Velho

Aqui, encontramos todos os guerreiros com quem nos cruzámos e todas as cidades antigas que visitámos. Podemos vê-la como um livro de estudo, por vezes iluminado, por vezes obscuro, mas a arqueologia interior não é uma enciclopédia de onde se fixem coisas para se dizer, não é uma formação para repetir banalidades ou fazer um brilharete de oratória, é algo que nos torna mais humanos, porque, à noite, visitamos os antigos templos sem Deus, os campos de batalha sem o choque ininterrupto das espadas, os silenciosos mercados de outrora, as oficinas tristemente paradas, assim como os átrios, os pórticos de colunas, as naves, os altares, as estátuas que admiramos e as que só conseguimos imaginar, tudo disforme e sombrio, uma arquitectura do medo e um urbanismo do desencanto que só nos oferece humildade. E isto não nos parece nada estranho, porque tudo o que pensamos, pensamo-lo sozinhos e às escuras, tudo o que vamos fazendo, pois, também o fazemos numa determinada noite. Nada é definido salvo a perpétua indefinição, nada em nós se transforma, salvo uma certa obscuridade que invoca a luz. Ou, pelo menos, temos essa esperança. Mas isto não implica viver absolutamente na noite, pois isso seria viver numa morte perpétua em vida, acomodados ao isolamento e ao egoísmo, coisa que não é tão impossível quanto se possa pensar. Muitos dos nossos irmãos deixam-se viver assim tempo demais, e nalguns momentos da nossa vida também já o fizemos e sabemos o que significa. Quando não queremos participar na nossa vida, nem na dos outros, quando a boca é um túmulo, o coração uma pedra e a mente só persegue desvarios tenebrosos. Importa, por isto, compreender o justo meio entre a noite e o dia, e viver cada um deles conforme nos cheguem. Por vezes, e como descanso, podemos pensar na forma com que os Antigos se foram adaptando à noite que ia surgindo e o que nos ensinam sobre ela? O sol pôs-se há muito tempo, e as actividades da noite nada têm que ver com as do dia passado, com as das civilizações passadas. O que seria a noite antes do advento da electricidade? Será que nalgum passado remoto já alguém se tinha confundido com o dia e com a noite como nós agora? Será que existiu sempre na terra um lugar onde era ainda de dia? Será que existiu algum em que fosse ainda de noite? Eles adaptaram-se à noite de muitas maneiras, ao passo que uns inventaram cobertores, roupa, e locais para se dormir, outros criaram mitos derivados da ausência do sol e que expressam o grande amor que lhe tinham, valorizaram a presença das estrelas, a busca pelo calor e pela luz, e aprenderam a ler-lhe um significado, protegeram o mistério e traduziram-no, aproximaram-se ainda mais da realidade. Fizeram muitas cerimónias para que o sol não se esquecesse de acordar de manhã, para que a noite não quisesse reinar indefinidamente.

Amaterasu, a Deusa do Sol no Japão, saindo da caverna e trazendo novamente a luz para o universo. Domínio Público

Domesticaram o fogo e conquistaram a noite, o seu habitat natural, e usaram-no para iluminar as danças, as canções e as narrativas heróicas de outros tempos. E, séculos ou milénios mais tarde, parece que também a noite desapareceu algures, pois vieram as cidades onde pouco se viam as estrelas, locais nocturnos que eram, sonora e luminosamente, mais intensos do que os diurnos. Desapareceu aquele fogo central da comunidade e das casas, a luz e o calor passaram a estar por todo o lado, individualizados, pois todos tinham a sua pequena luz particular, em forma de lanterna, televisão ou telemóvel, por exemplo, dissuasores da comunidade e mais egoístas. Nessa altura, doía mais a luz artificial do que alguma vez as nossas trevas. Mas foi assim que fomos crescendo, entre longos períodos de luz e longos períodos de obscuridade, até chegarmos aqui, com uma gigantesca herança e uma grande responsabilidade: continuarmos a fazer caminho. Ao vislumbrarmos por entre a poeira do tempo, vemos que os nossos antepassados foram sendo mergulhados no dia e na noite, no fogo e na água, na morte e na vida, amolecidos e endurecidos, purificados e rectificados, como uma espada que o ferreiro divino amolece, bate e purifica ao longo do dia, e que mergulha, endurece e fixa ao longo da noite, para a provar e definir no dia seguinte. O dia, como uma espécie de fogo, vai-nos amolecendo, dobrando e batendo com o fim de nos purificar, mas a noite, como uma espécie de água, fixa-nos naquilo que realmente somos, dá-nos uma dura dose de realidade, gela-nos o peito. O dia é o choque de espadas e o golpe de martelo, que produz um clarão por toda a parte, a noite é um suspender das armas e um ganhar-se balanço para o golpe seguinte. Neste par fiel do dia e da noite, como em qualquer outro, são necessários um justo equilíbrio, uma justa separação e uma justa combinação. É necessário que saibamos viver o que nos pede o dia e o que nos pede a noite. Viver demasiado o dia é uma hiperactividade que despreza o descanso, como uma prova constante onde não chegamos a provar ou fixar nada. Viver demasiado a noite, é uma letargia que despreza a acção, como se tivéssemos sido condenados a algum inferno perpétuo ou ao mesmo pensamento incessante. De noite desaparece o idealismo teórico, estamos frente a frente com o que de facto somos, revoltamo-nos e, se fizermos bem as coisas, revolucionamo-nos em nome do que devemos ser e fazer no próximo dia. Como o dia nos faz esquecer a morte e a noite nos faz esquecer a vida, temos de os dosear e, dentro dos possíveis, experimentá-los sem os misturar. De dia, somos postos à prova, sem o saber, alimentamo-nos do idealismo do que queremos ser, mas a nossa virtude cede à máscara e ao defeito. Ganhamos altura no que ponderamos, como um sol pessoal, ardemos na vaidade da conquista para logo a seguir descermos à humilde constatação da noite interior.

Totalidade durante o eclipse solar de 1999. Proeminências solares podem ser vistas ao longo da borda (em vermelho) bem como extensivos filamentos coronais, Luc Viatour. Domínio Público

Ensinaram-nos os nossos antepassados, como Aristóteles, que o equilíbrio do mundo e dos seus elementos, bem como o do corpo humano e dos seus humores, estão fundados numa harmoniosa combinação de contrários, num sistema de categorias binárias, de pares que geram a nossa percepção da dualidade, que opõem as conhecidas séries de sol e lua, alto e baixo, direita e esquerda, noite e dia, claro e escuro, luminoso e sombrio, leve e pesado, frente e costas, quente e frio, seco e húmido, masculino e feminino, superior e inferior. Qualquer desequilíbrio ou desarmonia destes princípios contrários, fazem com que a ordem e a saúde dêem lugar à desordem e à doença. No mesmo pensamento filosófico-médico, o quente e o frio, bem como o seco e o húmido, estão directamente associados aos valores da masculinidade, quente e seca, e da feminilidade, fria e húmida. Mas esta classificação não é estanque e os valores somam-se, subtraem-se, multiplicam-se e subdividem-se para que melhor possamos compreender outros arquétipos e outros pares, como naquilo que diz respeito ao corpo humano, por exemplo, onde o quente e o húmido se aliam do lado da vida, enquanto o seco e o frio se aliam do lado da morte, subdividindo nestas duas realidades os aspectos vivos e mortos da masculinidade e da feminilidade. Este equilíbrio do mundo, que é o princípio da acção, expressa-se, necessariamente, num equilíbrio do modo de viver e compreender humanos, onde tendemos ora a afastar, ora a aproximar, os contrários, por forma a reconhecer a sua importância e lugar, e termos, quiçá, no seu movimento, um vislumbre de uma unidade vestida pela dualidade. Se quisermos dividir a vida em três partes, por exemplo, em juventude, idade adulta e velhice, percebemos que numa primeira fase, estes contrários parecem encontrar-se profundamente latentes dentro de uma unidade crescente, numa segunda fase, estes manifestam-se, crescem e multiplicam-se até ao infinito, e numa terceira fase, estes tendem a aliar-se e a regressar à mesma unidade. Podemos chamar-lhes a vida diurna e nocturna dos contrários, onde vão nascendo e morrendo, ganhando humidade e secura, profundidade e altura, mas cujo fim é o do temperarem uma unidade real que os ultrapassa. É um paradoxo, pois todos os contrários são ilusórios, mas constituem o caminho necessário para a unidade. Luz e trevas são irreconciliáveis, mas cada um deles só pode gerar o outro. Podemos dizer com os budistas que a alma peregrina deve manter a vigia durante os três estados da vida, tomando conta da personalidade como se velasse um doente acamado, esperando o seu bem-estar. Estes três estados da vida expressam-se nas três fases da noite, que são a tripartição do Homem, as três salas que conduzem ao fim dos trabalhos ou à saída da caverna platónica, as três virtudes teologais, a trípode do discípulo, e por aí adiante. São também três caminhos possíveis, como o da solidão, o da escuridão emocional e o da introspecção. Estas três fases da noite, o entardecer, a noite e a aurora, correspondem, como fez S. João da Cruz, aos sentidos, ao espírito e a Deus. Neste caso, a primeira fase da noite seria a oportunidade de a alma sair de onde está, das ilusões do dia, perdendo o apetite e o amor pelas coisas do mundo, substituindo-o pelo amor à verdade, substituindo a sua vontade pessoal pela vontade de Deus. É nesta fase que escavamos na vida física das paixões e dos sentidos, no nosso aspecto somático, dentro do túmulo de carne onde fomos encerrados. Foi aí nesse local que primeiro anoiteceu e nem nos apercebemos disso, pois sempre acreditámos num sol perpétuo. A segunda fase da noite é feita de atenção, é o caminho da alma que procura a união com Deus, aqui já não importa se é escura para os sentidos, porque é escura, sim, para o entendimento, onde este tenta escavar o solo onde a construção será edificada, onde se eleva o que dura e o que é válido, onde se ouvem as asas da aurora crescente. A terceira fase é um mistério, representa a união com Deus, que é, para nós, uma noite, mas que coincide com o nascimento de um novo dia e com a vida do sol espiritual. Aqui todos os devaneios e sonhos se apagam, obscurecem-se as paixões e os medos, surge Deus com todo o seu esplendor a governar o dia.

Ilustração do dualismo de René Descartes: as sensações são transmitidas pelos órgãos dos sentidos à glândula pineal no cérebro e depois ao espírito imaterial. Domínio Público

A noite é o fim de um trabalho, a sua análise e uma necessidade de crescer, onde é o homem quem cria a sua própria aurora e onde tudo nele evoca um despertar. A noite é, no geral, a noite dos sentidos, porque as mãos não tocam, os ouvidos não ouvem, os olhos não vêem, o paladar não prova, o olfacto não cheira, a mente não capta. E quando percebemos isso, é como se o que somos realmente estivesse coberto de pó ou fumo. Aqui, como arqueólogos, identificamos e esvaziamo-nos de tudo, e invocamos com o que realmente somos o dia que há-de nascer. E ele nascerá, em algum lugar da terra. Até lá, vamo-nos esvaziando como a noite, contemplando as estrelas que nos guiam, e esperando dar ao sol um motivo para voltar a iluminar o mundo. De noite, devoramos o nosso passado, sonhamos o que poderíamos e deveríamos ter sido, revoltamo-nos com as trevas que definem a claridade vindoura. Talvez o mais interessante sobre a noite seja a nossa melhor compreensão da morte e de Deus. Mas também a certeza de que encontramos a manhã dentro e, pouco depois, também o sol, quando sonhamos em ser homens e mulheres melhores. É aí que encontramos a vitória sobre a noite. Podemos afirmar, e não estaremos enganados, que amanhece em cada um de nós quando somos esse homem e essa mulher verticais, que amam a sua origem celeste e que se empurram para longe as suas vaidades internas. Cumprimos com a Vontade de Deus quando não temos qualquer vontade relativamente às coisas pessoais. É quando os nossos desejos e sonhos estão à deriva, às escuras, que mais notamos a acção do sol e dos ventos divinos sobre as nossas vidas. Esta deriva é uma confissão espiritual, uma aventura guerreira, uma busca pelo discernimento. De manhã, desaparecem as estrelas todas, os sonhos todos, e as possibilidades são infinitas. E nessa manhã, já seremos mais sensíveis aos devaneios dos outros, às suas revoltas pessoais, aos seus sonhos e medos, à sua humanidade incompleta. No fim, saberemos ser mais adamantinos, e não apenas de vidro transparente, menos frágeis, mas mais resistentes no momento de deixar a luz solar passar por nós e para os outros.

Esta reflexão é uma perspectiva sobre os momentos de crise intensa pelos quais vão passando os Homens, individual e colectivamente, que representam sempre uma oportunidade de crescimento que a vida nos dá. Vivemos numa sociedade que mascara a crise nocturna, que a teme, medica e expulsa, e onde nenhum médico, psicólogo ou professor nos ensina a superá-la, porque não se a entende como um momento de transformação, de verdadeiro despertar espiritual. A crise nocturna é um apelo à oportunidade de nos transmutarmos, uma invocação do entendimento matutino, um abrir espaço ao raio divino.

Ricardo Martins

Bibliografia:

Delia S. Guzmán, “O Dia e a Noite”, Revista Fénix, 2022.

F. Héritier, “Masculino/feminino”, Enciclopédia Einaudi 20: Parentesco, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989.

J.P. Mallory, Douglas Q. Adams, Encyclopedia of Indo-European Culture, London, Fitzroy Dearborn Publishers, 1997.

G. Bachelard, La poétique de la rêverie, Paris, P.U.F., 1971.

S. João da Cruz, Obras Completas, Marco de Canaveses, Edições Carmelo, 2005.

Imagem de destaque: Luzes e escuridão da terra (montagem). Domínio Público