«Laborare est orare»

I.

Numa manhã amena e alegre, descansando a mente e os membros cansados,

Do pensamento e da fadiga do anterior dia agitado;

Meio adormecido, meio acordado, assim estava eu deitado ao romper da aurora acinzentada,

Surgiu, então, um som, estremecendo-me o espírito, estridente e selvagem, aos meus sentidos,

Meio desperto, perguntei: “Quem faz tanto barulho lá fora?”

Foi o aborrecimento mais maldito.

II.

Ó! Dessa manhã, lembro-me eu bem; foi no abundante e doce Setembro,

Quando a madressilva, à janela do meu quarto, lançou sobre ele a sua sombra;

E as suas pétalas, longas e amarelas, pendiam pela vidraça ricas e suaves,

Até eu ter imaginado – que idiota! – que a flor tinha a aparência

De um anjo da guarda de douradas tranças, que o meu sono vigiava.

Foi uma fantasia, nada mais.

Madressilva. Creative Commons

III.

De seguida, começaram a bater as flores perfumadas com o suave toque da brisa

Contra a janela, até o meu sono e os meus sonhos cessarem;

Com um bocejo, um suspiro e um resmungo – espreguiçando-me, virando-me e tombando,

Saltei da minha cama para o chão, com sonolento cambalear;

Olhei para o meu relógio e murmurei: “Como é que ainda são quatro e meia?

Por Deus, nem um momento mais.”

IV.

Escuta! Novamente o som se aproxima, agigantando-se com a mais ruidosa gritaria,

Aos meus sentidos alarmados, narrando algum desastre triste e pesado;

Para a minha janela corri de seguida, confuso e apavorado, hirto e apressado,

Com o terror indefinido preocupado – aberta a janela – sobre o peitoral inclinado,

Perante mim e em baixo vi uma criatura, com o pescoço todo avermelhado,

Escorrendo, tal como pensei, um sangue coagulado!

V.

Pouco depois, tornando-se a minha visão mais clara e mais próxima a criatura,

Descobri que o dono da garganta manchada de sangue,

Semelhante a um “Banquo ensanguentado”, que me acordou do sonho,

Com o seu súbito e penetrante grito, era, na verdade, um galo, e nada mais,

Que, com todos os seus companheiros presentes, se pavoneava orgulhoso à sua vista,

Cacarejando energicamente, para sempre.

VI.

Uma vez mais cacarejou o seu alegre reveil (despertar), tão vigoroso e estridente,

Ao crepúsculo cinza e frio – cansaço já eu não me sentia.

Pois passava pela minha moldura a arrebatadora melodia, despertando todo o sentimento viril,

Até ter ficado refortalecido e animado, como no dia anterior me sentia,

Uma vez mais, a batalha diária da vida, ordenada pelo céu, para ser cumprida,

Com coragem, com firmeza, para sempre.

VII.

De olhar fixado na manhã lá de fora, logo vi que levantava o sol

Gloriosamente a sua testa, brilhando com os raios disparados sobre

Todo o tecto do céu; iluminando nuvens e neblina, e avultando sombras,

Despertando para a vida e desabrochando as flores que dormiam no verde chão da terra,

E senti que esta era a renovação, com a sua inesgotável provisão,

Da grande Natureza, para sempre.

VIII.

De volta ao meu quarto, logo ouvi uma maravilhosa melodia

Da voz do tentilhão e do tordo, e da cotovia em voo ascendente;

E a música deles estava repleta, pareceu-me, de uma fértil obrigação divina,

E dizia: “Levanta-te do sonho! O dia chegou e a noite acabou.

Ergue-te, alegremente, para trabalhar, pois há ainda trabalho por cumprir.

É este o teu destino, para sempre!”

Beija-Flor. Piqsels

IX.

Demoradamente ouvi, mudo e sorridente, aquele inspirador canto matinal,

Até que, por fim, a dourada luz do sol inundou todo o quarto,

Cintilando nos recessos mais profundos, imprimindo luzes e sombras de modo grotesco,

Com rica e celeste gradação, do tecto até ao chão,

Para cima e para baixo dançavam os grãos, luzindo como minério de ouro,

Nos raios do sol, para sempre.

X.

Senti, então, o ar fresco, soprando friamente à minha volta, como o fluxo

De alguma fonte, pura e perfumada, que do céu trazem os anjos;

E eu clamei: “Foi o teu Deus quem te os emprestou, foi através destas bênçãos que te enviou,

A força e o conforto para te animarem no teu destino de labor antigo:

Labuta para que te ilumines, diminui-te para que brilhes, adoçando para o teu espírito,

Toda a ferida probatória, para sempre.”

XI.

Se trabalhar na tristeza, mais renovada a cada manhã,

É a maldição por Deus concedida e a nossa primeira transgressão cometida,

Então o trabalho é, para o Homem, a melhor submissão! A fadiga é apenas a sua retribuição!

Aquele que trabalha ainda ora! Esta é uma tradição sagrada e profunda,

«Laborare est orare». Mais o Homem adora o Senhor

Quanto mais labora, para sempre.

XII.

Trabalha, reprimindo a tua dor, admitindo a justiça do decreto de Deus,

E a maldição se tornará bênção, como disse o vidente antigo;

Aquele que, diligente, treina a mão e o coração enquanto se mantém a vida,

Para vigiar o que Deus ordena, mais e mais será abençoado,

Seja no campo, seja na cidade, e será «bendito o teu cabaz

e a tua arca» (Deut. 28.5), para sempre.

XIII.

Trabalha com o teu espírito voluntarioso – trabalha com os melhores sentimentos da tua alma;

Com todo o teu coração, faz tudo aquilo que a tua mão encontre para trabalhar,

Pois o teu corpo, alma e espírito a Deus pertencem; e todo o teu mérito

Está na grata e paciente coragem para cumprires com o trabalho, para sempre.

«Laborare est orare». Grava esta tradição no fundo

Do teu coração, para sempre.

Athena e Hefesto, Paris Bordone. Domínio Público

XIV.

Do meu quarto, com leveza lançado, cabeça erguida e passo saltitado,

Como os pássaros, saí a cantar para cumprir a tarefa que a minha mão tinha;

Durante todo o dia, alegre foi o meu esforço – esperançoso, exclamei, quando cansado:

«Viver alegre no seu esforço, isso é um dom de Deus» (Ecle. 5.18) antigo.

«Laborare est orare». Gravada no fundo do meu coração

Fique esta tradição, para sempre.

 

John Francis Waller

Extraido do artigo “Mais um Serão com os Místicos” (1853)