“[…] não seria, para as parteiras, o maior e mais belo
trabalho distinguir o real do irreal?”
Voltemos, voltemos a Sócrates, para lhe fazer mais uma homenagem, uma apologia, um ditirambo, um louvor, uma ode como pudermos; porque, se aquilo que nos ensinou é certo e belo, será por fim eterno e tão válido nesse tempo um tanto antigo como hoje.
Estamos na Atenas do séc. V a.C., o século de Péricles, da construção do Parténon, de Fídias, Sófocles, Eurípides, Ésquilo. Pelas ruas desta cidade passeia-se Sócrates (470-399 a.C.), um ser incomparável, estranho, formidável, inqualificável, exótico[1]. Filho de uma mãe parteira, que dava à luz as gentes ricas e pobres da cidade, e de um pai escultor. Será como um profeta a meio – vem a mando divino mas não tem nada para anunciar a não ser isto: que a única coisa que tem para dar, é somente aquilo que cada um se pode dar a si próprio.
De facto, será acusado, como ainda hoje a Filosofia, de provocar, de suscitar mas não resolver, de não dar nada em concreto. Admitirá, muito humildemente no Teeteto (150c), que está proibido de produzir por ele próprio mas que poderá ajudar, com o auxílio do deus, a que cada um nasça de si; mas adverte que não tem nenhuma fórmula para dar ou uma mensagem acabada a fazer ouvir. Salvo, claro está, que todos crêem saber algo sem o saberem, e que dormem mais do que vivem, entregues a um quotidiano e ambições que não olham ao valor supremo que pode alcançar uma vida humana. Repeti-lo-á bastantes vezes, e também será acusado de repetição, ao que responderá que não tem ânsia de novo mas de verdadeiro.
A sua época conhece a filosofia natural – se quisermos, a irmã mais velha da ciência moderna, com o seu estudo das leis físicas –, assim como o fenómeno da sofística, dos professores profissionais que cobram pelo seu ensino e que ensinam o relativismo moral, a persuasão, a arte de triunfar sobre os outros e de obter vantagens de tudo. Será acusado tanto de uma como da outra; mas, embora as tenha conhecido, é mais certo porém que as tenha ultrapassado, pois o simples estudo das leis naturais não limpa por si a alma humana e, dos sofistas, tendo tudo o que eles tinham, tinha em sobra o que lhes faltava.
Aqui não queremos abordar as várias polémicas que suscita. Muito material existe sobre o quão mítica ou histórica seja a sua personagem, o quão dela pertence a Xenofonte ou a Platão, o quanto o Sacerdote de Delfos e Elêusis o retrate de forma mais fiel nos seus primeiros diálogos que nos últimos. De facto, dos seus discípulos sairiam as Escolas de Filosofia mais diversas, como a Academia de Platão, a Cínica ou a Cirenaica, de Antístenes e Aristipo, respectivamente. Além disso, ainda em vida provocou a sátira de Aristófanes, As Nuvens, e já no seu tempo suscitava o espanto, o assombro, a adoração, o amor, a calúnia; e, incrível força a sua, ainda hoje continua a fazê-lo, pelo que uma coisa é certa: a sua presença vital é ainda forte e vigorosa, constante e activa[2].
Digamo-lo d’entrada – podemos quase entender, vislumbrar, pressentir Sócrates, mas nenhuma linguagem nos dará o que ele viu, a sua convicção interna, a sua clareza. Para o compreendermos bem, seria necessário termos tido a experiência da ascese sincera e purificadora – assim, quem a teve entenderá perfeitamente a realidade intrínseca daquilo que para outros serão, quando muito, mais um conjunto de conceitos. Dos diálogos platónicos costuma exalar um profundo perfume de regeneração, de alegria intensa; onde o mundo fica mais vivo, a vida mais clara. Num deles, quiçá mais do que em qualquer outro, transparece com luzidia lucidez a sua verticalidade – A Apologia de Sócrates.
O que entendemos por verticalidade? Esse viver com eixo e subordinar a sua conduta à coerência que esse eixo obriga. A verticalidade remete, além e sobretudo, para uma ascensão, para um altear, para um estar-se virado para cima. Como veremos, para Sócrates, nada era em última instância mais importante nesta vida do que o despertar e manter vivo esse instinto d’ascensão. Assim, o que nos propõe, é um método de purificação, uma ascese, um entusiasmo divino ao saber ser-se d’Apolo e de Dionísio ao mesmo tempo.
Se assim o podermos dizer, o que Sócrates propõe é a Verticalização do Ser.
A Substância do Vertical
Hoje, nos dias em que a moral é quase uma ofensa, há que se conseguir consubstanciar o que se entende por “verticalidade”, lembrando mesmo Diotima, umas das mulheres da vida de Sócrates, que lhe explicou que a intuição gerada pelo amor, o pressentir da presença é um passo essencial, mas que, apesar de tudo, algo que não se consegue explicar é também algo que não se conhece[3]. Assim, há um aspecto fundamental, e bem contrário à ideia que hoje se tem da Filosofia: a pergunta, a dúvida, são um meio, não um fim ou a conclusão circular, pois Sócrates não duvida; aliás, tem crises internas e resolve-as, movendo-se, e o relativismo é-lhe alheio e quase incompreensível. Ao contrário dos sofistas, defensores acérrimos duma posição e do seu contrário, Sócrates não apregoa o relativismo por um simples motivo: porque não é verdade.
A verticalidade é portanto feita de coerência, de estabilidade; é uma fortaleza na qual se sabe quem se é e o que tem que se fazer por se ser o que se é. É, numa palavra, agir sempre de acordo com a sua identidade profunda; é o não ceder perante a possibilidade da vantagem, da sedução, do cálculo; é manter-se fiel aos princípios e não ao ditame das circunstâncias. Aqui, não se faz o que nos interessa, mas o que tem que se fazer até às últimas consequências, sejam elas o escárnio, a calúnia, o exílio, a morte.
É evidente que a coragem faz assim parte da Filosofia, da verticalidade. Sabemo-lo bem – Sócrates combateu por Atenas com valentia na frente de batalha por três vezes e manteve a sua postura firme em diferentes ocasiões, mesmo quando a sua vida estava suspensa no ténue limiar dos acontecimentos[4]. Nas suas palavras, depois de se referir ao sucedido durante o regime democrático, e nesta passagem falando já aquando da Tirania dos Trinta (Apologia, 32d):
“[…] demonstrei então, não por palavras mas por obras, que a morte não me incomodava absolutamente nada – perdoem-me a dureza da expressão -, o que me preocupava acima de tudo era não fazer nada injusto ou ímpio. […] esta autoridade, poderosa como era, não conseguiu forçar-me a cometer, por medo, uma injustiça.”
Como pôde Sócrates agir de tal forma? Onde ancorou o seu agir, o seu sentido? De perto, vê-se que no seu estar está subjacente uma estrutura, uma escala de valores, onde se situa para encarar sempre com entusiasmo e amabilidade todas as adversidades – e de onde, de resto, olha para cada acção a fazer tendo em atenção nunca desonrar a dignidade humana. Poderíamos dizer que esta escala é constituída pela supremacia do espírito sobre a matéria, pela imortalidade da Alma, pautando sempre a sua acção pela Virtude, que é o proceder natural do Ser. Assim, vive sempre a partir da sua identidade mais profunda, identidade clareada ao longo das meditações que lhe foram necessárias para ultrapassar as suas crises[5].
Ainda um sofista poderia dizer: claro, mas a verticalidade era a sua, a que ele escolheu, e não universal em si. Para Sócrates, isto era uma falácia, pois a virtude decorre do Bem Universal, que é possível de apreender:
“Sócrates contraria-os porque para ele o Bem Universal, mãe de todos os bens particulares, existe. A iniciação à consciência deste Bem traz, na sua opinião, a cada um, verdadeiros meios de discernir a acção justa em qualquer situação particular que sejamos levados a viver, graças à investigação que permite encontrar o seu ser interior e agir à luz dos princípios universais.”
Eis-nos perante três ideias fundamentais e uma questão: é preciso uma iniciação a este Bem, há uma investigação que permite encontrar o seu ser interior e é possível agir à luz de princípios universais; ao passo que a questão não poderia deixar de ser: como levar a cabo esta investigação?
Primeiro, assumindo que não se sabe. Esta humildade provoca a necessidade da busca, a necessidade de preencher a plenitude, o que nos coloca no caminho do Amor, que nos irá colocar em movimento e nos fará ascender de degrau em degrau, até onde a razão cessa e chega, e vê-se, por fim.
Estando assim abertos, poderemos utilizar o método socrático, feito de dialéctica e de diálogo com os outros e consigo mesmo. Um diálogo que não é um debate mas sim uma abertura para cima – ao contrário dos sofistas, que ensinam a vencer debates, a ter razão sem verdade e a esmagar o seu adversário, o diálogo é um espaço intermédio onde uma ascensão conjunta a uma verdade inapercebida pode acontecer. Pressupõe a presença e a palavra, tão caras ao processo filosófico tradicional.
Consigo mesmo, o diálogo é silêncio, e pensar é conseguir ouvir. Pelo diálogo interno e com o outro, conforme a verdade vai emergindo como um campanário pela aurora, a nossa razão vai-se preparando para a visão e para a compreensão, conforme vamos ascendendo, mais puros e claros, mais leves e alegres, mais convictos e plenos. A consequência desta compreensão verificada é a vida conforme apreendida pela visão das consequências das nossas acções além do quotidiano.
Este diálogo, para ser efectivo, precisa da dialéctica, desse questionamento constante e progressivo para uma verdade superior que fará cair toda a crença, toda a pretensa sabedoria e todo o preconceito, obrigando-nos ao rigor da lógica e da coerência, desde que estejamos prontos para o embate e para nascer por dentro, desde que aceitemos subjugar o nosso orgulho e vaidade à evidência interna[6].
De facto, aqui as perguntas são degraus, e para que o diálogo possa frutificar, é necessário que se ultrapasse a individualidade e que ambos os interlocutores se submetam de livre vontade a um nível superior de Ser, ao nível da universalidade, onde reside o logos comum a ambos (Hadot, 60). Além disso, é necessário que o discípulo tenha as condições para tal, porque para se dar à luz é preciso estar grávido. Sócrates irá reconhecer (Teeteto, 150-151) que nem todos têm de facto algo para nascer além da fantasia – irá submeter os seus discípulos à prova; uns amá-lo–ão e sentir-se-ão gratos, como Nícias; outros revoltar-se-ão como Alcibíades. Sócrates, de si, auxiliado pelo seu daimon[7], saberá que discípulos acolher, quais rejeitar e a quais dar uma segunda oportunidade.
Em si, a dialéctica tem três fases distintas, que tanto se assemelham ao processo alquímico: a exortação, onde devemos reconhecer a nossa ignorância, com todos os erros e justificações, o que gera a possibilidade da transformação e dá espaço ao Amor, a esse movimento de recuperar o que nos falta; a refutação, onde nos purificamos em espiral ao longo das encostas da Via da Constatação; e a Maiêutica, em última instância a ciência de morrer e nascer duas vezes, onde nos recordamos e nos reconhecemos, ainda ficando e contemplando, no Cume do Monte Hélicon[8], para descer pela mesma estrada por onde subimos, mas já tão transmutados por dentro. Isto, claro, porque o objectivo da dialéctica é voltar à luz da origem (Schwarz, 53).
Noutros termos, bem mais cristalinos e concretos:
“A dialéctica permite libertar-se da aparência sensível e encontrar as causas ou essências. Liberta a alma da pretensão que têm as sensações de ser a origem ou a causa da verdade. Também permite, uma vez encontrada a clareza, descer, liberta de qualquer influência do ambiente e das aparências, para agir na realidade. A prática da dialéctica ajuda a alma a construir o caminho que lhe permite circular livremente nos diferentes planos da realidade.”
Ao seguir um caminho ascendente de definição e captação de um aspecto do real, e ao descer para verificar e demonstrar essa captação, a dialéctica apresenta-se como uma verticalização do sensível e um contínuo reforço da nossa identidade mais íntima. Liberta a alma, porque esta entende que não é o seu corpo nem as suas emoções e pensamentos mais turvos, já um pouco mais purificados. Ao fazê-lo, trá-la para o mundo, onde pode praticar, devido à sua visão clara da raiz das coisas, a liberdade e a dignidade interior. O medo da morte, que juntamente com o da miséria é o que mais costuma paralisar uma vida, vêem-se assim progressivamente reduzidos à inexistência.
É assim que se harmonizam os opostos, que se fundem Apolo e Dionísio, que se conciliam a razão e a contemplação – a teoria grega é uma inspiração e uma teofania. Estamos no limite do pensamento, na soleira da razão, no fim da linguagem, e a nossa razão analítica não tem como acompanhar Sócrates até ao fim, e pergunta-se: mas como pode a lógica não ser explicável e tudo confluir numa vivência sem transcrição? De certa forma, não é o uso da lógica que mortifica o espírito, é o pensar que a lógica se basta a si própria que mais o lesa, pois não há nada que possa ser verdade para a razão que não o seja para o espírito, mas há razões do espírito que a razão não entende. Estamos no domínio da consciência moral, da interioridade que não se transmite – o que interessa são os valores que dirigem a vida, o saber ser-se e não o saber que se tem das coisas em si.
É neste limiar que Sócrates nos escapa, é por isso que ele, “no contexto da história da filosofia grega, enquanto história de posicionamentos teóricos, não tem qualquer lugar” (Jaspers, 27); porque a sua filosofia não é um círculo mental sem saída, mas sim uma verticalização, uma ascese, um uso da razão como preparação para a intuição da essência, e a sua vivência. De facto, como chegaram a nós os seus diálogos amorosamente implacáveis, também possuímos vários relatos dos seus comportamentos, como a sua resistência ao frio e ao vinho, e são conhecidos os seus momentos de profundo êxtase contemplativo.
N’O Banquete, ia para casa de Ágaton com Aristodemo, mas parou a meio do caminho em profunda meditação – chegaria ao jantar já bem mais tarde[9]. No discurso de Alcibíades, encontramos o relato do seu êxtase contemplativo de vinte e quatro horas seguidas, de aurora a aurora, em Potideia:
“Certa vez, embrenhado nas suas reflexões, deteve-se em qualquer sítio e ali ficou especado desde a aurora, em busca de uma ideia qualquer. E como esta não lhe vinha, ali continuou a pé firme, sem abandonar o campo. Era já meio-dia; os homens começaram a reparar e, perplexos, passavam a notícia uns aos outros: desde o romper da aurora que Sócrates se encontrava imóvel, a meditar… Ao cair da tarde, alguns Jónios foram, por fim, jantar e, como era Verão nessa altura, levaram os seus leitos de campanha para fora das tendas. E ali se dispuseram a dormir ao relento, ao mesmo tempo que vigiavam Sócrates, a ver se, também essa noite, ele continuaria ali a pé firme… Pois ele continuou, até que a aurora veio e o Sol rompeu. Só então, depois de dirigir as suas preces ao Sol, se afastou.”
Onde estaria Sócrates e que comportamento é este? Não nos lembramos acaso dos êxtases de Plotino, por exemplo? Ficamos tão confusos, que de pai do racionalismo chegamos a entrever a sua ligação ao Oriente, ou mesmo a afirmar que era um xamã, um feiticeiro que encantava com a palavra[10]. Um pouco mais claro e razoável para nós será o reconhecer que o conhecimento, na sua via, é por fim reminiscência, que aflora mediante o domínio das paixões e a purificação contínua do plano mental. Através desta ascensão, deste reconhecer o Uno no múltiplo, deste vislumbre celeste, é-nos dada a possibilidade de participar conscientemente no Cosmos, e é assim que faz a ponte entre a razão e a visão, entre a crença popular e os Mistérios, entre a superstição e a convicção profunda; onde a razão é usada mas não reina, onde a visão é clara mas posta à prova.
É ele quem carrega em si essa tradição arcaica da Alma Prisioneira, que recorda o desmembramento de Dionísio pelos Titãs, de cujos membros e cinzas é feito o Homem, quem de tal verdade se esqueceu. É ele então quem difunde o Orfismo e o Pitagorismo, quem fala de deuses e da morte pelas ruas e nos mercados, alertando todos para o vazio final da riqueza e do poder, até mesmo da saúde, mostrando pela forma como vive e como haveria de morrer que a educação da alma é o bem supremo da vida humana e o seu objectivo mais nobre.
Para isto viveu Sócrates, e disto haveria de morrer também.
A Morte de Sócrates
A escada de valores que constata como sendo a mais natural do Ser Humano, desagua no primado do superior sobre o inferior, do justo sobre o injusto, do espírito sobre a matéria. É preciso ascender, dominar-se, purificar-se, sacudir a letargia e recordar-se, reconhecer-se e viver para o essencial – ousar o Bem, a Imortalidade, o Eterno. É esta a mensagem que irá levar a todos, em todo o lado, interpelando os seus concidadãos com a sua ironia e a sua máscara para, através das suas perguntas, constatar que muitos que se crêem sábios na realidade não o são.
O questionamento de Sócrates era um terror e uma bênção porque, em verdade, ao questionar o que o outro sabia, esse outro acabava por se questionar a si próprio e via-se obrigado a olhar para os alicerces da sua conduta, para aquilo que estava a fazer à sua vida. Sendo seres mentais por natureza, é-nos fácil imaginar o distúrbio interno que podiam levantar a sua presença e as suas palavras, o choque que provocava, o embaraço que invadia quem o ouvia e sabia estar errado, e insistia em não alimentar o seu instinto d’eternidade. Ao contrário do apelo ao ter, proeminente de sobremaneira hoje em dia, Sócrates dedicou-se por inteiro ao seu papel de educador de almas e apelava directamente ao Ser.
Assim fazendo, contudo, sobre si recairia então o ódio, o escárnio, o ressentimento. Como tão bem descreve Alcibíades, a sua palavra descompunha, era fulminante, perturbava, derrubava o outro interiormente, esse outro que sentia vergonha, que reconhecia as suas falhas, que constatava não ser capaz de fazer o que devia fazer ao mesmo tempo que via apoderar-se de si a “necessidade de deuses e das iniciações”[11]. Por isso – e talvez pelas Escolas de Mistérios também – viu-se Sócrates arrastado para tribunal, acusado de impiedade e de perverter a juventude.
Aqui, mais uma vez, manteve-se firme na sua identidade profunda e não se entregou ao medo e ao instinto de sobrevivência. Antes morrer do que deixar de filosofar, porque, como disse na sua defesa:
“Atenienses, tenho por vós consideração e afecto, mas antes quero obedecer ao deus do que a vós e, enquanto tiver um sopro de vida, enquanto me restar um pouco de energia, não deixarei de filosofar e de vos advertir e aconselhar, a qualquer de vós que eu encontre. Dir-vos-ei, segundo o meu costume: ‘Meu caro amigo, és Ateniense, natural de uma cidade que é a maior e a mais afamada pela sabedoria e pelo poder, e não te envergonhas de só curares de riquezas e dos meios de as aumentares o mais que puderes, de só pensares em glória e honras, sem a mínima preocupação com o que há em ti de racional, com a verdade e com a maneira de tornar a tua alma o melhor possível?’”
Este é um ponto fundamental para entender o filósofo de Atenas – Sócrates estava consagrado à sua missão, que aceitara conscientemente[12]. Mesmo aqui, ou sobretudo aqui, é possível constatar a harmonização dos opostos, ao verificar-se como o uso do raciocínio é límpido e incontornável, ao mesmo tempo que se integram na vivência interna os aspectos nocturnos da existência, como as mensagens divinas que chegam ao quotidiano:
“Mas para mim, como já vos disse, trata-se aqui de cumprir uma ordem do deus, transmitida por meio de oráculos, sonhos, enfim, por todos os meios de que jamais uma vontade divina se serviu para prescrever algo a um homem.”
Convicto com clareza da imortalidade da alma, fiel ao seu daimon e à sua missão, Sócrates aceita a sua condenação à morte sem revolta ou amargura – em momento algum suplica perdão, procura a fuga ou se vitimiza. Pelo contrário, consciente da consequência das acções pelo tempo afora, afirma aos seus juízes que mais vale sofrer uma injustiça do que cometê-la. É assim que encara a morte, que chega no seu tempo devido e sem sobressaltos.
Antes de beber a cicuta, acha uma ideia de bela virtude tomar um banho para evitar às mulheres terem de lavar um cadáver (Fédon, LXIII). A Críton, preocupado de sobremaneira sobre aquilo que está prestes a consumar-se e depois de lhe perguntar como o deveriam sepultar, respondeu:
“Não consigo, meus amigos, convencer Críton de que é Sócrates que conversa convosco neste momento e que põe em ordem cada um dos seus argumentos. Ele está a imaginar que eu sou o que dentro de pouco ele verá morto e pergunta como deverá sepultar-me. Todo o longo discurso que acabei de fazer há pouco para provar que, logo que eu beber o veneno, não ficarei mais junto de vós, mas que me irei para as felicidades dos bem-aventurados, julgo que ele o considera como palavreado destinado a consolar-vos e a consolar-me a mim próprio. […] afiançai-lhe que me ausentarei quando ficar morto e partirei daqui, para que ele aceite as coisas com mais suavidade […].”
Se não tivermos a clareza dos filósofos, que não acreditam mas sabem, pelo menos possa a história do sábio de Atenas ainda hoje suavizar a nossa vivência da morte[13]. As páginas do Críton, do Fédon, da Apologia são como que um sair-se do mundo, um ascender-se em si, um evadir-se do cárcere – pelas alamedas terminais dos hospitais, quiçá fossem dos melhores remédios; quantas jovens viúvas não poderiam renovar a sua alegria nesta cristalina filosofia, quantas mães em lágrimas pelos anos afora não encontrariam consolo e elevação só de ler a calma ancestral das suas passagens, onde Sócrates, perante a morte, tranquiliza os seus discípulos no Fédon, dizendo-lhes que têm pouca razão para duvidarem que ele não tenha o mesmo poder divinatório dos cisnes, que cantam em júbilo no dia da sua morte por saberem que vão voltar para casa, para junto do seu Soberano, apaziguados na paz profunda do dever cumprido e da límpida consciência.
Antes de fechar o seu processo, aos juízes e aos atenienses disse:
“De qualquer modo, só vos peço uma coisa: quando os meus filhos forem homens, Atenienses, castigai-os com os mesmos tormentos que vos dei, se vos parecer que preferem a riqueza, ou o que quer que seja, à prática da virtude. E, se eles se convencerem de que têm valor sem o terem, censurai-os, como eu vos censurei, por não zelarem o essencial, por se atribuírem um mérito que na realidade não possuem. Se assim fizerdes, sereis justos comigo e com os meus filhos.
Mas são horas de nos separarmos, eu, para morrer, e vós, para viver. Qual de nós vai ter a melhor sorte, ninguém sabe, a não ser a divindade.”
Por fim, quando acharmos ter entendido algo de Sócrates, teremos sempre de nos recordar que ainda nos faltará vivê-lo. Ainda hoje, sem ouvi-lo mas podendo imaginá-lo ao longo dos diálogos de Platão, parece chegar a nós a sua profunda força pura que nos enleva e nos exalta, que nos encoraja a viver a ousadia da imortalidade e nos tenta recordar, com amor e exigência, quem realmente somos; para que possamos viver no mundo sabendo que não somos daqui, para que possamos alcançar essa felicidade de se possuir a si próprio e para que, quem sabe, nos recordemos dessa figura que andava pelas ruas de um outro tempo em que nós não o compreendíamos para, a esta distância agora, finalmente nos alegrarmos em lágrimas ao constatarmos por nós próprios aquilo que ele tanto e com tanto amor sempre nos tentou fazer ver.
Voltemos, voltemos a Sócrates uma e outra vez, para lhe fazer mais uma homenagem, uma apologia, um ditirambo, um louvor, uma ode como pudermos; porque se aquilo que nos ensinou é certo e belo, será por fim eterno e tão válido nesse tempo um tanto antigo como hoje.
Antony Capitão
Bibliografia
Bertrand Russel, História da Filosofia Ocidental, Círculo de Leitores
Fernand Schwarz, A Sabedoria de Sócrates, Edições Nova Acrópole
France Culture, As Raízes do Céu, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=C_RUhtIMExE
Karl Jaspers, Os Mestres da Humanidade, Edições 70
Pierre Hadot, Qu’est-ce que la philosophie antique?, Gallimard
Platão, A Apologia de Sócrates; Críton; Fédon; O Banquete; Teeteto
[1] Esta sua natureza aparece claramente expressa pelo próprio em Teeteto (149a) ou por Alcibíades n’O Banquete (221cd): “Porém este homem, tal como aqui o vêem, com a sua inqualificável natureza – ele e as suas conversas – não tem paralelo possível!”
[2] A presença do Filósofo de Atenas é uma constante através da História – como em Giordano Bruno, Pico della Mirandola,; em Kant, Nietzsche, Kierkegaard… Entre nós, em Portugal, com Vasco de Magalhães Vilhena, por exemplo ou, mais recentemente, em autores como Gregory Vlastos, Pierre Hadot, etc.
[3] “[…] não pressentes que há um meio termo entre a sabedoria e a ignorância? […] Formular uma opinião correcta, embora sem saber fundamentá-la, nem é conhecimento (impossível conhecer-se o que não sabemos explicar…) nem ignorância: pois como falar de ignorância quando acertamos com a verdade das coisas?”. O Banquete, 202a.
[4] A narrativa dos casos concretos pode encontrar-se n’A Apologia (32bcd) – em ambos os casos, recusando violar a lei para condenar outros à morte (os generais da Batalha de Arginusas e Leão de Salamina), Sócrates expôs-se aos caprichos do poder vigente, que geralmente dispõe sempre, de forma mais ou menos velada, do poder de vida e de morte sobre os seus súbditos.
[5] Segundo Fernand Schwarz (A Sabedoria de Sócrates), as suas crises foram três: quando percebeu que a virtude não se transmitia e que deveria ser mais humilde, ao ensinar a mais e não a uns poucos eleitos, como fizera com Alcibíades; quando o Oráculo de Delfos indicou ao seu amigo Querefonte que o homem mais sábio de Atenas era Sócrates, algo que o perturbou profundamente; e por fim, aquando do seu processo, quando constata que já não pode fazer mais nada por Atenas.
[6] É muito interessante verificar que mesmo o método socrático não é socrático, a crer por bem o que Sócrates diz da sua conversa com Diotima n’O Banquete (201d): “Há uma doutrina sobre o Amor que escutei em tempos a uma mulher de Mantineia, Diotima […]. Nesse sentido o mais prático, salvo erro, será expor-vos a doutrina da estrangeira nos mesmo termos em que ela ma expôs, através das perguntas que me fazia. A verdade é que as minhas ideias sobre o assunto eram sensivelmente semelhantes às que Ágaton ainda agora professava […]. Ideias que ela me ia refutando com os mesmos argumentos que há pouco utilizei com Ágaton […]”. Para Bertand Russel (82), “Parece que Zenão, discípulo de Parménides, foi o primeiro a praticá-la sistematicamente […]”.
[7] A voz interior que desde a infância o acompanhou, fazendo-se sobretudo presente para evitar a acção e não para levá-la a cabo. Sócrates explica esta figura interna na sua Apologia, 31d.
[8] Na mitologia grega, o Monte Hélicon alberga no seu topo as Musas que inspiram a Arte e a Ciência; lugar de bem-aventurança, o caminho que aí leva é em espiral.
[9] Ver O Banquete, onde se afirma que este comportamento era habitual (174e – 175).
[10] Para uma visão de algumas das mais recentes perspectivas sobre Sócrates em França, aprecie-se o programa de rádio “As Raízes do Céu”, onde se discute a possibilidade de um Sócrates próximo do xamanismo e da palavra mágica. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=C_RUhtIMExE.
[11] Veja-se O Banquete (215c): “A prova é que […] conseguem possuir os espíritos e fazer-lhes sentir, em virtude da sua natureza divina, a necessidade dos deuses e das iniciações”. Assim se referia Alcibíades a Sócrates, ao comparar o poder da sua palavra às divinas melodias da flauta do sátiro Mársias.
[12] Seria impossível ser mais explícito: “Seria, de facto, um procedimento estranho o meu […] se […] abandonasse agora, por medo da morte ou do que quer que seja, o posto que me foi atribuído por um deus, renunciando à missão, conscientemente aceite, de viver filosofando, examinando-me a mim próprio e aos outros.” A Apologia de Sócrates (28e).
[13] É particularmente bela esta observação de Karl Jaspers (44): “O Fédon, juntamente com a Apologia e o Críton, faz parte dos poucos documentos insubstituíveis da humanidade. Os homens que na Antiguidade filosofavam leram-no até séculos tardios e aprenderam com ele a morrer em serena conformidade com o próprio destino, por muito funesto que este fosse”.
Imagem de destaque: Sócrates, Victor Wager. Creative Commons