Um dos momentos musicais mais sublimes da Oratória de Natal de Saint-Säens é quando no oitavo movimento, a voz do tenor se ergue sobre as ondulações musicais e cintilações de prata do órgão e harpa, pronunciando “Tecum Principio”. Ainda desconhecendo o significado destas palavras sentimos que a alma estremece diante delas, e mais quando uma voz feminina (soprano) responde, repetindo o mesmo tema que se entrelaça com a primeira, e com uma terceira de um barítono.

Trata-se do terceiro versículo do Salmo 110 (o 109 da Septuaginta ou da Bíblia de Jerusalém) e diz literalmente:

tecum principium in die virtutis tuæ in splendoribus sanctorum ex utero ante luciferum genui te”

Embora a canção do autor de Sansão e Dalila, apenas se estenda até “sanctorum”, como assinalamos a negrito.

Estes Salmos (grande parte atribuídos ao rei David) são cânticos que não somente comoveram o universo hebreu, mas talvez mais ainda os cristãos que os incluíram nas suas liturgias e rituais.

Este Salmo é dos mais misteriosos, porque inclui um misterioso personagem, Melquisedeque, sacerdote do Altíssimo que nunca morre, e que teria dado a bênção a Abraão. A seguir, inteiramo-nos, segundo o mesmo texto bíblico, que o mesmo Jesus seria desta “Ordem de Melquisedeque”.

O rei Melquisedeque entrega os símbolos da futura expiação de Jesus Cristo ao profeta Abraão. Pintura a óleo de Juan Antonio de Frías y Escalante. Domínio público

De todo o modo, não é este “Rei de Justiça” (que é o que significa Melquisedeque, e que podemos associar ao Grande Iniciador que explica a Doutrina Secreta de H.P.Blavatsky, mais especificamente no volume da Cosmogénese) o objeto deste artigo, que aparece no seguinte versículo deste mesmo Salmo.

Pelo contrário, o objeto é a tradução e os significados surpreendentes do versículo 3 na totalidade, e é fácil ver que cada versículo destes Salmos, além da sua relação com o contexto, é um ensinamento completo em si mesmo, como um aforismo ou sutra hindu com as suas mil iridescências semânticas.

O mais curioso é a completa divergência que há, muito mais do que em outros, na tradução deste Salmo, e ainda mais, deste versículo. Talvez pelo aparecimento da palavra Lúcifer (vade retro!), e embora a sua leitura seja, sempre foi, “estrela Vénus”, como aquela que traz a luz, ou estrela da manhã, a sua simples presença na Idade Média deve ter causado desarranjos digestivos teológicos. Embora, certamente, os brasões e heráldicas medievais não tivessem esse problema, como vemos no brasão da cidade de Carmona: “Sicut Lucifer lucet in Aurora, sit in Wandalia Carmona” (“Assim como Vénus brilha na Aurora, assim na Andaluzia Carmona”).

Carmona, Sevilha. Creative Commons

A segunda parte do versículo, do Salmo 110, significa de forma estrita e literal:

EX ÚTERO ANTE LUCIFER GENUI TE

Desde a matriz, ante Vénus, te fiz nascer (ou “dei-te à luz”, ou “criei-te”, ou “engendrei-te”)

O texto é da Vulgata, traduzido por São Jerónimo da Bíblia Septuaginta, em grego.

ἐκ γαστρὸς πρὸ ἑωσφόρου ἐγέννησά σε

Onde traduzem o πρὸ (pro) como “antes”, que é um dos seus significados, mas outro é “ante”, “diante de” ou seja, “cara a cara”, “frente a” [1]. Este verso geralmente é traduzido como “desde o ventre te gerei antes da aurora”, ou seja, “antes do amanhecer”. Já que ante, em latim também significa tanto “antes” como “ante”, mas não faz sentido dizer “antes de Vénus”. A palavra “Lucifer”, que é a tradução para o latim de ἑωσφόρου (eosforoi), é traduzido como “aurora”. Mas este não é o seu significado, significa literalmente “aquele que traz o amanhecer”, “aquele que traz a aurora”, “a estrela da manhã”, Vénus [2], ou seja, é intencionalmente mal traduzido.

Na Bíblia hebraica, não necessariamente mais confiável ou mais antiga que a Septuaginta grega, traduzem-no de forma completamente diferente, como “desde o seio da aurora tens o orvalho da juventude”, versão que a Bíblia de Jerusalém adotou, que a traduz como:

“[Sobre os montes sagrados] serão para ti como o orvalho do seio da aurora” (??). E o editor do mesmo especifica: “os textos gregos e hebraicos diferem muito no versículo 3 do Salmo 110”, caso alguém tenha dúvidas.

A palavra “principio” em latim remete-nos para o seu original, em grego, que é ἀρχὴ , “arjé”, que indica a condição plena e original de algo, o seu estado primeiro e puro. E está na primeira frase do versículo 3: “Contigo no princípio no dia da tua virtude no esplendor dos santos”.

No seu sentido mistérico, recolhido posteriormente nos ensinamentos teosóficos, da Doutrina Secreta de H.P. Blavatsky, esta máxima, versículo 3 do Salmo 110, está plena de significados.

O Logos Solar ou Deus manifestado fala à Alma Humana e diz-lhe que tem estado junto dela, com todo o seu poder, desde o princípio, ou no estado de plenitude original, irradiando a luz da santidade e “desde o meu seio te fiz nascer perante Vénus”, a Estrela da Manhã. Ou seja, faz com que desperte para a vida, no mesmo ser humano, ante e quando se acende a chama da Consciência (Manas-Vénus). Aí, e nesse momento é, há dezoito milhões de anos, quando segundo as velhas tradições, o “filho de Deus”, a chama divina, desperta para a sua condição humana, numa personalidade, num ninho de necessidades e paixões, com as quais agora deve trabalhar.

Mercúrio, Vênus (Lúcifer) e a Lua. Creative Commons

Segundo este ensinamento, e “desde o outro lado do espelho”, também é a mesma Alma da Terra, que várias vezes é identificada como o Jeová Bíblico, e que é também uma Virgem Mãe, que faz nascer a humanidade diante Vénus, ou seja, que a apresenta à Estrela Vénus, cuja luz e fogo espiritual fez nascer este ser humano consciente na sua matriz pura, a da natureza (segundo a tradição hindu dos Manasaputras ou a grega de Prometeu, roubando o fogo dos Deuses e entregando-o aos homens). Vénus é o duplo luminoso da Terra, e esta criação é sua, é sua filha, é devida ao seu influxo e consciência mental, embora a gestação do ser humano dependa do nosso planeta. O versículo seguinte que menciona Melquisedeque completa o significado, pois o Iniciado, ou seja, o Homem completo é sacerdote desta ordem que com o fogo de Vénus-Lucifer ou da consciência, estabeleceu as Escolas de Mistérios em toda a Terra.

Curiosamente, uma das capas do disco de Saint-Säens, e não sei de onde vem esta pintura, ilustra perfeitamente este ensinamento: A Terra-Virgem Mãe, apresentando o seu filho divino à luz de Vénus ou da Estrela que permitiu que crescesse.

Sim, realmente, desde a matriz, e perante a Estrela d’Alba, a fez nascer, a alma, o ser divino.

José Carlos Fernández
Escritor e diretor da Nova Acrópole Portugal

[1]Como podemos ver aqui

[2] https://outils.biblissima.fr/fr/eulexis-web/?lemma=%CE%B5%CF%89%CF%83%CF%86%CE%BF%CF%81%CE%BF%CF% 82&dict=LSJ

Imagem de destaque: Lúcifer retratado como uma criança alada derramando luz de uma jarra. Gravura de G. H. Frezza, 1704. Creative Commons