Antiguidade da gesta de Tristão

 

É difícil encontrar as raízes deste mito-história que se dilui no tempo e que bem conhecemos, pois converteu-se numa das tradições poéticas mais espalhadas na Europa da Idade Média, tendo inspirado narrativas e romances nas Ilhas Britânicas, França Alemanha, Espanha, Noruega, Dinamarca e Itália. São numerosas as versões literárias (apoiadas umas nas outras, ampliadas ou diversificadas) que aparecem nos séculos XI, XII e XIII, que se inserem na tradição cavaleiresca, cortesã e trovadoresca ou que apontam para autênticas obras de grande envergadura literária.

Em todas elas, o destino dum amor trágico parece ser o fulcro da história, mas na sua essência a história fala-nos da trajectória infeliz de um cavaleiro que, após enfrentar toda a espécie de riscos e desafios, consegue demonstrar o fundamental da questão, isto é, a sua perfeição e a sua integridade em todos os aspectos que vão desde o combate físico até à possessão do amor imortal. O culto à dama dos “Minnesinger”, dos trovadores e cantores de gestas cavaleirescas em geral, expressa-se aqui simbolicamente como o culto à própria alma imortal e à pureza dos ideais de honra e lealdade.

São inúmeras as relações com outros mitos, cuja antiguidade é de igual modo difícil de desvendar como o mito de Tristão. Destacaremos dois fundamentais em que possamos apoiar-nos nas comparações simbólicas, como por exemplo: a saga do rei Artur e a demanda do Graal, e o mito grego de Teseu que enfrenta o Minotauro, graças ao auxílio de Ariadne. Ao desenrolar a trama dos acontecimentos e o significado dos seus personagens, iremos fazendo alusões às várias semelhanças.

A morte do rei Artur. James Archer. 1860

“A morte do rei Artur” de James Archer. 1860

O certo é que existe uma assaz complexa e riquíssima fusão de elementos históricos, míticos e lendários, folclóricos regionais e internacionais que dificultam o trabalho de investigação.

Para alguns, a origem celta é indiscutível, sobretudo no que se refere aos elementos mágicos e crenças primitivas que encerra, muito anteriores ao século XII.

Para outros, o vínculo mitológico-simbólico entronca-se com o astrológico, e assim há quem veja em Tristão um personagem lunar, um “deus-Lua” enquanto que outros o interpretam como o destino do Sol.

Não falta também quem se centre exclusivamente no conteúdo psicológico da narrativa, destacando o drama humano que vivem as suas personagens. Surpreende o facto de que, na época em que a literatura lança esta aventura, não se encontra nenhum sentimento religioso nos protagonistas, entendendo-se por “religioso” que não haja qualquer arrependimento pela respectiva conduta, muito pelo contrário, os amantes sentem-se inocentes e até amparados por Deus e pela natureza. Existe, no entanto, nos acontecimentos algo que situa os protagonistas “para além do bem e do mal”.

Diversos autores falam da possibilidade duma origem oriental, já de alguns episódios ou do conjunto da obra. Segundo esta teoria, a lenda teria sido transplantada do Oriente para o Ocidente pelos árabes da Península Ibérica.

Por outro lado, há quem insista na repetição reiterada da lenda em todo o litoral atlântico europeu, o que a faria retroceder a uma origem ário-atlante, anterior aos celtas.

O que se depreende de quase todas as análises é que, seja qual for o sua procedência, seja qual for o seu grau de antiguidade, deve ter existido uma fonte comum e arcaica de inspiração, uma lenda prévia com mais ou menos detalhes, que serviu de suporte a todos os romances, com todas as suas variantes feitas sobre o tema de Tristão.

 

O argumento

A seguinte síntese, ainda que não concordando em todos os pormenores com a conhecida obra de Richard Wagner, ajudar-nos-á a apreciar melhor uma série de significados simbólicos desta gesta. Tristão é um jovem príncipe que vive na corte de seu tio, o rei Marcos da Cornualha. Num combate terrível vence Morold da Irlanda, a quem Marcos deveria pagar anualmente um tributo de cem donzelas. Em resultado deste combate, Tristão fica gravemente ferido por uma flecha envenenada. Abandona a corte e deixa-se levar pela corrente numa barca, sem remos, nem velas, nem sequer leme, levando consigo apenas a sua lira. Por fim chega duma forma prodigiosa às terras da Irlanda, onde a loira Isolda, hábil em artes médicas e mágicas, tal como fora sua mãe, consegue curar-lhe a ferida. Tristão apresenta-se sob falsa identidade, usando o nome de Tantris, mas Isolda reconhece-o como vencedor de Morold, ao comparar a falha da sua espada com um fragmento de metal que havia extraído do crâneo do vencido. Por isso, e também levada pela compaixão ou talvez por uma nascente atracção, atende o ferido.

De regresso à corte, o tio de Tristão encarrega-o de procurar a mulher com quem deseja casar-se, mas de quem só possui um fio de cabelo louro que uma andorinha deixou cair do bico.

Tristão reconhece que o cabelo pertence à loira Isolda, e depois de diversas proezas consegue conquistá-la para o tio, sendo a sua gesta mais importante a de enfrentar e matar uma monstruosa e terrível serpente que devastava a Irlanda e atemorizava os mais valentes cavaleiros.

Durante a viagem da Irlanda para a Cornualha, a aia de Isolda muda de lugar o recipiente que continha poções mágicas que a princesa levava consigo, e quando Isolda, com a razão obscurecida pelo ressentimento, oferece a Tristão o licor da Morte, os dois bebem o filtro do Amor, que provoca em ambos uma paixão avassaladora.

Celebram-se as bodas de Isolda e Marcos, mas a rainha e Tristão, por entre angústias e torturas, continuam vivendo um amor ardente até que o rei os descobre. A partir daí são vários os desenlaces, segundo as diversas versões.

É o perfeito protótipo que o neoplatónico Plotino nos propõe como via dialéctica de ascensão à verdade.

Tristão é o amante e o músico: tem a sua Isolda e a sua harpa; mas a paixão do mundo transforma o seu amor numa rosa vermelha de sangue e espinhos, e a sua lira numa espada que fere mortalmente

Uma delas conta que um cavaleiro do rei Marcos fere mortalmente Tristão que se retira para o palácio que o viu nascer para aí esperar a morte… mas acrescenta que entretanto Isolda chega e que novamente o salva. De facto, Isolda chega numa barca, mas é seguida pelo rei Marcos e seus cavaleiros. O desenlace é trágico porquanto todos morrem à excepção do rei que fica como testemunha muda de todo o drama. Tristão e Isolda despedem-se da vida com um canto de Amor Transcendental que tem muito mais de glorioso do que de doloroso.

Noutras versões, o rei Marcos logo que descobre os amantes, desterra-os da corte e eles vão viver solitários num bosque (ou numa gruta dum bosque) até que um dia Marcos os surpreende adormecidos, se bem que com a espada de Tristão entre ambos, como símbolo de inocência e castidade. Então o rei perdoa a sua esposa e leva-a consigo, enquanto que Tristão é desterrado para a Armórica, onde se casa com a filha do duque da região, chamada Isolda das Brancas Mãos, embora a recordação da sua amada o mantenha distanciado de sua esposa.

Uma vez mais Tristão é gravemente ferido ao defender um amigo e manda buscar a loira Isolda, a única que o poderá curar. Para saber se ela vem, o barco enviado para a trazer ostentará velas brancas em caso afirmativo, e negras se não conseguir trazê-la. Quando o barco aparece no horizonte, Isolda das Brancas Mãos, levada pelo ciúme, diz a Tristão que as velas são negras. Com isto morre a última esperança de Tristão e a sua vida apaga-se, enquanto a loira Isolda, ao ver o sucedido, deita-se a seu lado e deixa-se morrer também.

Personagens: os seus nomes e características

Tristão (às vezes escrito Tristan ou Tristant): nome de origem celta; Drostân e Trystân são diminuitivos do nome Drost ou Drust, usado por alguns reis pictos durante os séculos VII e IX. Mas este nome também se relaciona com “tristeza”, aludindo ao facto de sua mãe ter morrido quando o deu à luz, pouco tempo depois da morte do pai. É filho de Rivalén, rei de Leonis, e de Brancaflor, irmã do rei Marcos da Cornualha. Tristão é o “herói sem par, maravilha dos reinos e refúgio da glória”.

Tantris: é o nome usado por Tristão ao chegar à Irlanda pela primeira vez quando gravemente ferido por Morolt, sem rumo e entregue nas mãos do destino, e também pela segunda vez quando vai para conquistar a mão de Isolda, para logo ter de a entregar a seu tio Marcos. Em ambos os casos é um nome com profundo significado, não apenas pela inversão das sílabas, mas também dos valores: já não é o brilhante cavaleiro, mas, sim, o “necromante tântrico” que busca auxílio junto da maga Isolda, ou que engana Isolda para a entregar a outro homem.

Isolda (Iseut, Isaut, Isolt, Isalde, Isotta): é também um nome celta que remonta até o Essylt cimbro, mas o mais provável é derivar do germânico Ishild ou Iswalda.

Mario Roso de Luna relaciona a etimologia do nome com Isa, Isis, Elsa, Elisa, Isabel, Isis-Abel… inclinando-se para a imagem de Isis como a alma pura que dá alento a todos os homens.

É filha da rainha da Irlanda e sobrinha de Morolt (às vezes dizem-na sua prometida ou sua irmã); é mestra nas artes mágicas da cura, o que permite aparentá-la com Medeia e com Ariadne no mito de Teseu.

Isolda, a das Brancas Mãos: filha de Hoel, rei ou duque de Armórica ou da pequena Bretanha;é uma personagem que a maioria dos autores considera posterior e acessória ao mito original.

Morolt (Morholt, Morhot, Amoroldo, Morlot, Maroldo): é o cunhado do rei da Irlanda, um homem gigantesco que se apresenta anualmente na Cornualha para reclamar o tributo das cem donzelas.

Na versão wagneriana é o prometido de Isolda, que foi vencido por Tristão e o seu cadáver arrojado para uma ilha deserta, enquanto a sua cabeça foi espetada em terras da Irlanda.

“Mor” significa em celta “mar”, mas também “alto”, “grande”. É, em síntese, o monstro que Tristão-Teseu deve abater, pois simboliza a velha humanidade em contraposição com a juventude promissora do nosso herói.

Marcos (Marc, Marcos, Marke, Marco, Mars, Mares): rei da Cornualha, tio de Tristão e esposo de Isolda é, de acordo com Roso de Luna, a personificação do “Karma”, a lei do destino. É o único que sobrevive à catástrofe final do drama, sendo a causa pela qual se desencadeiam todos os efeitos.

Brangania (Brangel, Brengain, Brenguen, Brangêne, Brangaene): é a fiel aia de Isolda que, segundo as versões, confunde – intencionalmente ou não – os recipientes onde se encontram os filtros que Tristão e Isolda hão-de beber. Na obra de Wagner, Brangania é a escolhida para servir o filtro da Morte a Tristão e Isolda, mas, ou por medo ou confusão, dá-lhes em seu lugar o filtro do Amor.

Detalhe da janela do rei Marcos da Cornualha.

Detalhe da janela do rei Marcos da Cornualha.

 

Episódios simbólicos

O mito de Teseu e do Minotauro

São numerosas as coincidências com o mito de Teseu e o Minotauro. Tristão, tal como Teseu, tem de vencer um monstro: o gigante Morolt que exigia o tributo das donzelas, ou o dragão que assolava as terras da Irlanda. Por vezes estes dois episódios acham-se claramente diferenciados e outros vezes ambas as personagens, Morolt e o dragão, misturam-se, formando um único ser monstruoso.

Seguindo as pegadas de Teseu, Tristão conquista Isolda, mas não para si: Teseu entrega Ariadne a Dionísio, e Tristão entrega Isolda a seu tio, o rei Marcos.

No final do relato surge um barco cujas velas, brancas ou negras, são significativas do regresso de Teseu (e a morte de seu pai num caso) e da chegada de Isolda e da morte de ambos os amantes no outro caso. As velas fazem as vezes dum estandarte especial; para Wagner, Isolda aproxima-se com um pavilhão no mastro que é “a alegria luminosa, mais luminosa que a própria luz”.

Os argumentos Arturianos

A uma dada altura, Wagner chega a pensar em unir os argumentos de Tristão e Parsifal: “… Tracei o esquema dos três actos, nos quais pensava encerrar a acção do argumento inteiro de Tristão. No último acto introduzi um episódio que eliminei mais tarde: era a visita de Parsifal, errante em demanda do Graal, a Tristão jazendo moribundo no seu leito. Tristão, ferido de morte e agonizante, identificava-se no meu espírito com a personagem de Amfortas da novela do Graal”.

Amfortas era o rei guardião do Graal, que havia sido ferido com uma lança mágica por um conhecido necromante, ferida destinada a nunca mais se fechar. E algo semelhante sucede com Tristão que por duas ou três vezes sofre ferimentos incuráveis que só Isolda pode sarar. O factor mágico, necromântico, é indiscutível: Tristão é ferido por Morolt e/ou pelo dragão, e Isolda possui as artes necessárias para fazer retroceder o mal. Tristão ferido é Tantris, é a magia negra que o toma, e Isolda é a maga que sabe anular esses efeitos malignos. Adicionemos a estes aspectos quase atlantes, a última cura de Isolda: já não procura um remédio que retenha a vida física do seu amado, mas procura, sim, ela mesma seguir também o caminho da morte como única salvação e transfiguração.

Outra semelhança ocorre ao recordar o encontro de Marcos com os amantes adormecidos na floresta (ou a gruta nirvânica?) com a espada no meio de ambos. O rei Artur vive circunstâncias parecidas quando encontra Ginebra e Lancelot que haviam fugido para o bosque por não poderem ocultar o seu mútuo amor.

Mas, mais ainda, no cancioneiro galaico-português menciona-se que Tristão e Isolda vivem num castelo que lhes foi emprestado por Lancelot. Logo, Tristão decide tomar parte na conquista do Graal acompanhado da sua arpa e do seu escudo verde, como era uso dos jovens cavaleiros de então. Daí os nomes do “cavaleiro da verde espada” ou “o cavaleiro do verde escudo”.

A morte de Tristão varia conforme as versões. Temos o episódio do barco e das velas que mencionámos. Temos também o ferimento que Tristão recebe quer do rei Marcos ou de um dos seus cavaleiros, quando é descoberto com Isolda nos jardins do palácio. E há diversas variantes, incluindo a do próprio Wagner. Mas é quase sempre Marcos o que empunha a espada ou a lança mortalmente envenenada que havia sido expressamente enviada por Morgana para eliminar o cavaleiro.

A questão dos filtros

Deixando de lado o argumento habitual do filtro do amor que a rainha da Irlanda tinha preparado para a boda de sua filha, e o engano que leva Tristão e Isolda a bebê-lo, podem propôr-se outras possibilidades.

Se, à maneira do mito grego de Teseu, Tristão é o símbolo do homem e Isolda o da alma, é natural que haja união e amor entre ambos antes de beberem o filtro. Mas as circunstâncias da vida fazem com que o homem olvide a sua alma e se separe dela, negando-a ou desconhecendo-a. Então a alma reage. Isolda pensa que é melhor a morte que a traição e prefere que ambos morram a que vivam separados; assim, convida Tristão a beber o falso “Filtro da Reconciliação” que na realidade é o Filtro da Morte. Mas acaso não é a morte a única que pode reconciliar o homem com a sua alma? Há um engano, os filtros misturam-se e ambos bebem o do Amor: novamente união, reconciliação, mas desta vez em vida e com todas as dificuldades inerentes.

"Tristão e Isolda com a poção" de John William Waterhouse

“Tristão e Isolda com a poção” de John William Waterhouse

E é aqui que entramos nos argumentos filosóficos, muitos deles de carácter platónico.

Tristão é o homem crucificado entre o mundo dos sentidos e o mundo do espírito, entre os prazeres e as conquistas terrenas e a visão da Beleza eterna que só pode alcançar depois da morte (ou domínio) da sua personalidade.

Se em nenhum momento sente culpa pelo seu amor, sente, pelo contrário, culpa de ter cometido o pecado do orgulho, cedendo à sua ânsia de glória e poder terrenos em vez de alcançar a sua própria imortalidade. E se para isso tem que entregar a sua alma, não hesita em deixar que Isolda se case com Marcos.

A imortalidade de Tristão vem com a sua morte: a morte é para ele a redenção libertadora; é ali que começa a sua renovação, a sua passagem definitiva do mundo da dor e das sombras para o mundo da luz e da felicidade. A morte é vencida pela imortalidade; o canto trovadoresco é substituído pelo canto da Ressurreição; a lira e a rosa do amor transformam-se na espada resplandecente da Vida e da Morte. Encontrou o seu Graal.

"A Árvore Dourada e a Conquista do Graal" de Edwin Austin Abbey

“A Árvore Dourada e a Conquista do Graal” de Edwin Austin Abbey

Nem sequer falta o tema das almas gémeas, pois os protagonistas vão alcançando gradualmente uma perfeição que supera a paixão humana para transformar-se em possessão plena e recíproca, na identificação de um com o outro, na transubstanciação de um no outro.

 

Conclusão

Muitos são os símbolos que se entrelaçam nesta narrativa. O herói Tristão, expressão duma humanidade jovem e heróica, guerreiro e músico (5ª raça?) e a maga Isolda que vela constantemente por esta nova humanidade representada por Tristão, reflectem arcaicos segredos que tocam o homem: Mente e Sexo, Vida e Morte, Amor e Guerra.

A dualidade Mente-Sexo remonta a longínquas tradições esotéricas, nas quais se explica o momento crucial atravessado pela humanidade quando, uma vez separados os sexos, surge a centelha mental. Homem e mulher (cavaleiro e dama na literatura de corte) tiveram que enfrentar uma separação dolorosa e, ao mesmo tempo, atraente, com uma mente ainda incapaz de compreender o problema. Daí que o Amor sofreu então a dor e a atracção do sexo, e pouco ou nada do idealismo da mente clarificada.

Eis outras dualidades: Vida e Morte, Amor e Guerra. Tentaremos explicá-las a partir das características logóicas que, em seu triplo aspecto, influem nas condições humanas.

Tristão inicia o seu périplo de experiências a partir do aspecto Inteligência-Forma do 3º Logos. Ele é o cavaleiro inteligente que colhe glórias no mundo da forma: vencedor de batalhas, no entanto não conhece a Guerra; galanteador de donzelas, todavia não conhece o Amor; cantor e requintado harpista, é um músico que, no entanto, não conhece a Beleza; sensível perante a presença de Isolda, todavia não possui a sabedoria que o leve a reconhecer a sua própria alma.

É a Morte que o leva à fase seguinte: A Morte abre-lhe a porta do 2º Logos: Energia-Vida, Amor-Sabedoria. A morte da sua forma-corpo coloca-o perante o mistério da Energia-Vital que é a seiva do Universo e a razão da imortalidade. Pela Morte entende a Vida; pela Morte entende finalmente o Amor: a sua inteligência converteu-se em Sabedoria. Agora trava a Grande Guerra, a grande batalha que, tal como aparece no milenário Bhagavad Gita, enfrenta o homem com a possessão da sua alma, com a possessão de si mesmo.

Neste momento, o músico e o amante transmuta-se num ser sábio: agora conhece a Arte e o Amor, os aspectos essenciais da Beleza.

Um passo mais, e eis o êxtase da Morte por Amor, aquilo que o conduz à visão suprema: o Belo que é em si mesmo o Bom e o Justo.

Inteligência: triunfos mundanos, mas distantes da sua alma.
Forma: a música dos sons terrenos.
Energia-Vida: conhecimento da morte na sua forma precisa.
Amor-Sabedoria: Arte e Beleza conquistadas na Guerra pela sua própria possessão.
Lei: o Belo, o Bom, o Justo.
Vontade: superação de todas as provas, sublimação do desejo.

 

Tristão

É o perfeito protótipo que o neoplatónico Plotino nos propõe como via dialéctica de ascensão à verdade.

Tristão é o amante e o músico: tem a sua Isolda e a sua harpa; mas a paixão do mundo transforma o seu amor numa rosa vermelha de sangue e espinhos, e a sua lira numa espada que fere mortalmente.

Então chega ao mundo das ideias: o músico e o amante compreende e vê. Navegou por águas trágicas, protegido pelo seu escudo e pela sua alma, até chegar ao porto do Homem Novo, de uma nova forma de vida.

Este é o caminho do verdadeiro músico: das formas às ideias, do desejo à vontade, do guerreiro ao Homem.

E, para resumir o processo, nada melhor que as palavras de Richard Wagner, descrevendo as vivências do Amor que une o que a ignorância separa, mostrando Tristão e Isolda imersos “na insaciável vaga do Desejo, vaga que, nascendo da tímida confissão, cresce aguçada pelo suspiro vacilante através da esperança, do lamento e do deleite, do gozo e do sofrimento, até que, chegando no paroxismo do seu impulso à dor frenética, encontra a brecha por onde o coração se derrama no oceano das infinitas delícias do Amor… Mas tal embriaguez é em vão. O coração, impotente para resistir, desfalece de novo para se consumir no desejo inexequível, posto que todo o desejo satisfeito é o germen de outro mais ávido ainda, até que no último desfalecimento desponta na alma desgarrada o pressentimento do deleite supremo: a delícia da morte e do não-ser, a definitiva redenção, só conseguida no maravilhoso reino de que mais nos distanciamos, quanto mais e com mais impetuosa força nos obstinamos em penetrá-lo… Poderemos chamar a isso morrer? Ou é antes aquele obscuro mundo do Mistério do qual surgiram a hera e a vide estreitamente entrelaçadas sobre a sepultura de Tristão e Isolda, como nos conta a lenda?…”

 

"Tristão e Isolda" de John Duncan.

“Tristão e Isolda” de John Duncan.