Este texto de José Carlos Fernández foi inspirado na fotografia acima de Pierre Poulain, fazendo parte de um projeto intitulado FiloFoto.
Desde logo não é o quadro de “A Escada de Jacob” de William Blake, mas há certas semelhanças na ideia que subjaz. Não nos arrebata, como a beleza da pintura deste visionário inglês, mas recorda-nos cruamente, ou melhor sugere-nos, uma verdade tantas vezes esquecida. Na pintura do sonho de Jacob, segundo a versão bíblica em que os anjos sobem e baixam à terra desde a glória imarcescível das alturas, tudo é beleza, luz, graça, movimento e o caminho perde-se infinitamente num Sol, seguindo uma espiral surgida do cone, pois diz-se que esta figura geométrica é a que rege o mundo angelical e o dos Espíritos da Natureza. Os anjos (ou devas na linguagem simbólica hindu) trazem viandas celestes, água divina e descendem com um compasso, o da reta medida, e com um livro, o do conhecimento. Tudo está cheio de estrelas que nos recordam a nossa condição celeste, e tudo é imaterial, pois despojados dos veículos de carne e sangue que devemos levar nesta vida, o único peso é o das formas mentais, e aqui apresentam-se sublimes, quase transparentes, leves. Uma criança — a alma que ao morrer para o mundo físico, nasce para o espiritual — é levada aos ombros por um anjo, e a luz de uma esperança e um amor imaculados nimbam todos os rostos e figuras. O caminho descende até onde Jacob está a dormir, inspirado o seu sonho quiçá pela pedra meteórica que a tradição islâmica converteu no coração palpitante da sua religião. A consciência, quando é prisioneira do material, crê que tudo, ela própria também, é um objeto, opaco e em oposição a todos; mas desde uma dimensão mais subtil, por exemplo, energética, tudo é um tecido de forças, de vínculos, nada morre, tudo renasce, tudo é regenerado e volta à corrente vital do existir, a seguir o seu caminho de experiência e sabedoria infinitas ante o nosso olhar. As mesmas qualidades de tudo aquilo que vemos e sentimos e do que não, são simplesmente, como dizia o filósofo Maimónides, “o voo de anjos” pois toda a qualidade da natureza demonstra a presença divina nela.
Nesta foto, pelo contrário, onde tudo o que se percebe vem da luz visível, e portanto material, insinua-se também um caminho que não chegamos a ver, e pelo qual ascendem e descendem pessoas. Estas trazem estampadas nos seus rostos, não a face divina, nem a sua luz celeste, mas as preocupações do mundo, a pressa do relógio que nos converte em seu escravo; o caminho em vez de ser delicado, grácil, é de pedra ou ladrilho e cal e desfaz-se, descarnado, como a pele de um leproso. Não vemos nem um céu que a tudo inspire, nem um Sol para onde tudo convirja, de onde tudo emane. Como diz o fotógrafo, gera-se além disso a ilusão de que os viandantes não estão no próprio caminho, e que as suas sendas se entrecruzam; não observamos neste o fértil poder dos encontros, nem tampouco a nostalgia das despedidas, sabemos que estes existem e adivinhamo-los com a imaginação, mas, enganados pelo fugaz presente não, não os vemos. Bem, é que estamos a ver tudo do outro lado do espelho, desde o lado material onde tudo é opaco. A própria luz do Sol no material é vibratoriamente opaca, pois como demonstrou a experiência da dupla fresta de Young, luz mais luz, sincronizadas as suas fases podem originar escuridão, e com muita luz não vemos nada, pois os nossos olhos estão preparados para ver as gradações de intensidade e cor da luz refletida nos corpos, e a luz direta geralmente cega-nos.
Mas não cedamos à ilusão da matéria. Onde todos caminham há uma senda, ainda que esta divirja, se entrecruze, se perca, se confunda com um labirinto, nunca nos perdemos totalmente a nós próprios, o que significa que o caminho é um, como se fosse uma imensa Árvore de Vida que a todos contém. A palavra Dharma, que em sânscrito significa “verdade”, “lei”, “dever”, “religião”, vem precisamente de uma raiz etimológica que significa “conter” e o Dharma é um, nada pode sair da Lei, e ainda que o tente e se esforce nisto, Ela traz e atrai amorosamente pois o que é real não pode deixar de sê-lo, e a verdade, só aparentemente se mistura e é ocultada pelas sombras que gera.