«E às trevas, Deus chamou noite». (Gen. 1.5)
Quando a noite cai, é como uma tempestade sobre as águas, é como as aves do rio Estinfalo, que, com as suas grandes asas, ocultam a luz quando se poem a voar. Ela oculta todos os mistérios e dá a todas as coisas a melancolia de uma vida que foi interrompida, aos rios e aos mares, aos montes e aos vales, e até aos Homens. E, por vezes, esta melancolia nocturna penetra-nos tão profundamente, que a preservamos em plena luz do sol. A memória da noite torna-se em nós rainha, impede-nos de ver o dia e só traz consigo a constatação dessa mesma melancolia. É verdade, vivemos tempos nocturnos, mesmo de dia. É como se tivéssemos sido cobertos pelo pó de mil ventos ou pelo fumo de algum grande incêndio, vindo de tão longe, que nos parece vir de todo o lugar. Este pó e este fumo, que descem sobre nós, obscurecem-nos, tornam-nos nocturnos e pesados, ofuscam todas as coisas, não deixam passar a luz nem a reflectem, deixam-nos numa perpétua tempestuosidade, ocultam-nos debaixo da pele, e a existência de um sol generoso vai-nos parecendo ser cada vez mais uma fantasia dos antepassados. De facto, nascer e viver no mundo tem sido cada vez mais um “passar a noite” nalgum lugar da terra, habitá-la com a consciência entre quatro paredes, procurar uma janela; mas agora ainda é mais do que isso, é mais do que procurar algum abrigo nela, é sobreviver à noite, é permanecer para além dela, é invocar a aurora e passar pelos seus dedos com o que sobra de nós intacto, com tudo aquilo que não sabemos que somos, mas que resiste, que sobrevive porque é real. Bem sabemos que isto não é novo, pois foi ainda no tempo dos nossos antepassados que o dia se foi organizando em torno da noite, uma vez mais, segundo dizem, e a pouco e pouco. Mas, nesse tempo, as coisas distinguiam-se bem. Hoje, a belíssima tarde já não é senão o prelúdio da noite, da mesma forma que a majestosa manhã só lhe decreta um acanhado fim, mas o dia luminoso, propriamente dito, é como se não existisse, porque já não o conseguimos experimentar sozinhos, com os sentidos, com o entendimento, nem tocar com a imaginação. De forma idêntica, parece que a vida se foi organizando cada vez mais em torno da morte, e nem sempre é fácil perceber se estamos a nascer ou a morrer para alguma coisa, se estamos a viver num tempo de morte ou a morrer num tempo de vida, se há algum momento em que estejamos realmente vivos ou até realmente mortos, pois a obscuridade substitui-se apenas por mais obscuridade ainda. A vida diurna tornou-se um mito. Todas as coisas diurnas vão-nos parecendo cada vez mais nocturnas, tudo o que era do domínio da noite conquistou ferozmente o dia e obscureceu-o, tudo o que fazemos parece gerar um resultado obscuro e todas aquelas coisas que queríamos há uns anos vão-nos desagradando cada vez mais pelo negrume que nos trazem, vão-nos entristecendo a ponto de desejarmos que ninguém tenha de as desejar, pois são obscuras, mesmo quando dizemos que são luminosas. Agora, só somos virtuosos quando isso nos dá gozo e quando se ocultam os defeitos, e queremos sê-lo mais pelo dia que nos dizem que há-de vir do que pela virtude em si própria. Mas, se este véu nocturno nos fosse arrancado de repente, éramos fulminados, não pelo fulgor do espírito e da verdade, mas por ficarmos face a face com a tragédia dos nossos vícios. A nossa única salvação na noite é quando estamos juntos, aí, sim, parece ser dia, mas, depois, regressamos todos sozinhos às trevas. E nelas, quanto mais nos deveríamos sentir gratos pela vida que nos foi dada, mais depressa lhes mostramos a nossa ingratidão. Esta noite é a nossa cegueira intrínseca, e é nela que mais percebemos o quanto resistimos ao dia, à luz que nos traz a vida. Percebemos o quanto fugimos daquilo que nos quer iluminar, e o quão lentos ficamos, como uma sombra fúnebre, que baixa a temperatura com a noite, e só deixa cinza para trás. Diremos logo que foi o fogo a origem desta cinza, mas não o foi, foi uma morte, que, como um fogo, quer converter tudo naquilo que ela é.
Tudo ganha uma igualdade e uma unidireccionalidade cinzenta. Mesmo com os olhos abertos é como se os tivéssemos fechados, e só vemos os acontecimentos dolorosos, a nostalgia e o pessimismo, as mágoas e os arrependimentos, numa tortura perpétua. À noite, as cores estão limitadas, os sons quase que desaparecem, o movimento cessa, surge em tudo a carência, a tristeza e a dúvida, tudo é um mistério sem guia. A quietude nocturna, os rumores imprecisos, a visão fantasmagórica, tudo leva para longe o conhecimento que desaparece. A única clareza mental é a obsessiva. É o contraste com a festa diurna dos antepassados, é um escape para a vida, um alívio daquilo que realmente desejamos, um vazio, um tédio, um abandono e uma solidão. A noite só renova o sofrimento da impotência frente ao mistério da vida, dos dias sem alimento espiritual, que, quando o são, são todos iguais. Tudo o que fazemos à noite torna-se vão, por lhe vermos a realidade. Quando vamos jantar fora, comemos como se tivéssemos dois estômagos, o nosso e o de algum morto, sem prazer algum. Parece que abrimos um vazio para onde despejamos toda a comida da travessa, de uma só vez. Todos os que comem à nossa volta riem e conversam alto, mas têm almas chorosas que tentam escapar-se-lhes pelos olhos opacos. E enquanto comem, invocam todas as criaturas da noite e os mortos que deixaram a boca na vida. O homem mastiga o que põe na boca, e os demónios mastigam-lhe o que lhes falta, a garganta, a cara e o estômago. São estes mesmos demónios que aproximam os casais à noite, cadáveres um do outro, com a violência de quem não deve entrar na vida. Quando os corpos se unem motivados por sonhos fantasmagóricos, motivados por uma legião de demónios que aguardam por um ventre onde algum deles possa entrar, costumam acompanhar as almas sombrias que têm de voltar a nascer e parece que entram todos com ela, deixando, daí em diante, de vaguear pela casa e de atormentar a futura mãe. Outras vezes, acompanham belas almas, em tudo harmoniosas, mas que vêm para arder, como se fossem nascer dentro de troncos de madeira, para se libertarem e libertarem da obscuridade o mundo. Estes demónios invocam-se uns aos outros em todas as ocasiões nocturnas, são diabos de pintura, com línguas ardentes e olhares faiscantes, garras cintilantes e costas arqueadas, que levam os que amam a amar o que não devem, guiados pelo seu cheiro a enxofre, possuídos por tudo o que já foi expulso do mundo, mas que ameaça voltar a entrar, evocando-se de escuridão em escuridão, de inferno em inferno. São diabos que esfregam as mãos de contentes, que espreitam de todo o lado, que gritam de um modo medonho e que, ainda por cima, se babam com o que não podem provar, formando um leito de rio onde esses que amam se esquecem de amar e começam a amar o medo. É normal, por estarmos destreinados, ter medo da noite, pois os nossos sentidos são outros, e os seus objectos são medonhos. Mas se sobrevivermos ao medo, veremos uma nova vida, uma vida real que rompe o mundo das aparências, que é uma forma de morte. Toda a noite é uma vida sepulcral, uma atmosfera tumular feita de insónia, sono, sonho, escuridão e obscuridade, tudo é uma sugestão da morte, a melhor que temos. Uma pesagem do coração, muito dura, de onde saímos quase sempre derrotados entre os dentes do crocodilo para termos de voltar a morrer, uma e outra vez. Se correr bem, a noite é uma morte tranquila, onde agradecemos o dia, onde revisitamos os nossos antepassados, fiéis como cães, e os saudamos batendo palmas, como crianças que reencontram os seus pais. A noite é o pequeno Inverno do dia, é a morte da natureza, tudo vive nas raízes e parece dormir. É o fechar-se dos olhos em todos os seus aspectos externos e o abrir-se de outros. Também é a purificação dos pensamentos, da memória, a suavização dos desejos, porque pressagia a luz do Eu Interior.
De alguma forma misteriosa, esta noite perpetua-se por não estarmos ainda preparados para o dia, protege-nos e ensina-nos a proteger. Também vamos percebendo que é nesta longa noite que mais sentimos a presença de Deus. Ou, quiçá, que mais sentimos a sua falta. Tanto faz. A verdade é que sentimos cada vez mais a Sua presença neste grande vazio que vai ampliando a obscuridade da noite, nesta obscuridade que é o caminho estreito para a luz, essa luz que não vemos nem somos capazes de reflectir, mas com a qual sonhamos. De facto, nem tudo é mau nesta noite, salvo a sua teimosa persistência, pois esta noite é, na realidade, geradora de vida, como vemos no aspecto lupino de Apolo, que tão bem relaciona a morte nocturna com os poderes fertilizadores da vida diurna. Quando os lobos uivam não invocam apenas a alcateia, mas também a gloriosa manhã, e nós, quer o saibamos quer não, vamos fazendo o mesmo por cada vez que vencemos uma forma de morte. Disseram-nos os Antigos, repito, num tempo em que as coisas ainda se distinguiam, que o amplo Úrano representa o céu nocturno, que é aquele em que mais se vêem as estrelas, e que Crono, que tão ferozmente impõe limites, é a aurora, e que Zeus, que só vive de dia, é o tão desejado céu diurno, e que os seus reinos se revezam infinitas vezes num período de tempo muitíssimo extenso. Olhando hoje para o céu estrelado, percebemos que é esta a nossa oportunidade, pois estamos agora no momento de admirar a permanência das estrelas de Úrano, ou, quiçá, de invocarmos já Crono para que castre a eternização da noite, ou até, quem sabe, de sonharmos com a vinda de Zeus e de querermos imitar, já hoje, os seus feitos heróicos e generosos. Não sabemos ao certo. Mas, na realidade, pouco importa, porque, enquanto pensamos isto, vamos sentindo as cada vez maiores oscilações da barca nocturna, e, se as sentimos, é porque ainda não chegámos à terra firme onde a pomba ígnea há-de pousar, ou da qual há-de regressar, da terra alta e nunca tocada pelas ondas do mar, de onde há-de trazer o ramo das oliveiras que abrem perpetuamente os seus braços ao céu, de onde se extrai o espesso azeite que alimentará o nosso fogo para sempre. Mas isto é um sonho e a noite vai-nos obrigando a acordar. Percebemos, então, que temos de guardar o fogo tal como o possuímos, com o pouco azeite que nos sobra e, com persistência, continuar a nossa viagem sobre as grandes vagas da noite. A noite fria obriga-nos a preservar o fogo, a reunirmo-nos em torno dele e a necessitar cada vez mais da sua presença. De facto, o deus Agni, o mais ígneo dos deuses, é filho da noite, da deusa Ratri, sendo depois criado e protegido pela Aurora, Ushas, aquela que está subjacente a tudo o que dizemos e que virá, quando for o momento, com essas alvíssaras asas de pomba para anunciar a terra firme. Podemos dizer, portanto, que é nesta noite em que vivemos que mais temos de proteger o que nos é sagrado, e que nela mais se notará o fogo interior que há-de invocar a belíssima aurora. Mas também sabemos que o pó e o fumo e o negrume que se abatem sobre nós vão criando um manto de irrealidade sobre o nosso espelho interior, o qual nos impede até de alimentar esse fogo que tantas vezes julgamos extinto, de usar as nossas armas e de identificar um inimigo. De noite é difícil lutar, mas luta-se, sobretudo fazendo-se uso da vontade. Mas também sabemos que a verdadeira batalha e o real derramamento de sangue se dão apenas naquilo que intermedeia o dia e a noite. Os combates dos heróis de todos os tempos contra todo o tipo de monstros são uma espécie de combate entre a noite e o dia, travados ao nascer e ao pôr-do-sol. Se estamos demasiado dentro da noite, tudo é monstruoso, não há alvo onde acertar nem troféu para levantar. A noite do guerreiro esgota-o na humildade e suga-lhe a vontade de combater. Neste momento, somos mais arqueólogos do campo de batalha, maravilhados com o heroísmo dos nossos antepassados, do que guerreiros dispostos a combater, pois agrada-nos mais a paz que mantém a guerra a muitos quilómetros de distância, que empurra para longe o nascimento do dia, para mais usufruirmos de fantasias e fascínios. Para quem vive na noite, estes seres diurnos são um mistério. Como igualar esses heróis do dia, quando as nossas armas são nocturnas, como igualar os seus feitos solares, quando a nossa coragem é a lunar? Até a nossa arqueologia interior é nocturna. Também não podemos rezar aos mesmos deuses protectores do guerreiro, pois a noite tem os seus deuses específicos e de aspecto hediondo, e tem os mil espíritos dos mortos, as mil vozes do vento que nos confundem. Realmente, os deuses estão associados ao dia, os demónios e os espíritos dos mortos é que vivem na noite, e nós, que queremos ser heróis, somos os semideuses a quem se prometeu viver nos seus intervalos, mas que, sem a promessa do heroísmo, nos deixamos finar nesta noite infinita onde os feitos são todos alheios.
Conhecemos a história de Arjuna, o maior dos guerreiros, que, no meio do campo de batalha, se deparou com uma inesperada noite escura, onde o sol da sua identidade imaginária foi totalmente destruído. Por sorte, não estava sozinho, mas tinha dentro de si e ao seu lado direito o seu melhor amigo, que o guiou nesta noite até voltar a ser dia. Nesta noite, Arjuna não combate, mas vigia, e assim se aventura no seu mistério interior. Há-que amar a noite, pois a noite é propícia ao devaneio, mas também à superação, e é-nos muito necessária. De facto, tudo começa como uma noite. Aquilo que a vida quer que façamos, começa por ser um pavor imenso, para depois de cumprido ser um bem-estar muito diferente dos outros. O medo mascarado que nos assalta é como uma noite, mas isso não há-de impedir o dia. Os sons nocturnos até podem ser diferentes, os animais que eram agressivos durante o dia, pacificam-se, e vice-versa, os aromas florais também são diferentes, mas tudo isto que desconhecemos leva a uma superação e a uma necessidade real de despertar. É como se o sol só nascesse se realmente o desejarmos, mas para isso temos de viver na noite, pois é uma purificação onde, a determinada altura, não pode haver luz própria. Nesta noite, o sujeito não dorme, quem adormece são os apetites, é noite para os sentidos, talvez não o seja para nós. A noite é como uma morte de onde podemos observar a vida, recordando o dia que ficou para trás, como uma antiga personalidade, e programar o próximo, como cupidos munidos de flechas em busca de novos progenitores. A noite interior é uma educação, pois é a que mais educa, onde importa mais a virtude do que os bons resultados, importa mais a vivência do que o saber, importa mais o amor e a paciência do que a violenta apresentação dos factos. É à noite que mais surge o remorso, que mais frágil se torna a evasiva, e que mais podemos aprender a melhorar. E não será, também, depois da guerra e do trabalho, o afiar das armas e a rectificação das ferramentas um acto nocturno? Não será mais propícia a partilha de conhecimentos depois de um dia de actividade? Certamente. À noite vêm os aliados e vêm os inimigos, que aproveitam o fim das tréguas diurnas, e vamos aprendendo a distingui-los. Aprendemos que as armas e as ferramentas não servem só a guerra legítima, diurna. Em nós mesmos, são manejadas no escuro. As ferramentas que querem forjar, brilham ao encontrar o ferro disforme e estilhaçam todas as fragilidades como vidros; as armas encontram as armas do inimigo interior e também os seus gritos de dor. Em última análise, usamo-las contra nós próprios e tornamo-nos mais fortes. A noite obriga-nos a recolher e a ver de outra perspectiva todas as coisas. De noite, vê-se o quão depressa a vida nos e se enriquece, o quão presente está, pois vamos transformando todos os ruídos em vozes e todos os vultos em seres. Há toda uma orquestra que se apercebe da nossa atenção, e que nos guia com a sua sinfonia maravilhosa. Observamos a noite e ela saúda-nos e espreita de todos os lados, sem se mostrar, como se há muito nos esperasse. Muitos são os seres que nos vêm falar ao ouvido, por vezes, até o nosso Eu Superior, ou Deus, ou outro raio obscuro disparado da negra nuvem nos vêm falar baixinho, mas não ouvimos, ou não percebemos, salvo quando os sentidos estão muitíssimo distraídos. À noite surgem os fantasmas, levantam-se outros seres, como o fumo das fogueiras, dentro e fora de nós. É esta a grande oportunidade que temos de nos questionarmos sobre a fugacidade da vida, sobre a nossa igualdade e irmandade perante a morte, a imortalidade da alma, o mistério da existência, a presença de Deus, e de nos prepararmos para o dia. Mas se há, por um lado, muita coisa que a noite não nos permite fazer, existem, por outro, muitas que já nos reclamam toda a atenção e que podemos começar, como desencadear esse heroísmo dentro, ocultado pelas poeiras do tempo, e aprender a viver um dia de cada vez, sem precisarmos que nenhuma tragédia nos obrigue a isso. Pois todos somos, nesta noite, de algum modo e de algum solo, também arqueólogos, não apenas de gloriosos heróis e soldados, mas de nós próprios. Por mais habituados que até possamos estar à idealização da luz do dia, a verdade é que o nosso trabalho é, de facto, nocturno, é feito sob o exame do tacto e às escuras.
No entanto, da mesma maneira que não nos agrada a ilegitimidade das acções militares nocturnas, também não nos é agradável a visão de uma equipa de arqueólogos a realizar escavações de noite, até porque se calhar nunca imaginámos isso, e vamos considerando para nós o mesmo, que o nosso trabalho só se faz de dia e que à noite se descansa, mas com os tempos que correm vamos percebendo que é ao contrário, que naquilo a que chamamos dia somos vítimas das paixões e do ruído, e naquilo a que chamamos noite parecemos ser encerrados no recinto do exame interior, numa espécie de sarcófago apertado onde se espera ver e ler alguma coisa, ou num estado depressivo onde o que nos salva é a romântica imagem do arqueólogo que queremos agora utilizar. Se esta confusa prisão da personalidade não nos liberta vez nenhuma, é dentro dela e com a sua realidade que temos de trabalhar, de encontrar espaço para a vida que temos, e de combater aquilo que há-de deixar de nos pertencer. Tudo aquilo que vamos encontrando cá dentro, sejam artefactos, desordem ou vítimas imoladas à nossa vontade, também é mais propício à noite do que ao dia, e não nos deve acompanhar depois. Por vezes, até podemos encontrar ferramentas, material de apoio ou armas, uma lucerna, por exemplo, outras vezes são só cobertores e mantos do passado que ainda não desapareceram totalmente do leito frio dos nossos devaneios, quiçá, até almofadas para recostar pensamentos que já não temos, colchões que nos inclinam sempre para o mesmo preconceito, e por aí adiante. Nada disto nos parece de uso diurno. Neste estudo sistemático dos restos materiais da nossa actividade, podemos ser levados a julgar, devido à poeira dos tempos, que o que encontramos na noite pode ser usado durante o dia, mas a verdade é que quando chegar realmente o dia, todos esses artefactos e ruínas interiores não nos servirão para nada, pois só nos estorvarão perante a luz do sol. As máscaras e fantasias que descobrimos, devem permanecer na noite, ou ser destruídas, pois não devem ser usadas como justificativo de nada, resposta para nada, não podem passar a barreira dos dentes nem das mãos. À noite vemos as máscaras que nos foram dadas desde o início dos tempos, espreitamos entre as suas fissuras, temos um vislumbre da nossa real natureza, pois tudo o que somos alguém nos disse que o éramos, ou fantasiámos sê-lo, e, de facto, é o que somos. Fazemos o mesmo com a História nocturna, com as ruínas nocturnas, queremos vê-las de dia, mas elas só existem de noite e só continuam a existir porque as restaurámos em algum momento. Nesta noite, somos um arqueólogo nocturno, de vez em quando, quando percebemos que não podemos possuir nada, mesmo que oculto, mesmo que estilhaçado, que se leve para o dia, salvo a experiência unificada. O pouco que vamos desenterrando tem de ser identificado, é certo, temos de saber se foi útil à vida ou à morte, se nos serviu ou serve de algo, se foi importante para o nosso crescimento, e todas essas coisas, mas os achados nocturnos não se restauram, não se expõem, não se lamentam.
Ricardo Martins
Imagem de destaque: Luzes e escuridão da terra (montagem). Domínio Público.