Preâmbulo

«Se no Musée du Louvre me impressionou o quadro “La jeune martyre” (1855), de Hippolyte De La Roche, no Ashmolean Museum impressionou-me muito mais o “Landscape with fishermen at the mouth of a river” (1937), de Georges Michel. Não só pela técnica aplicada, pois essa é, simplesmente, impressionante!

Sem dúvida que a manipulação pródiga da pintura do artista consegue manipular mesmo uma visão crua de observador. Eu diria que não escolhi a obra, mas que a obra me escolheu a mim. Mal a avistei fiquei presa: ao seu volume e conteúdo, à densidade da sua cor, à profundidade da sua técnica.

Não sei ao certo se fui atraída pelo contraste simples das cores: desde o intenso céu em escala de cinzas, ao disperso gradiente dos tons castanhos da terra. Não sei ao certo se magnetizada pelo realismo voluptuoso das nuvens, se pela realidade mundana expressa através dos pescadores. Não sei, ainda, se fascinada pelo simbolismo daquele céu carregado a luminoso, se pelo ocre que sobressaía discretamente da paisagem.

E o encantamento surgia de dentro para fora, como um impulso ou reflexo, quando seria suposto ser a obra a invadir-me. Parecia que algo de dentro de mim saía para o exterior, como se o quadro estivesse a sugar o que no meu interior existia: memórias, sentimentos, emoções… Tudo se escoava para dentro daquela pintura. Até mesmo a minha alma…. Atingiu-me um profundo fascínio pela obra e, simultaneamente, uma ténue melancolia impressa pelo recalcamento de sensações passadas e experiências (re)vividas.

Tive a leve sensação que poderia passar horas a observá-lo, sem me saturar, como se aquela paisagem estivesse, de facto, à minha frente, e aquele seria o produto da minha visão. E de todas as vezes que o observo, revela-se em mim a atenção por diferentes pormenores e diferentes recordações. Nunca o passado e o presente estiveram tão correlacionados, como uma mescla de lapsos de memória, como uma amálgama de sentimentos…

Puro impressionismo!»

“A ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são.”

Fernando Pessoa

Contemplando Arte. Pixabay

Introdução

Este apontamento inicial foi por mim escrito em Março de 2014, após uma viagem. Confesso que, na altura, não dava relevância à Filosofia. Hoje, no caminho pelo meu próprio desenvolvimento pessoal e espiritual, e com algum percurso na Nova Acrópole, sinto-as com alegria, pois mesmo não ciente, naquele momento, tive a capacidade de captar o que se detinha perante os meus olhos.

O que me fez apreciar, de forma profunda, aquelas obras, se nunca tinha reflectido sobre a própria arte? E o que torna alguém, que não tem consciência ou conhecimentos sobre arte, apto a ter sentimentos e impressões diferentes das suas vulgares experiências, quando com ela se depara? Não parecerá, este, um apelo de alma ou, quem sabe, um resgate de memórias de vidas passadas?

Poderá definir-se arte pela técnica ou perícia? Arte é um conceito ou um (pres)sentimento? Será apenas limitada a objectos e formas de expressão, ou mais expandida àquilo que nos toca e nos sensibiliza?

Que autonomia terão os ditos “leigos na matéria” no que concerne à arte? Mesmo não se estudando ou tendo conhecimentos profundos sobre ela, teremos habilidade ou liberdade para a conseguir ver e apreciar?

Formação é formatação, pois muitas vezes, quanto mais nos especializamos, mais nos limitamos ou reprimimos…. Felizmente que a Filosofia nos devolve alguma liberdade de expressão de pensamento e sentimento pelo que é profundo e eterno. A Filosofia liberta-nos das amarras do mundano e devolve-nos a grandeza do que é ser humano.

A Filosofia mostra-nos que o conhecimento ou sabedoria não se relaciona apenas com o conteúdo teórico e conceptual, mas principalmente com o prático, experiencial e vivencial. E muito é dito e discutido sobre arte. A própria Filosofia, a par da História, encarrega-se de a explicar ou justificar, de a analisar e caracterizar.

À parte disto, a resposta às questões colocadas é o exercício que proponho a mim mesma com esta monografia, uma vez que curioso achei, mesmo inconscientemente, ter tido percepção que uma obra de arte comunica connosco – independentemente do sentido de onde possa fluir essa correspondência, já que, mesmo subliminarmente, é intuída uma reciprocidade.

Por outro lado, uma obra de arte pode levar-nos a comunicar com nós mesmos, pelo diálogo que estabelecemos com o nosso próprio ser, com a nossa alma, com a nossa consciência. Será de todo impossível não surgir um diálogo interno durante o instante que se considere de contemplação à obra. Mesmo inconscientemente, ele surge! A relevância deverá então prender-se com a consciência – a relevância ou sabedoria para reconhecer arte.
Logo, será admissível anuir que aquilo que tem a capacidade de contactar com a nossa alma, possa ser definido como arte. Então, a arte, ou as representações artísticas, talvez não seja tanto aquilo que se vê ou produz, mas mais o que se intuiu através dessa acção – o intangível através do palpável, a metafísica através da matéria – a beleza expressa numa pintura, música ou peça de teatro, o amor através de uma escultura ou poesia, a justiça através de um filme… Talvez esta seja a finalidade da arte – de exprimir as virtudes do mundo arquetípico, que devolvem à humanidade o caminho para casa, a proximidade aos deuses.

Mas exploremos algo mais!

A arte

A arte pode ser entendida como uma habilidade ou técnica, pela capacidade de produzir ou realizar algo com mestria, eficiência ou com excelentes resultados. A arte como algo que pode ser, desta forma, mensurável ou estimável, pelo sucesso dos seus efeitos. Poderíamos, então, falar da arte de bem fazer algo ou da prática de um ofício, desde a arte de construir uma ponte, à arte de viver…

Por outro lado, a arte é também percebida como a manifestação de um ideal, tal como a beleza, por expressão artística e criativa, através das mais variadas actividades do ser humano. Esta monografia assenta sobre esta manifestação da ordem comunicativa e estética da arte, que se realiza através de diferentes formas ou linguagens. Exprime-se e materializa-se, uma obra artística, através da pintura e do desenho, da música e da dança, da escrita, do teatro, do cinema, da escultura e da arquitectura.

A arte pode ser considerada como um meio através do qual o ser humano se exprime, diferenciando-se dos animais, pois se os animais agem por instinto nas suas acções, isto é, sem consciência, logo não poderão gozar da vontade de criar algo com uma intenção. E a intenção de criar arte é o que dá vida à própria arte, com o desígnio de aproximar o mundo humano do mundo dos Deuses, com o propósito da elevação mais transcendente dessa consciência para uma verdadeira consciência superior.

Para Aristóteles, a arte é a ideia da obra, a ideia que existe sem matéria, que tem como finalidade dar corpo à essência secreta das coisas e não de simplesmente copiar a sua aparência. E Platão traduziu-a como uma capacidade criadora do ser humano.

A Academia de Platão em Atenas, Mosaico em Pompeia. Domínio público

Na manifestação da arte, o processo criativo, assume-se como a objectivação de sentimentos e ideias, de significados e percepções. Se considerarmos que a criatividade quebra os limites humanos, que desafia o ser, logo tudo o que possa ser expressado através de ideias, é passível de ser arte. A diferença talvez esteja na referida consciência da sua expressão ou no seu aperfeiçoamento, obedecendo a arquétipos de verdade, justiça, bondade, beleza, amor.

Leonardo da Vinci definiu arte como lei suprema de representação do belo, que diz o indizível, exprime o inexprimível e traduz o intraduzível. E Tolstói observou que a arte deveria ser um órgão moral da vida humana e um dos meios que une os homens! Então, seria admissível assumir que a arte devolve humanidade e unidade.

Sri Ram, na sua obra «O interesse humano», refere que o homem primitivo é pouco desenvolvido e que “pode aclamar algo que seja grosseiro e espalhafatoso como objecto de prazer. Mas, gradualmente, à medida que a evolução prossegue, a nossa percepção é refinada e somos capazes de separar os verdadeiros valores da arte – entre outras coisas – dos que são falsos”.

Logo, a arte para além de originalidade, ou criatividade, deverá respeitar um conjunto de requisitos ou verdadeiros valores. E se esses preceitos forem considerados, será claro distinguir o que é arte do que possa ser uma qualquer vulgarização de expressão de falsos valores.

Ter discernimento para entender a diferença desses verdadeiros valores da arte é uma virtude, que não é mais que uma disposição persistente do nosso espírito que nos impele a exercer o bem e a evitar o mal.

Mesmo que a arte não seja apreciada ou reconhecida, imprime algo bom, pois ela não se rege por gostos ou preferências, já que somos todos diferentes! No entanto, nem isto é suficiente para causar divisões, porque a verdadeira arte não choca, não é controversa e nem causa repugnância. Veja-se aquele artista que, em nome da arte, expôs um cão vadio, faminto, numa galeria, preso a uma corda, morrendo de fome e sede durante a exposição. Jamais a arte pode ser uma representação de aberrações e horrores ou de qualquer outra forma de mal.

Tem de haver consciência e refinamento, que é típico da condição humana. E os clássicos, de qualquer forma de expressão de arte, conduzem a esse refinamento. Note-se um dos muitos conselhos que Jorge Ángel Livraga nos deixou, como forma de elevar as emoções: “À música própria dos selvagens, prefere a clássica ou pelo menos a folclórica dos povos não degenerados. Não te rodeies de quadros ou reproduções pictóricas ‘psicadélicas’, mas sim naturalistas, que não deformem nem inventem outra Natureza que a que Deus nos deu.”.

Tal como Platão e Aristóteles, também Séneca defendia que toda a arte é imitação da Natureza. É o que se define por “mimesis”, ou seja, as obras criadas pelo Homem que imitam perspectivas da Natureza – a arte como imitação – pois de uma forma artística, são como espelhos que reflectem imagens da Natureza.

E esta símile, que remete também para um pensamento de George Bernard Shaw que diz que “os espelhos são usados para ver o rosto; a arte para ver a alma”, catapulta-nos para a ideia inicial, das obras comunicarem com o nosso ser.

O artista e a sua obra

O artista é o agente criativo da arte, uma vez que constitui um produto do ser humano. Tal como o conceito de arte é muito expansivo, também aquele que define um artista é bastante abrangente. Independentemente da definição, será unânime dizer que o artista é aquele que, através da arte, expressa aquilo que sente e leva os outros a senti-lo.
Mas, Fernando Pessoa vai mais longe nesta percepção do fazer os outros sentir, ao dizer que

“a arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação”.

O artista será o indivíduo que, através da sua criação, invoca no observador o mesmo sentimento que expressa a sua ideia ou particularidade. É aquele que traz à forma, ao mundo físico, sob as mais variadas expressões, todo o tipo de arte que conhecemos, como representação do que se intui, do metafísico e do oculto. Tal como refere JAL, “o artista é o pontífice. É uma ponte, uma ligação, uma relação entre o mundo invisível e o mundo visível”.

Para um artista, a sua obra é perfeita, uma vez que ao criá-la tem a capacidade de acender o amor no seu peito e, desta forma, apaixonar-se pela sua própria criação. É o que nos reflecte o Mito de Pigmalião.

Pigmalião e Galateia, Ernest Normand. Domínio público

Este mito é bastante opulento, quer do ponto de vista filosófico, quer do ponto de vista psicológico. O seu significado de idealização do ser amado é algo que facilmente identificamos. Quem não se apaixona pelas suas próprias obras? Quem não se orgulha da própria criação? Quantos desígnios e desejos não acabam personificados, tal como Pigmalião, que de tanto amar e desejar a sua criação consegue dar-lhe vida?

Shakespeare disse que os versos que não se banham com as próprias lágrimas, de amor e emoção, não são lícitos. Esta é uma das chaves para uma verdadeira obra de arte: a inspiração que surge da parte mais profunda e luminosa do seu criador, como uma espécie de corrente divina que jorra de um mundo de perpétua beleza, de um mundo onde vive a sua alma elevada e a sua mente pura.

A criação, acaba por ser também uma projecção de si próprio, dos seus ideais, da sua vontade. Como comparando as características de Mona Lisa com as próprias de Leonardo da Vinci, em que foram encontradas inúmeras semelhanças.

Ele, tal como Pigmalião, estava apaixonado pelo melhor das suas criações, porque nela havia fixado a sua própria alma, e aos seus olhos, ela teria, com certeza, mais vida do que a sua própria vida.

É assim que nascem as grandes obras. É assim que se ergue a arte!

Conclusão

Em jeito de conclusão desta reflexão bastante intimista sobre arte, será possível anuir que não importa a forma de linguagem, desde que a comunicação seja efectiva. É fundamental e importante existirem diferentes formas de linguagens e expressão da arte, para que a mensagem de amor e verdade chegue a um maior número de almas.

A arte pode ser encarada como uma espécie de biblioteca da alma, que a todos permite diferentes fontes de sabedoria. A Arte é esta diversidade de efeitos que permite a cada um o livre arbítrio de sentir e apreciar um belo quadro de Van Gogh, Monet ou Paul Delaroche, ou uma magnificente música de Bethoven, Mozart ou Chopin. Desde um bailado sublime do «Lago dos Cisnes» ao amor dramático de «Romeu e Julieta». Da fascinante arquitectura de Frank Lloyd Wright, ao minimalismo de Mies van der Rohe. Entre tantas outros artistas e obras de arte que poderiam ser referidos.

Há, portanto, um significado implícito no conceito de arte, como sendo algo belo, verdadeiro e harmonioso, que incita a sentimentos nobres e dignificantes, ao júbilo e à pulcritude. Uma forma de manifestação do bem, do bom e do belo, uma forma de expressão da perfeição e do aperfeiçoamento humano.

Talvez a grandeza do ser humano esteja em elevar-se com a beleza e fascinar-se com a arte. Talvez o ser humano tenha concebido a arte como forma de se aproximar dos Deuses.

Jacinta Marta Fernandes

Imagem de destaque: Paisagem com Pescadores na Foz de um Rio, Georges Michel. Creative Commons