À mesma China, sobre a qual se abateram tantas provações, foi-lhe proposto um novo «sonho chinês» (em chinês: Zhōngguó mèng), um conceito defendido por Xi Jinping, actual presidente da República Popular da China. Basicamente, o seu conteúdo é tornar realidade um país próspero e forte, uma nação vigorosa e um povo feliz. Os seus principais objectivos seriam fortalecer a nação, elevar o nível de vida da sua população e acabar com a corrupção nos diversos níveis governamentais.
A aceleração das mudanças parece produzir, hoje em dia, uma certa ruptura com o passado e, no entanto, em cada um dos lugares do nosso universo em transformação, os homens continuam a ser tributários da sua história e tradições.
O presidente Xi declarou:
«Creio que, conseguir o grande rejuvenescimento da nação chinesa, constitui o maior sonho chinês dos tempos modernos».
O slogan do sonho da China, tal como o entende o presidente Xi, parece imitar a expressão «sonho americano», mas trata-se quase da antítese desse sonho de vida, que implica que qualquer indivíduo pode alcançar a liberdade e a felicidade pessoal por meio do seu próprio esforço e que é substituído por uma demanda que subordina os sonhos individuais na busca do sonho colectivo. É que, na verdade, a China necessita do seu próprio sonho, o seu próprio princípio orientador e este desejo de glória pela pátria tem sido a força que impulsionou durante séculos os pensadores chineses.
No entanto, apesar de tudo o que os assuntos contemporâneos, políticos e económicos parecem ter em comum, quase nos fazem esquecer que a China e os países da Ásia oriental são como um todo, não são um simples apêndice do Ocidente. Não perderam o seu carácter original, fruto de uma história que, permanece há muito tempo independente da nossa. Se durante muito tempo uma «China moderna», transformada por influências do Ocidente, se opôs a uma «China antiga» – insólito resumo dos milénios anteriores –, foi em virtude da convicção implícita de que não pode haver no mundo outro modelo de desenvolvimento que não seja o nosso e que há um único tipo humano, válido para todos os tempos e todos os lugares: o homem ocidental contemporâneo.
A chamada China «moderna» não representa, de facto, mais do que o episódio mais recente de uma longa evolução. A China foi, durante milénios, a civilização por excelência em toda a parte oriental do continente eurasiático.
Não há lugar no mundo onde a grande transformação da era industrial tenha sido levada a cabo sem crises e sem tragédias. Era natural que o passado pesasse com mais força do que em nenhum outro lugar, num país de uma civilização antiga como a China.
Porém, não se pode dizer que a China, em comparação com muitas das nações ocidentais, teve um grande atraso do ponto de vista técnico ou que era impossível industrializar-se, uma vez que há empresas chinesas do final do século XIX que, na época, parecem ter estado tão bem equipadas como as suas homólogas da Grã- Bretanha.
À China não lhe faltavam as tradições científicas que lhe permitiriam assimilar os novos avanços da ciência ocidental nos séculos XIX e XX. Se o mundo chinês não conseguiu entrar na era industrial no momento oportuno, não foi tanto por uma incapacidade básica, mas por uma conjugação histórica especialmente desfavorável: divisões políticas, debilidade da agricultura, falta dramática de capitais e o carácter militar das novas indústrias. Na verdade, faltaram à China a oportunidade e os meios para se adaptar às transformações da época.
A China que nos últimos anos do século XIX era disputada pelas nações estrangeiras, era um país dividido no seu interior, incapaz de reconhecer a sua própria face e que não tardaria a renegar-se a si mesma. A pressão estrangeira não se limitou a ser somente um incitamento, mas agiu ao mesmo tempo como um freio, tanto social, económico e político, quanto psicológico.
A busca desesperada, empreendida por alguns intelectuais, de uma ideologia salvadora na tradição confuciana e o conservadorismo de inúmeros patriotas, conduzem a uma forte reacção de orgulho nacional. Esta tragédia, que tem sido a de todos os países colonizados, ocorreu na China no auge da magnitude de sua civilização. A China conserva ainda hoje a marca deste golpe profundo.
Com o passar das décadas, o desejo de provar algo, qualquer coisa, é evidente. Mas, como sempre, o factor unificador é um «Estado forte». Inclusive Sun-yat-Sen, cuja ideologia incluía os «direitos do povo», via nesses direitos uma necessidade de fortalecer o país. E assim, ao contrário de outras revoluções, a da China comunista não se iniciou por motivos idealistas, como a liberdade, mas sim encorajada pelo objectivo de recuperar a glória nacional. Vemos que o novo sonho da China, defendido pelo presidente Xi, se enquadra fortemente na tradição daqueles que o precederam.
Da mesma forma, outro elemento partilhado pela maioria dos chineses influentes da China actual é o desejo de salvaguardar partes da tradição autóctone, o qual é partilhado por povos de todo o mundo quando confrontados com a lógica brutal da modernização. A verdade é que muitos dos reformistas radicais primeiro pensaram em livrar-se do passado e depois melhoraram a sua opinião acerca dele. Estavam ansiosos por provar o pior, mas mais tarde contiveram-se. É um problema dar como garantido que as tradições implicam um prejuízo para o desenvolvimento e que é necessária a sua destruição, porque é sabido que a modernização destruiu tradições em todos e em cada um dos países que tocou, mas alguns conservaram muito mais as suas tradições do que a China e, mesmo assim, modernizaram-se: bastar-se-á pensar no Japão ou na Coreia do Sul. No caso de Mao Zedong (Mao Tsé-Tung, em chinês tradicional), é possível que tenha destruído grande parte da sociedade tradicional, mas não é claro que a sobrevivência desta teria impedido a ascensão da China.
Como parêntesis explicativo, introduzimos esta informação de que anos depois da morte de Mao Zedong em 1981, o Partido Comunista da China publicou uma análise oficial sobre a responsabilidade de Mao nos problemas sociais e económicos derivados das suas políticas, em que o culpavam de erros graves, mesmo quando o seu papel como grande líder revolucionário e arquitecto da ascensão ao poder do Partido Comunista foi reconhecido. Desde então, o Partido Comunista da China mantém esta avaliação histórica de Mao como um grande líder, fonte de legitimidade do próprio partido que, no entanto, teria cometido alguns erros graves.
O quarto de século que começa com a proclamação em Pequim, a 1 de Outubro de 1945, da República Popular da China e que termina com a morte do seu fundador e inspirador, Mao Zedong, em Setembro de 1976, é provável que seja recordado pela História como um período excepcional. Caracterizou-se por uma extraordinária agitação, profundas crises e um perigoso crescimento da população, mas é ainda demasiado cedo para dizer qual será o seu lugar na história, dado que esta se encontra ainda em construção.
A ruptura com os períodos anteriores é evidente, mas é provável que ainda existam múltiplos vínculos com o passado mais recente, e certamente que haverá vínculos mais subtis, mas não menos fortes, com um passado mais antigo, porque as aspirações revolucionárias, igualitárias e utópicas da tradição chinesa parecem ter continuado a inspirar os líderes da nova China. Por outro lado, o sentido de organização, a disciplina colectiva, a doutrinação, as grandes obras públicas de dimensões gigantescas e inclusivamente a passagem tão surpreendente do caos e anarquia à ordem, não são coisas tão novas na China. Num quadro sem dúvida completamente novo, algumas tradições estatais e algumas tradições morais parecem ter-se perpetuado até aos nossos dias.
Actualmente, o crescente nacionalismo que se vive em várias regiões da China é um germe de tensão que está a provocar sérios conflitos e é provável que este problema não se atenue nas próximas décadas. Constitui um excesso especulativo saber onde tudo isto irá parar, mas os líderes chineses, situados entre a necessidade de desenvolvimento económico e as ameaças de agitação social, estão a dar mostras de uma notável habilidade. A prodigiosa renovação que se operou no país nestes últimos vinte anos, continua imparável. E nesta linha o «sonho chinês», que é uma das marcas mais representativas do mandato do seu presidente XI Jinping, aponta para várias ideias que o tornam singular.
Em primeiro lugar, a do progresso com identidade, ou seja, a necessidade de recuperar um equilíbrio entre a modernização e a tradição. E, em segundo, a exigência de uma via própria, adaptada às suas especificidades, que não resulte numa cópia mimética dos modelos ocidentais.
É possível que, se numa época contemporânea, um imenso país arruinado por um longo período de guerras e que era um dos mais miseráveis do mundo, pôde recuperar em poucos anos, suscitando a admiração geral, para logo empreender uma autêntica reconversão apelando a técnicas e capitais estrangeiros e descartando a maior parte das restrições herdadas da tradição comunista, sim, é possível que esse país possa ainda assim sonhar com a realização de mudanças profundas em matéria de instituições e comportamentos sociais e individuais para sair das suas dificuldades. E que o sonho do Presidente Xi, que completa o anúncio de Mao de que a China se levantou e a vocação de Deng por desenvolver a economia do país, possa ser finalmente o sonho colectivo do renascimento da China.
Ainda que, esboçando em pinceladas o conceito de uma política integral, segundo os antigos sábios de todas as civilizações, confiemos que este sonho da China, como o sonho de qualquer outro povo da terra, não se detenha tão só na solução isolada dos problemas económicos, sociais ou organizativos, mas que penetre no psicológico, no espiritual, e satisfaça também o coração do homem, para poder dar-lhe uma real e profunda razão pela qual viver.
Teresa Álvarez Santana
Publicado na revista Esfinge, Dezembro de 2019
Fontes consultadas:
Artigo Sueños de una China diferente de Ian Johnson.
El pensamiento chino. M. Granet.
El mundo chino. Jacques Gernet.
Möassy el perro. Jorge Ángel Livraga.
China. Edward L. Shaughnessy.