Esta história que vamos contar ocorreu há muito, muito tempo, tanto que o seu final ficou escondido pelas brumas dos séculos.
Deambulavam pelos caminhos do mundo a Fé e a Razão num incessante, ininterrupto e constante movimento para chegarem a todos os recantos humanos. Passavam nos mais diversos locais habitados e demoravam-se ora aqui, ora ali, com variada intensidade de tempo. Como tinham de passar em imensos lugares, viajavam ligeiras, nunca a par ou ao lado uma de outra, antes uma após outra, primeiro uma depois outra, e primeiro a outra e depois a primeira, não juntas mas sempre perseguindo-se, ora uma, ora outra. Umas vezes estavam mais próximas entre si e outras, alongando-se os caminhos, ficavam muito distanciadas. Nunca se perdiam e até pareciam que competiam entre si. Quem chega primeiro? Quem prevalece mais tempo? Qual o caminho mais curto?
Nalguns lugares, os que tinham menos habitantes, estas viajantes apareciam de vestes muito humildes e eram vistas com alguma ligeireza. Ainda conseguiam ser reconhecidas por aspectos simples e honestos, mas não se demoravam muito por aí. A suas fugazes imagens eram bastante para quem as via. E sabiam que isso era suficiente para o ânimo desses humanos que continuavam no seu labor pela sobrevivência. Mesmo para essas actividades materiais de subsistência, sabiam que eles as necessitavam, pois para caçar ou colher ou pescar, para cuidar, tratar ou curar, tanto uma como outra estavam sempre a ser usadas. Sabiam que desde sempre habitavam no interior do ser humano, por mais singelo que fosse, aparecendo ora uma, ora outra alternadamente. Para a sobrevivência no mundo, aí estava em acção a Razão com toda a sua luz solar para ajudar no esclarecer e resolver situações imediatas. Para o enigma do outro mundo, aí estava a Fé com toda a sua grandeza misteriosa, incompreensível, abrangente e cósmica.

Escultura Alegoria da fé, de L.S. Carmona (1752–1753). O véu simboliza a impossibilidade de se conhecer diretamente as evidências. Creative Commons
Nos lugares mais populosos, nos grandes centros onde a humanidade fervilhava em actividade, estas duas companheiras apareciam de modo bem diferente. As suas vestes eram esplendorosas, brilhavam intensamente para serem bem vistas e contempladas. E tinham tendência a demorarem mais tempo para que os seus efeitos perdurassem. Nos centros das cidades, nos palácios dos poderosos, cortejavam os mais ilustres humanos pois não bastava que estes ficassem apenas com uma sombra, com uma imagem pálida, mas com o máximo esplendor que cada um deles conseguisse contemplar. E assim se moviam pelos séculos, sempre vigorosas e brilhantes, estas duas damas animadoras da humanidade.

Peregrinos deslocam-se para serviço religioso. Domínio Público
Certa ocasião, na sua contínua peregrinação ao encontro dos humanos, trilhando uma região acidentada e tortuosa aconteceu algo inusitado. Aqueles caminhos eram labirínticos mas tinham de ser cruzados. Como sabemos, andavam sempre próximas mas separadas e assim continuavam as suas jornadas, ora uma adiante, ora outra. Desta vez, nestas sendas emaranhadas e sem saberem como aconteceu, acabaram por se encontrar frente a frente! O espanto invadiu-as.
– Que fazes aqui? perguntou estupefacta a Razão.
A Fé, como olhava muito ao longe, nem conseguia perceber o que estava a acontecer e perguntou:
– Desculpe, que se passa?
– Amiga e irmã, será que não me reconheces?
– Amiga e irmã? Oh, mas que aconteceu? Nunca nos encontramos face a face e como isto ocorreu?
– Bom, quem costuma questionar sou eu, mas seja bem-vinda ao meu campo! disse a Razão. De facto, eu própria estou confusa com o que aconteceu e não encontro explicação…
– Ah, então bem-vinda ao meu terreno, gracejou a Fé.
Então, este encontro entre as duas faces da Imaginação, que nunca outrora acontecera pois cada uma estava sempre de um lado e a outro do outro, impossibilitando assim esse frente a frente, provocou um autêntico assombro cósmico e toda a Natureza ficou paralisada. O vento não soprou, as plantas estagnaram o seu desenvolvimento, os animais imobilizaram-se…
Aquele trilho era muito estreito e impossível de passarem em simultâneo. Nenhuma podia ceder a prioridade de passagem à outra pois ambas são duas faces equivalentes. Nenhuma podia voltar as costas e inverter a marcha, o caminho é sempre adiante e acima. Neste ínfimo tempo infinito, algo teria de ocorrer…
A Fé rompeu o silêncio procurando que a sua voz suave e acolhedora ajudasse a este impasse.
– Cara irmã, agora que o espanto já se foi destas paragens, podemos solucionar esta situação.
– E procurar uma solução razoável? gracejou a Razão.
– Bom, alguma coisa teremos de fazer. Não podemos deixar o mundo neste impasse e espero que aportes algum contributo. A mim própria não é suficiente possuir-me a mim mesma estando impossibilitada de caminhar.
– E eu que sou sempre caminho não posso aqui ficar parado em contemplação! Assim, se me fosse permitido a passagem tudo voltaria ao normal.
– Ah, expressou a Fé, parece que essa convicção de teres o caminho aberto para passares está bem enraizada. Será que tens argumentos para expor?
E então ficou estabelecido que a única solução seria o confronto de pontos de vista. Certamente uma argumentação justa, honesta, correcta conseguiria pôr termo àquela situação embaraçosa.
Entrando em campo cheio de vigor, e talvez com algum convencimento, a Razão começa por esgrimir o primeiro argumento.
– Pois bem, caríssima amiga, na prossecução do intento maior de dar esclarecimento aos humanos, eu estou em primeiro lugar. Quando se quer caminhar, o primeiro a fazer é olhar onde colocar o próximo passo. A realidade fora de nós terá de estar bem definida, desenhada, recortada para que os meus pés possam ser colocados num local concreto e não correr o risco, por distração ou de apenas olhar para as estrelas, de cair inadvertidamente num buraco à minha frente.

Caminho, jplenio. Pixabay
– Esperai um pouco, disse a Fé. Se bem entendi, afirmas que o mais importante é essa visão clara do que está à nossa frente, a percepção da realidade concreta e física que se nos depara, o imediatismo da realidade, a proximidade do circunstancial… Mas no meu entendimento, isso ocorre porque já se está em caminho, o peregrino está em movimento. Por isso pergunto, quando começa ou tem início esse movimento, esse caminhar à conquista do desconhecido, essa busca de contactar o mistério de todas as coisas? Não existirá um momento interno, oculto, invisível que determina todo o movimento posterior? Essa decisão é tomada com a visão clara e objectiva de todos os pormenores que irão ocorrer na caminhada? Ou será um passo em direcção ao desconhecido motivado por mim mesma, a Fé? E não queiras criar uma névoa baseada num conteúdo nem sempre abrangente colocado neste meu nome; bem sabes que os humanos são propensos à confusão e a ficarem limitados com significados menores dos termos que usam, especialmente os termos relacionados com objectos profundos e metafísicos, pois os termos de objectos físicos são menos propícios a estas névoas. Para dares um passo terás de acreditar no que virá mesmo não o tendo conquistado; acreditar é dar crédito àquilo que ainda não é teu, e só poderá ser teu se te decidires a dar esse primeiro passo. Portanto, eu estou primeiro e sou principal!
– Claro que não posso deixar de concordar nesse ponto. Como Razão, o importante é aproximar à verdade e não encontrar artificiosos raciocínios para contrariar argumentos verdadeiros. Mas não julgues que te deixo o caminho já aberto! Em todo o processo da Caminhada, dizes então que estás no início e abres essa porta do futuro. Esse é um momento íntimo. A decisão de iniciar algo parte do mais profundo e misterioso de cada ser humano, algo puxa para executar, realizar, mas essa vivência profunda e impulsionadora está carente de visão, é apenas a potência, o ímpeto e fulgor de uma flecha pronta a disparar e disparada com o arco. Mas quem a dirige? Retira a visão do arqueiro e o poder dessa flecha será inútil. Após o primeiro passo, sou eu que guio por trilhos seguros aqueles que se colocam em movimento. Sou o seu olhar, visão, compreensão, entendimento, pois cada pé colocado na escada exige segurança e fixidez. Degraus frágeis estão cheios de perigos e sou eu quem permite fortalecer esses degraus. Em cada momento do avanço, com a minha luz que irradia para o exterior, permito que o peregrino avance com confiança e firmeza. Sem mim, nenhum passo é dado pois apenas se fica por uma boa intenção sem a decisão de colocar um pé firme no caminho. Essa firmeza é fornecida por mim.
– Mas então – pergunta a Fé – pensas que apenas estou no ponto de partida e depois fico em repouso?
– Não chego a tanto… Mas é uma evidência que sou eu que acompanho lado a lado o peregrino. Em cada pequeno momento aí estou, ajudando na distinção entre o falso e o verdadeiro, permitindo que a direcção seja a correcta e fugindo das ilusões fugazes e atraentes da mentira sempre pronta a querer ser vestida de verdade.
– Acho que me estás a dar descanso em excesso, ironizou a Fé. Afirmas que, contigo, o peregrino pode e consegue estabilizar e construir o degrau para onde acabou de ascender. Mas, pergunto, para que pretende ele realizar isso? Porque aplica tanto esforço nessa construção externa e simultaneamente interna? Primeiro, creio que o impulso inicial não se esfumou, não desapareceu e ainda continua a impulsionar; segundo, a atração pelo desconhecido degrau superior não está também a desempenhar o seu papel de pólo magnético? Essa atração pelo desconhecido sabes que tem o meu nome?

Peregrinos jacobinos, gravura alemã de 1568. Domínio Público
Por momentos a Razão ficou meditabunda… será que vai manter a fé em si mesma? E continua com as suas reflexões.
– Assim é de facto. Não posso opor-me por apenas querer contrariar e não posso fugir à verdade. Mas se a tua natureza profunda tem essa característica, creio que os efeitos que produzem na grande maioria dos humanos podem nem sempre ser úteis, ou melhor, podem ter efeitos secundários menos positivos. Tu estás, e muito bem, no impulso inicial para a Grande Peregrinação, dás o tiro de partida do mais íntimo de cada humano. Essa primeira captação ou intuição de que a Verdade existe, é precisamente proporcionada por ti. Mas, infelizmente, a grande maioria aí fica, apenas com esse sentimento do verdadeiro. É um Querer que nasce… mas em breve se torna apenas Crer… A água fresca que desce da sempiterna nascente do alto da montanha, corre inicialmente bem movimentada mas em breve, sendo dirigida pelos humanos para canais cada vez mais estreitos, lentifica-se até se estagnar em rígidos moldes doutrinários.
A Fé não perdeu oportunidade de intervir:
– Sigo o teu raciocínio que me parece claro. Mas ainda não entendo bem a causa desses efeitos perniciosos com que os humanos se entretêm. Atribuis-me, a mim, o acto de criação de dogmas inamovíveis?
– Claro que não, seria erro grosseiro proibido à Razão! Falava dos efeitos secundários provocados por esse impacto fulminante que provocas. Esse impacto é tão intenso, tão profundo, tão pleno de verdade por quem o vive que, facilmente, esse sujeito cai na ilusão de que já lá está, já chegou ao fim do caminho. Sei bem que se não provocasses esse impacto com tal intensidade, também nada aconteceria e o futuro humano seria bem mais trágico.
– Entendo-te – continuou a Fé – e bem tenho visto os efeitos provocados nos humanos… mas não a mim podem ser atribuídos os mares de dores e horrores nas lutas travadas por eles em meu nome. Mas voltemos ao nosso ponto: há grande confusão e mistura entre o facto e o acto. A visão de um facto não pode ser considerada como acto dessa visão. O ver um facto não implica a sua realização em acto. Explico-me, a percepção do verdadeiro, a visão do farol ao longe, a luz ao fundo do túnel, não implica que já se está na Verdade, no farol ou se já saiu do túnel. Enorme distância há a percorrer para ser uma realização. Qualquer crença é útil para dar o sinal de partida, mas se não há caminho percorrido é porque não se saiu desse ponto inicial.
– Pois bem, como percorrer esse caminho senão dando-me a mão? – perguntou a Razão. Como passar da potência ao acto, do possível ao necessário, do facto ao acto? Concordas que comigo caminham os humanos. Sabes muito bem que todo o caminho é feito de movimento e este só é possível devido ao desequilíbrio, pois se tudo estivesse equilibrado numa colossal balança nada se moveria. Esse movimento para um lado e para o outro, permitido pelo desequilíbrio, é o que faço no meu processo de esclarecimento, de tornar claro. Vou oscilando, relacionando coisas, imagens, pensamentos, fazendo um movimento oscilatório de onde o falso se desprende como folha seca. Este excelso jogo que pratico é um belo exercício no caminho de ilusões e estas são tantas que me obrigam a este constante oscilar entre o verdadeiro e o falso, a realidade e a ilusão, a verdade e a mentira. Sou o grande agente que possibilita a eliminação do erro!

Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, uma história arquetípica sobre amizade. Domínio Público
– Tanta oscilação que até me pareces bipolar, ironizou a Fé. É certo que necessitas dessa linha geométrica cuja única dimensão permite pôr em jogo dois pontos em oposição. A tua especialidade é relacionar! Sem a dualidade que serias? Sem a verdade e a mentira que serias? Vales também pela existência do falso e contra ele pretendes combater, o que é meritório, mas concede que estás metido na multiplicidade e delas tentas escapar. Pelo contrário, eu vivo imersa na unidade, em mim o monstro da dúvida nunca se aproxima e a plena vivência da certeza é alicerce que não abala.
– Pois bem, considero essa unidade como estatismo de começo do caminho que ainda não se iniciou e não como meta alcançada. Não consideras prejudicial que a imensa maioria humana te venere numa unicidade de começo e daí não saia? Que seria dos humanos se não me tivessem para saírem desse estatismo em que aparentam ser peregrinos mas apenas vegetam numa imobilidade preguiçosa. Não tiro os méritos que dás ao contribuíres com a possibilidade de chegarem a acreditar, dar crédito, abrir possibilidade a algo mais que apenas o mundo material e objectivo. Mas tens de reconhecer que esse impulso ou motivação inicial, de que falavas à pouco, pode ter o seu oposto num imobilismo atroz. Julgas por bem ficarem convencidos e unidos a uma ideia de verdade e com ela passarem toda a existência como se fosse algo que neles estivesse realizado? É o desequilíbrio do movimento que os vai impelir ao caminho dessa descoberta.
– Não te esqueças que estou no começo e no fim – disse a Fé. Não me coloques apenas nessa posição! Esse fim, que também é banhado pela unidade, está impregnado com a minha seiva pois, como todo o final é o início de algo, o mistério aí habitará mas agora noutro grau de intensidade mais consciente. Eu estou nas duas pontas, tu estás apenas no meio… Eu sou una em essência e dual na existência; tu és dual em essência e uno na existência.
Assim continuava o diálogo entre estes dois famosos interlocutores nesse interregno do tempo. E nós, metidos no tempo ininterrupto, deixámos de conseguir acompanhar o frutífero diálogo e convidamos o leitor a julgar quem deve passar primeiro pelo estreito caminho.
José Antunes
Imagem de destaque: “Fe”, Mino da Fiesole. Creative Commons e “O sonho da razão”, Francisco de Goya. Domínio Público