Nos convulsivos anos 60, com a cultura pop emergindo, a guerra do Vietnam, o movimento hippie e a projeção literária das viagens espaciais que nos levariam à Lua e ainda mais longe, surgiu uma série televisiva com pouco impacto no princípio, mas que depois se estenderia por todo o mundo e ainda hoje é objeto de culto.
A pluma enriquece e embeleza com o mito, o original e histórico. Os EUA começam a ingerir-se criminalmente nas políticas dos países do Médio Oriente, tendo Kissinger como sua bandeira e cérebro. Na série, ao contrário, uma Federação Galáctica leva as suas missões de exploração e tratamento benéfico ao infinito, apenas coartados pelo Império Klingon, no qual imaginamos uma espécie de Soviete e Japão imperialista, que se expande militarmente também pela galáxia.
Gene Roddenberry liderou este projeto de oitenta capítulos (de setembro de 1966 a setembro de 1969), no princípio fazendo ele mesmo, inclusive os guiões, e depois convocando os melhores escritores americanos de ficção científica.
Gene Roddenberry (1921-1991) foi um piloto americano na Segunda Guerra Mundial, um herói condecorado por oitenta e nove missões, escrevendo poesia e contos nos seus tempos livres. Viu a morte muito de perto quando o seu avião se despenhou. Ao finalizar a guerra, estudou Literatura na Universidade de Columbia e trabalhou como piloto comercial, e despenhou-se novamente no deserto da Síria, morrendo aqui catorze dos passageiros e resultando em mais feridos. Trabalhou durante um ano e meio como polícia e depois no departamento de imprensa da mesma, em Los Angeles. Investigando nos muitos dos conhecimentos esotéricos que manifesta nos capítulos da sua série original, resulta que teve como companheiro e depois amigo, ao longo da sua vida, o também escritor Don G. Ingalls (Bonanza, Ilha da Fantasia), que tinha sido discípulo direto nas práticas ocultas de Manly P. Hall, um dos grandes estudiosos e divulgadores da filosofia esotérica e da Doutrina Secreta de H. P. Blavatsky.

Gene Roddenberry, NASA. Domínio Público
Os meios tecnológicos mais avançados da sua época na televisão, os seus efeitos especiais, fazem-nos hoje sorrir. No entanto, os guiões são originalíssimos, os dilemas e as reflexões morais de grande atualidade, e o debate sobre os perigos da inteligência artificial é assombroso para a sua época. A imaginação científica é muito fértil, com as suas velocidades warp, que superam n vezes a velocidade da luz (e sem o qual não haveria histórias para narrar, nem viagens intergalácticas realistas possíveis); com os seus phasers (semelhantes aos lasers), armas de impulsos eletrónicos que podem fazer perder o controlo ou inclusive desintegrar segundo a potência; com os seus motores com energia devido à interação1 controlada da matéria e da antimatéria, e graças aos cristais de um material especial, que chamam de dilítio. A ideia dos cristais como força motriz de uma civilização foi extraída seguramente das leituras de Edgar Cayce sobre o passado atlante, muito divulgadas então nos Estados Unidos, e não deve ser descartada, pois não sabemos o que nos reserva a nanotecnologia do futuro. Também nos surpreendem as ocasionais viagens no tempo graças ao conhecimento da textura do espaço quadridimensional, que pulsa como um ser vivo. E, desde logo, o teletransporte, transformando a matéria em energia, redirecionando-a e depois condensando-a novamente, um sonho do futuro, e que já estamos fazendo no presente com fotões e átomos. As narrativas sobre antigos e modernos iogues mencionam essa possibilidade como um facto, e H. P. Blavatsky, e até mesmo Olcott chegam a explicar como é teoricamente esse processo. Talvez Gene Roddenberry se tenha inspirado neles.
Os escudos defletores para rechaçar ataques de laser e de impulsos iónicos, quiçá não sejam ciência de antecipação; o tricórdio para fazer uma análise espectroquímica e de vida já tem plena atualidade; o raio trator é muito imaginativo e não parece impossível de forma alguma; o tradutor universal de línguas galácticas, conhecidas ou não, é o sonho do Google e de outros; e na robótica, muito lentamente vamos na direção que a série anuncia. Os raios que reconstroem ossos e fraturas, quiçá seja uma versão muito avançada da atual terapia a laser.
Socialmente, também foram revolucionários e vemos capitães de naves interestelares e mulheres tratadas de forma idêntica aos homens; na Enterprise, além disso, são conjugadas as raças sem qualquer distinção ou preferência. E a sociedade americana ficou comovida com o beijo da tenente de comunicações afro-americana Yuhura e do capitão James Kirk, embora deva ser dito que, na verdade, foi imposto telepaticamente e contra a vontade de ambos no capítulo, Os enteados de Platão. Os universos paralelos da teoria quântica de Everett também são muito bem tratados, e um dos melhores capítulos da série original é Mirror, mirror, onde, devido a uma interação ou avaria no teletransportador, o capitão Kirk e Spock aparecem na mesma nave Enterprise, mas nela tudo é invertido moralmente e a liderança, em vez de ser exercida pela vontade e bondosa inteligência, é feita de forma maléfica, manipuladora e egoísta, todos em guarda contra todos, porque o espaço que um ocupa é arrebatado ao outro, e sobe-se na pirâmide pisando os outros, acrescentando horrores e subtraindo vidas.
É admirável, em alguns capítulos, a conjugação entre a ciência espacial e o hermetismo; por exemplo:
No capítulo 1, Um lugar nunca visitado pelo homem, os raios cósmicos que sofre a nave ao chegar quase aos confins da galáxia despertam em dois passageiros um poder mental semelhante ao de um deus (poder que na Índia chamam kriyashakti), mas não sendo um deles de coração puro, converte-se em inimigo de todo o equilíbrio vital e deve ser destruído, no estilo mais puro das encarnações de Vishnu contra os asuras nos Puranas.
No capítulo 31, Metamorfose, um ser celeste que parece eterno e de luz, como se fosse o Eu Superior ou o Divino Augoeides das tradições teosóficas, interage em puro amor com um mortal solitário num planeta, outorgando-lhe juventude permanente.
No capítulo 48, Síndrome da Imunidade, uma espécie de gigantesca ameba cósmica alimenta-se da energia dos sóis e dos planetas, e a nave, como um vírus, deve introduzir-se no seu núcleo e rompê-la desde dentro, com uma explosão que rompe o seu código genético.
No capítulo 66, O dia da pomba, um ser de plasma invisível, semelhante a uma ave, chegada do espaço, entra na nave e promove discórdias e lutas, alimentando-se assim delas, e a Federação e os Klingons são obrigados a se entenderem em harmonia para não se destruírem mutuamente.
No capítulo 68, O piscar de um olho, uma substância faz que os que a bebam entrem numa dimensão de tempo tão acelerada, que origina fenómenos prodigiosos, e a relação com os humanos da Enterprise é como a que se narra nos espíritos de natureza, que nos mitos constroem um castelo em apenas uma noite.

Capitão James Kirk. Domínio Público
A lógica – além das emoções – de Spock, ou a paixão do médico Mac Koy, médico por vocação até ao tutano dos ossos, ou o amor pelas máquinas da Enterprise de Scotty, como se fossem suas filhas, geram situações muito divertidas e até pedagógicas, todos elas conduzidas pela força imbatível de liderança do capitão James Kirk, casado com a nave e a sua missão, que assume o perfil do perfeito governante de Platão, com os valores ao máximo que lhe são próprios. O líder perfeito, uma espécie de encarnação do 1º raio da teosofia, com a sua vontade indómita, a sua mente ativíssima e o seu perfeito sentido de bondade e sacrifício, escravo do dever, da lei e.… do espírito de aventura, que lhe outorga a sua mesma missão de explorar novas terras e povos.
Dedicaremos mais dois artigos ao exemplo de liderança executiva e moral do capitão Kirk, e outro em como a ficção científica se adiantou nesta série, meio século, aos atuais debates sobre a inteligência artificial.
1 A mistura de matéria e antimatéria como fonte de energia para naves espaciais, usando anti-hidrogénio congelado que é manuseado com campos magnéticos sem sequer tocar na matéria para evitar explosões, a NASA admira por ser razoavelmente correto, lemos no artigo, A ciência de Star Trek segundo a NASA; https://hipertextual.com/2016/09/ciencia-star-trek-nasa
José Carlos Fernández
Escritor e Diretor de Nova Acrópole Portugal
Imagem de destaque: 1- Star Trek IV (Imagem composta). Domínio Público: Spok, Captain Kirk, Alone in Space, Ion Engine Test Firing.