Um dos mais graves e comprometedores acontecimentos que podem ocorrer nas nossas vidas é o chamado incidente arrítmico, fibrilhação ventricular ou, mais genericamente, paragem cardiorrespiratória. Ultrapassando os limites estritamente físicos dos ventrículos do coração, e fazendo uso da arte das correspondências, compreendemos que a vida, em todos os seus aspetos, depende de uma cadência cardíaca, que é seriamente ameaçada perante quaisquer formas de contração descoordenada, ineficaz ou caótica. Para tudo aquilo que fazemos na vida é necessário um ritmo que nos garanta que estamos vivos, que estamos a aprender e que caminhamos em direção a alguma coisa, é necessário sentirmo-nos parte de um Todo e que caminhamos com ele, dele e para ele. Se, por alguma circunstância, nos falta a constância, se as dificuldades nos fazem parar ou caminhar de forma irregular, se perdemos tempo e nos perdemos a nós mesmos no caminho, é necessária uma resposta rápida e relativamente fácil, que permita, ao menos, uma estabilização e um mantimento da vida interior até termos acesso a uma resposta mais eficaz e diferenciada, colhida dos ecos da sabedoria de todas as eras.

Fibrilhação ventricular, exemplo de arritmia cardíaca grave. Creative Commons

Todos nós sabemos, ou suspeitamos, que esta arritmia, quando ocorre, é responsável por causar uma perda de consciência total, quando se vai perdendo a cordura e a direção, quando se apaga a luz celeste sobre as nossas cabeças, ou parcial, quando nos impede de ver, em muitos momentos da vida, o que esta nos pede. Mas, de uma forma ou de outra, se o problema não for detetado e resolvido, este acabará por gerar uma espécie de morte interior da qual será difícil obter uma resposta realmente vital, de onde se acumulam vícios que nos lançam uma e outra vez neste inferno feito de falta de ritmo, harmonia e vida real.

Quando isto ocorre, é fundamental que haja uma rápida intervenção por parte de quem sofre este incidente, assim que se apercebe dele, e, in extremis, de quem o presencia. Este procedimento, se devidamente executado, aumenta, substancialmente, a probabilidade de recuperação e de sobrevivência desta vida interior. Esta intervenção deverá ser realizada com base em conhecimentos prévios, emanados de uma Cadeia de sobrevivência, que aqui faremos corresponder com a sobrevivência da vida interior, que interliga quatro elos essenciais:

  • ligar 112, ou melhor, recorrer, direta ou indiretamente, à generosidade e ajuda diferenciada dos Mestres;
  • reanimar, ou seja, procurar purificar-se e reanimar-se a si mesmo;
  • desfibrilhar, o que para nós será, disciplinar-se, a capacidade de percebermos um ritmo celeste e de o imprimir sempre que este aparente perder intensidade;
  • e estabilizar, isto é, estabilizar-se nesta cadência e reconhecer-se, identificar-se com ela.

Ilustração de uma desfibrilação, com o operador próximo à cabeça, mas livre de contato do paciente. Creative Commons

Para se empregar esta Cadeia de sobrevivência e podermos fazer o melhor uso dela, devemos fazer uma série de avaliações, das quais destacaremos apenas duas.

A primeira passa por avaliar as condições de segurança, ou seja, no momento da queda, perceber para onde se cai e como se cai, no momento da paragem, perceber onde se fica estacionado, e se ficarmos no meio da via e colidirem conta nós, para que lado apontam as rodas da frente. Estas rodas da frente são metafóricas, bem como quem colide contra nós, mas lembram-nos que temos de apontar sempre a determinada meta, sem esquecer que existem outros seres humanos, outros Homens a fazer caminho. Nesta que é a primeira fase de avaliação deste incidente, importa compreendermos a envolvência e a realidade dessa arritmia no nosso próprio estado interno, por forma a identificarmos, o mais rapidamente possível, que medidas de proteção e de ação poderemos tomar para evitar uma análise irrealista e desviante, bem como o risco que esta apresenta para nós próprios e, eventualmente, para terceiros. Como temos por hábito culpabilizar as circunstâncias e as pessoas que nos rodeiam e tentam ajudar, ferindo-nos e ferindo-as desnecessariamente, é fundamental que, o quanto antes, saibamos diferenciar o real do irreal e deslocar o Eu da nossa circunstância, observando-nos desde fora, procurando recolher o maior número de dados possíveis, os quais serão importantes para identificarmos o nosso estado interno e a sua origem, bem como para recorrermos a um conhecimento diferenciado, tendo em conta o que já nos ensinaram e Aqueles que, generosamente, nos continuam a ensinar. Esta primeira avaliação, a das condições de segurança, deverá começar (e, diríamos, terminar), precisamente, com a pergunta: “Estão reunidas as condições de segurança?” Porque isto nos fará, imediatamente, procurar e tomar consciência dos perigos, das respostas enganadoras, das fugas para a frente e da incessante necessidade de procurarmos culpados. Perguntarmos se, dentro de nós, estão reunidas as condições de segurança, é tão importante quanto perguntarmos se estamos vivos e conscientes, pois isso criará de imediato um guardião vivo e consciente dentro de nós, que observa atentamente, através das muralhas do sagrado, todos os movimentos profanos que o possam ameaçar, todas as flechas envenenadas, todas as armadilhas e todos os males que sucedem àquele que caminha distraidamente. E isto é importante, se queremos ter a certeza de que não tomamos o irreal por real e o defeito pela virtude, em todas as escolhas que faremos daqui para a frente.

Esta fase da avaliação das condições de segurança deverá ter em vista cinco pontos:

  • garantir a segurança, nossa e de terceiros;
  • identificar, evitar e, se possível, corrigir aquilo que representa um risco;
  • não agravar o nosso estado interno;
  • limitar ao mínimo o tempo de estabilização interior, por forma a recuperar, o mais rapidamente possível, o ritmo;
  • recolher informação relevante para a fase seguinte.

Depois desta, a segunda fase passa por nos autoavaliarmos em três momentos individuais ou complementares, que são eles a abordagem ABCDE, a escala AVDS e o questionário CHAMU. Em conformidade com a circunstância e durabilidade do incidente, podemos escolher um deles, ou utilizá-los a todos.

Estudo anatómico de Leonardo da Vinci. Domínio Público

Na abordagem ABCDE, ou avaliação primária, temos cinco etapas dispostas pela seguinte ordem de prioridade, como forma de “matar” aquilo que primeiro nos mata, que devemos considerar com algum detalhe:

A) Permeabilização da Via Aérea com controlo da coluna Cervical, ou seja, garantir que, por olharmos demasiadas vezes para baixo, deixando o queixo encostado ao peito durante demasiado tempo, não estamos a obstruir a nossa garganta e a nossa respiração, e para isto bastará levantar a cabeça em direção ao horizonte. Inspecionar e compreender se não temos nada preso na garganta, algum corpo estranho, algo que tenhamos medo de dizer ou que, simplesmente, não sejamos capazes de expressar por palavras, ou algo que nos custe a engolir. Perceber se estamos a deixar o ar entrar e sair corretamente, se estamos com dificuldade no dar e, ou, no receber, ou simplesmente se a nossa coluna, em vez de expressar a natural condição humana, a vertical, que une a terra ao céu, segue a curvatura da derrota dos sonhos por cumprir, onde a terra se descola e se esquece paulatinamente do seu florido capitel celeste.

B) Ventilação e oxigenação, que é avaliarmos e monitorizarmos a forma como respiramos e o que esta respiração evidencia sobre nós próprios, se estamos com insuficiência respiratória ou se retemos demasiado CO2, isto é, se necessitamos de mudar de ares, de nos deslocarmos para um local interior mais elevado onde o ar seja mais puro, se necessitamos de oxigénio em maior ou menor débito ou se, simplesmente, temos dificuldade em expelir aquilo de que já não necessitamos. Por vezes, ficar a mente nalgum ponto fixo ou ideia, nalguma mão que se ergue com a voz “não se mexa”, é o suficiente para que passemos a respirar um pouco melhor.

C) Circulação, isto é, identificar se há algo que impeça a nossa vida interior de correr ou alguma hemorragia por onde esta se nos escape. É aqui que devemos procurar controlar as hemorragias, por compressão direta ou indireta, bem como imobilizar fraturas internas. Na presença destas hemorragias e fraturas internas, devemos reacender o fogo espiritual interior e eleger a estabilidade daquilo que é duradouro e que não se desvia com o tempo, ou, se preferirmos, aplicar o ditado popular que nos diz que “o que arde, cura, o que aperta, segura”, começando pelo último, sem nunca esquecer o primeiro.

D) Disfunção neurológica, que é identificar e corrigir as condicionantes que influenciem o estado de consciência, não a deixando correr descontrolada por polaridades opostas nem cair inanimada aos nossos pés, isto é, ao estritamente material e instável, mas procurar elevá-la a um estado de absoluta lucidez, onde esta possa trabalhar independentemente do estado das coisas que venha a encontrar.

E) Exposição, ou seja, avaliar outras situações que ponham em risco a vida interior, como a temperatura a que estamos expostos, para que não nos deixe num estado de hipotermia interna, onde perdemos mais fogo do que aquele que somos capazes de produzir e que pode levar à morte, bem como avançar com a avalização por zonas primeiramente ocultadas por véus e máscaras, por forma a que não se nos escape as causas reais do problema, só porque não retirámos algo que o ocultava.

Por sua vez, na escala AVDS, avaliamos, em concreto, o nosso estado de consciência relativamente a estes incidentes, bem como em qualquer outra circunstância. Esta escala permite-nos saber onde está a nossa consciência, se está, e até que ponto somos realmente capazes de aprender e avaliar a nossa vida interior, com todos os seus detalhes, desafios e provas. Esta escala ajuda-nos a dizer, sumariamente, se estamos:

A) Alerta, ou seja, conscientes quanto às nossas dificuldades, à nossa vida interior, quanto ao caminho e à meta, se estamos na posse de nós próprios. Se não estivermos alerta, devemos perceber se:

V) Respondemos a estímulos Verbais, ou seja, se despertamos e ganhamos essa consciência quando falam connosco, nos ensinam e nos tentam encaminhar, repetidamente, em direção à verdade. Se não respondemos a estímulos verbais, e se estes nem nos despertam nem nos transformam, devemos perceber se:

D) Respondemos a estímulos Dolorosos, isto é, se ao menos aprendemos com as dores que a vida interior nos traz e se despertamos para ela. Se isto não acontecer, então sabemos que, no que diz respeito à vida interior ou espiritual, nos encontramos:

S) Sem resposta.

Uma flor, uma caveira e uma ampulheta representam a vida, a morte e o tempo nesta pintura do século XVII de Philippe de Champaigne. O crânio humano é usado universalmente como um símbolo da morte. Domínio Público

Como é óbvio, o nosso estado de consciência encontra-se sem resposta para muitas questões e mistérios da vida, no entanto, se formos encontrando e seguindo o ritmo da nossa vida interior, esta vai-nos questionando se “estás a ouvir?”, enquanto nos bate ao de leve nos ombros, ou então, naquilo que costuma ser mais comum, beliscando, para que possamos acordar de uma ou de outra forma. Aqui importa compreender que “a dor é veículo de consciência”, e só ocorre quando não fomos capazes de ouvir nem de estar alerta.

Por fim, e como as crises têm tendência a repetir-se até que se identifique e cure a sua origem, para cada um dos nossos incidentes arrítmicos, podemos recorrer ao questionário CHAMU, que nos fará identificar umas causas e eliminar outras.

C) Circunstâncias, ou seja, entender em que caso e envolvência específica o incidente se deu, qual a sua causa e de que forma este se desenvolveu até chegarmos ao ponto em que nos encontramos.

H) Historial, recordar outras situações idênticas onde o incidente ocorreu, o que aprendemos com elas e que progressos, por mais pequenos que sejam, já foram feitos e o que somos já capazes de identificar.

A) Alergias, compreender onde e em que poderá existir uma maior tendência de perdermos ritmo. Procurar identificar o que é que nos faz duvidar, esquecer, distrair, estremecer ou cair, por exemplo, e procurar formas de o evitar no futuro.

M) Medicação habitual, ou seja, que tipo de respostas temos dado a estes incidentes, se têm resultado ou não, em que circunstâncias nos debilitam e de que forma têm dificultado a resposta. É aqui que podemos perceber que, provavelmente, necessitamos de um fármaco novo e deixar de depender do habitual.

U) Última refeição, por mais estranho que pareça, importa sempre compreender qual a última refeição, que até sobre os nossos sonhos tem influência, de que é que nos temos alimentado ultimamente, qual o nosso alimento interior, o que temos lido, o que temos pensado, o que temos conversado, e por aí fora. Isto pode dar-nos uma resposta mais rápida quanto ao sucedido e ajudar-nos a compreender mais um elemento potenciador deste tipo de incidente.

A arritmia da vida interior é uma forma de morrer, mais ou menos passageira, conforme a resposta e as ferramentas que tenhamos para a inverter, tal como sucede nos incidentes arrítmicos exteriores. São uma forma de nos lembrarmos que estamos vivos e uma forma de nos lembrarmos que podemos, a qualquer instante, morrer. O que pretendemos, com esta brevíssima reflexão, foi trazer alguns elementos do suporte básico de vida para uma espécie de suporte básico da vida interior, como o qual possamos também trabalhar e que, se possível, por meio de um algoritmo, nos permita reencontrar um ritmo de reflexão e trabalho onde este parece ter deixado de existir, e que no processo, nos possamos autoavaliar e reconhecer um pouco mais.

Ricardo Martins

Imagem de destaque: Diferentes grupos étnicos de humanos. Creative Commons