Amigo Tristão, quando vires o anel de jaspe verde de novo, nem torre, nem parede, nem forte castelo, me vão impedir de cumprir a vontade do meu amigo. [Disse Isolda]
As espadas fazem parte dos decretos de Deus.
As lendas desta personagem histórica e literária, Tristão, surgem no norte da França e na antiga Britânia, com ligações ao País de Gales. Lendas célticas, que como a de Artur, mais tarde se tornam cavaleirescas, espalhando-se por toda a Europa durante a Idade Média nesta “mitologia” que permitiu dar vida e alma ao Ideal Cavaleiresco.
Lembremo-nos que estes são tempos em que, como disse Quixote, “Cavalaria Andante é Religião”. E o exemplo das damas e cavaleiros é a melhor expressão, o modelo do ser humano, uma cristalização, com os seus direitos, deveres, ideais e valores, da vontade do “Rei dos Reis”. Um modo viril, baseado em ações e não apenas orações, de seguir o caminho de Deus, como na Futuwah islâmica ou nos mistérios de Mitra mil anos antes.
A Ética cavaleiresca, com o seu código de Cortesia, Misericórdia, Hospitalidade, Mística e Generosidade, totalmente atravessado por um grande espírito de aventura, desafio à adversidade e serviço à Justiça, foi o que permitiu o desenvolvimento de ordens religioso-cavaleirescas como os Templários, a Ordem de Santiago, ou da Jarreteira, etc., etc. E criou uma corrente fraternal de boa vontade e de relações humanas, instituições e reinos que significou o despertar do “sonho medieval”. Foi uma luz espiritual que, como uma espada, partiu o coração da “Idade das Trevas” que se tinha apoderado do mundo ocidental com a morte e decomposição do Império Romano.
Mas não só a sua ética e estética, os seus livros (os de Cavalaria e o ciclo Arturiano), e o seu cerimonial (como as Justas de Deus ou os torneios de cavalaria, ou a Iniciação com a imposição de esporas de ouro) eram comuns. Também os seus símbolos, como os que formam a Heráldica, e outros, que parecem renascidos de antigos cultos, de milenários saberes e experiências místicas.
Muitos desses símbolos tornam-se visíveis, embora a sua luz às vezes seja difundida através de um véu, no ciclo arturiano. E muitas vezes reconhecemo-los, quase disfarçados, mas não conseguimos abrir as portas dos seus significados.
Vejamos, por exemplo, a simbologia de alguns dos elementos que aparecem no “mito de Tristão e Isolda”, herói perfeito e impecável (apenas comparável ao Lancelot, o primeiro cavaleiro da Távola Redonda, antes do aparecimento do ciclo do Graal e da sua demanda, com Parsifal e Galahad).
As narrativas deste herói e o seu infeliz amor por Isolda, aparecem nas lendas celtas galesas, transformam-se em “história” com a pluma de Tomás da Bretanha e mais tarde com o seu sucessor, Godofredo de Estrasburgo. A partir daí, as suas aventuras crescem como uma árvore da vida, com todo o tipo de variantes, nos diferentes autores, entre os quais destacamos o próprio Chretien de Troyes (infelizmente perdido o seu livro sobre Tristão), toda a chamada “questão da Bretanha” e já no final da Idade Média por Thomas Mallory na sua Morte de Artur.
Joseph Bédier (1864-1938), escritor e filólogo francês fez uma versão unificada fiel e bela, na qual me fundamentarei neste artigo.
Também não podemos de forma alguma esquecer a enorme riqueza filosófica do Tristão e Isolda de Wagner, os seus símbolos argumentais e até mesmo musicais, por exemplo, o famoso “acorde de Tristão”, que expressa a eterna aspiração, a pergunta feita ao destino e à vida, o amor sempre insatisfeito nos seres finitos, e só resolvido com a consumação final ou com a morte. Um acorde com o qual Wagner queria expressar que o tempo pode ser interrompido, como uma janela para perceber na distância a Eternidade. Richard Strauss, estudando[1] quase como uma equação matemática ou metafísica este acorde que dizem que abriu a porta para o dodecafonismo de Schönberg, disse que a música jamais tinha chegado a tanto. Desde o Prelúdio, gera-se uma tensão não resolvida, que parece que vai culminar, mas não o faz até ao momento da morte. Pois a equação Amor é Morte e Morte é Amor, que tantas vezes comentou Krishnamurti e, em seguida, admirado e filosoficamente Sri Ram, é, de certa forma, o símbolo mais importante desta obra wagneriana e até mesmo da personagem de Tristão.
No escudo deste herói, Tristão de Leonis, embora já muito mais tarde, aparece um leão dourado rampante, com garras ensanguentadas, e sobre um fundo verde. Shakespeare disse que o verde é a cor dos amantes; a da natureza que floresce e ama o Espírito ou a Luz solar que a banha e dá vida; a da harmonia dos opostos, a sua vitória, mas sem que estes deixem de existir. Verde era, de jaspe, o anel de Tristão que ele trocou com Isolda quando queria que ela reconhecesse o seu mensageiro. Verde é a cor do cavalheirismo, o poder do domínio do espírito sobre a matéria, como o cavaleiro domina a sua montada, e a sua alma a sua personalidade. Verde também é a cor da arte, pois significa tornar dócil a matéria (voz, som, corpo, pedra ou tintas, etc.) às formas da beleza, de raiz espiritual. E verde é a cor da Medicina que vence, com a harmonia, ou restaura, as desordens do corpo e a vitalidade.
Outro cavaleiro, apaixonado por excelência, é Amadís de Gaula, que é chamado precisamente de “o cavaleiro da espada verde”.
Em Heráldica, o verde (sinople) representa a esperança, a fé, a amizade, o serviço e o respeito. Como diria Goethe no seu Teoria das Cores, o verde atrai, mas também define um limite, mais além do qual está o mistério, o segredo, o espiritual. É por isso que a cor esotérica de Saturno se diz que é o verde, porque define o que entra ou não no que está além do tempo e do espaço, ou seja, no sagrado.
O verde, “nos brasões[2] dos príncipes é chamado Vénus; Esmeralda, no dos títulos e Sinople nos da nobreza em geral. O seu significado é a esperança, a abundância e a liberdade; quantos carregam este esmalte no seu escudo ficam obrigados a socorrer os agricultores em geral e os órfãos e pobres que se encontrem oprimidos.”
E o amarelo (dourado), também chamado Sol, representa entre outros valores a nobreza, a constância, o poder, a vida longa e até mesmo a eternidade e santidade, a paciência, a força e a perfeição, a generosidade e a clemência, ou seja, virtudes régias. Lembremos que Tristão era filho do rei, e mesmo pela conquista e herança da vontade do Rei Mark, teria sido rei.
Mas o amarelo também significa amor, e até desespero no amor, bem como, portanto, ciúme e doença. Deixa de ser solar e se converte, no pior sentido, no olhar de Saturno, a cor que este planeta melancólico apresenta no céu. Assim, o amarelo solar é a alegria e o espírito régio, de abundância e de vitória deste cavaleiro, e como um amarelo pálido saturnino a sua tristeza. Na verdade, Tristão sempre vence (amarelo solar), mas fica ferido, convalescente, doente (amarelo saturnino), e a sua cor verde é a harmonia destes opostos, e a mesma condição humana que pode vencer nas provas no caminho da vida, mas é muito difícil, quase impossível, que não fique ferido, com feridas das que fecham e das que não numa vida, e assim se vai forjando no atanor da existência (como Saturno, negro por fora, verde por dentro simbolicamente, ou pelo contrário, como vemos a mesma natureza, verde diante da luz, negra nas suas profundezas).
“Pelas Leis da Heráldica,[3] os que levam este metal, o ouro, nos seus escudos são obrigados a fazer o bem aos pobres e defender os seus príncipes, lutando por eles até à última gota de sangue.”
Símbolo de Tristão é também, sem dúvida, o barco a sulcar o mar, balançando com as suas ondas, e especialmente o barco que o leva moribundo, abandonado à correnteza, para ser guiado pelo Destino, ou Deus, para ser curado por Isolda na ilha da Irlanda, da Cornualha. Antes de chegar a ela, o povo ouvia nas praias os cantos de amor e dor de Tristão.
Obviamente, aqui Tristão é identificado com Bragi, do mito viking de Iduna (que seria Isolda) e Bragi. Como H.P.Blavatsky explica no seu Glossário Teosófico:
“Bragi: O deus da Nova Vida, da regeneração da Natureza e reencarnação do homem [daí a cor verde]. Ele é chamado de “Cantor Divino” sem mancha ou desonra, e é representado deslizando no navio dos Anões da Morte durante a morte da Natureza (pralaya), dormindo no convés com a sua harpa de cordas douradas ao seu lado e sonhando com o sonho da vida. Quando o navio cruza o umbral de Nain, o Anão da Morte, Bragi acorda, e pressiona as cordas da sua harpa, entoa uma canção que ressoa em todos os mundos, uma canção que descreve o arroubo da existência e desperta a silenciosa e adormecida Natureza [Isolda, numa chave] do seu longo sonho parecido com a morte.
Iduna: A deusa da juventude imortal. Filha do anão Ialdi. Dela refere-se o Edda que escondeu a “vida” no abismo do oceano, e que a seu devido tempo a restituiu à terra. Era a esposa de Bragi, deus da poesia; que é um mito belíssimo. Como Heimdal, “nascido de nove mães”, Bragi, ao nascer, eleva-se sobre a crista da onda desde o fundo do mar. Casou com Iduna, a deusa imortal, que o acompanha ao Asgard, onde todas as manhãs ela alimenta os deuses com as maçãs da juventude eterna e da saúde.”
A descrição desta cena reunida em prosa em Tristão de Bédier é de grande beleza:
“Como um marinheiro, que no decurso de uma longa viagem lança ao mar o cadáver de um velho companheiro, então Gorvalán com os braços trémulos empurrou para o mar o barco onde estava o seu amado filho [Tristão], e o mar levou-o.
Durante sete dias e sete noites, o arrastou docemente. Às vezes, Tristão tocava a harpa para acalmar a sua angústia. Finalmente, o mar, sem ele o saber, aproximou-o à costa. E eis que naquela noite alguns pescadores tinham deixado o porto para lançar as suas redes e remavam, quando ouviram uma melodia doce, vigorosa e brilhante, que corria rente às ondas. Imóveis, com os remos suspensos sobre as ondas, escutavam; no primeiro alvor da aurora, eles perceberam o barco errante.
– Então – eles disseram -, uma música sobrenatural envolveu o navio de San Brandano quando vogava até às Ilhas Afortunadas sobre o mar branco como leite.
Remaram para chegar ao barco: navegava à deriva; nada parecia viver nele senão o toque da harpa; mas à medida que se aproximavam, a melodia enfraqueceu, extinguiu-se, e quando a alcançaram, as mãos de Tristão, inertes, caíram novamente sobre as cordas trémulas. Recolheram-no e voltaram ao porto para colocá-lo nas mãos da sua compassiva senhora, que saberia como curá-lo.”
E assim ele é descrito, antes e nesta mesma obra, logo após vencer a Morold e regressar à sua terra. Novamente a identificação com o barco:
“Mas quando o barco de repente se destacou na crista de uma onda, mostrou um cavaleiro ereto na proa; empunhava uma espada em cada mão: era Tristão.”
Outro dos símbolos de Tristão, já que numa chave é a alma aprisionada na matéria, é a de alguém, desfigurado pelo veneno a ponto de ser irreconhecível. Por exemplo, quando ele chega para ser curado pela primeira vez por Isolda e não reconhecem nele o matador de Morold. Ou quando ele se torna um louco e no palácio do rei Mark nem Isolda é capaz de reconhecê-lo. Isto facilmente nos leva ao mito de Glauco, na República de Platão:
“Platão refere-se à queda de Glauco ou Glaucon nas águas depois de ter ficado cativado pelo seu reflexo, e como, arrastado para as profundezas do mar, ele foi perdendo a memória da sua origem divina. Coberto por algas, conchas e areias, o deus esqueceu-se quem é, e agora move-se ao longo do fundo do oceano como um monstro abominável e deformado.”[4]
Outro dos seus símbolos é, claro, o seu próprio nome, a sua tristeza. Apesar de ser o melhor dos heróis, o mais corajoso e invencível dos cavaleiros, com aventuras nos quatro horizontes, a tristeza da separação consome-o. Ele próprio cresceu no ventre materno quando Brancaflor estava consumida pela tristeza de ter perdido o seu amado rei, e morreu de tristeza logo a seguir ao parto do seu filho. Nada mais trazê-lo para a luz do dia:
« – Filho – exclamou -, por muito tempo desejei ver-te, e vejo em ti a mais formosa criatura nascida de uma mulher. Com tristeza te dou à luz e triste é a minha primeira carícia, por ti sinto a tristeza de morrer. E porque vieste ao mundo com tristeza, chamar-te-ás de Tristão».
É curioso porque “triste” em latim vem, e com o mesmo significado, de uma palavra quase igual, “tristis”, de etimologia incerta. Em sânscrito drsta significa “visível, aparente, decidido, destinado”, o mundo visível e ainda “malfadado”. A dialética de Wagner no seu Tristão e Isolda, com o Dia e Noite como engano, dor e união e amor, respetivamente, bem como os atributos do herói cantor, nos fazem pensar que o autor do Anel dos Nibelungos conhecia esta palavra ou etimologia sânscrita. De qualquer forma, a ideia está presente.
Também é um símbolo do herói a harpa com a qual ele transforma em música a beleza da sua alma. Mas não é só isso, é capaz de imitar os diferentes sons da natureza e com perfeição os diferentes cantos dos pássaros, e desta maneira pode, às vezes, enganar os seus inimigos ou encontrar-se com Isolda. Tristão é um especialista na linguagem da natureza, porque ele a representa, representa a sua alma humana, e quando quer comunicar com Isolda ele também o faz com a linguagem de diferentes galhos de diferentes árvores cortadas de diferentes maneiras, que se transformam em letras e símbolos que fluem com as águas do canal que entra no palácio de Isolda, bela alegoria! Esta era uma das formas da linguagem dos druidas celtas, o ogâmico.
E, claro, símbolo de Tristão, Isolda, e do seu reconhecimento é o cálice com a bebida da morte, que então se torna o cálice do amor sem limites. Como tão profundamente o plasma Wagner no seu drama, é o êxtase do Amor-Morte, a desesperação do tu e eu, o fim da mente, da memória e do tempo que permitem fundir as almas em consciência pura.
Símbolo de Tristão, e também do grande amor, e da Iniciação, assim como da morte é o “salto para o desconhecido”, a grande aceitação. Ao beber do cálice do que pensa ser um veneno mortal, e ao saltar para o mar desde as alturas de um eremitério, querendo morrer de um modo mais digno que simplesmente ajustiçado pelos verdugos do rei. Curioso este símbolo, de um eremitério, ou seja, do sagrado e incapaz de sair pela porta, só pode fazê-lo com o “grande salto”. É o mesmo “grande salto” que evoca a morte do amor da poetisa Safo, ou os representados nas tumbas etruscas e outras pinturas romanas, como “o salto para o desconhecido”, seja a morte ou a iniciação. Um salto para cair no mistério. De certa forma, todo o compromisso que nos leva à vida real, ao mistério do outro tem algo desse grande salto do amor, e embora seja recomendado descer para o abismo passo a passo, degrau a degrau, e não nos deixarmos cair nele, em algum momento a vida vai exigir-nos esse salto, e certamente a morte o fará. É o grande salto associado à entrega total e definitiva, muito associado ao signo do zodíaco ou arquétipo de Peixes, porque é a dissolução, nada mais há mais além.
Também associado a isto e simbolizando Tristão, achamo-lo disfarçado de peregrino com a sua capa de conchas marinhas, com a qual deve levar Isolda de uma margem a outra, sem ser manchada pelas águas, e que esta possa superar o grande julgamento a que é submetida, diante do rei Artur e os seus cavaleiros.
Geralmente, os textos literários medievais, bem como a obra de Wagner, são lindamente ambíguos para não saber se houve ou não relação sexual entre ambos, Tristão e Isolda. O encontro é definitivo, mas não gera frutos no rio da vida. Não há filhos. Além disso, quando o rei Mark (ou Marés na versão de Bédier) os encontra vivendo na floresta, dormindo, eles estão se abraçando e beijando, mas uma espada os separa, símbolo de amor casto, como em Lancelot e Genebra, nas primeiras versões (quando cristianizada com a Demanda do Graal, já é um amor pecaminoso). Este também é um símbolo, um amor que embora “ilegal” é aprovado por Deus, como vemos no julgamento de Isolda. É por isso que os seus restos mortais repousam sobre diferentes sarcófagos, embora estes juntos, com uma hera num e uma videira noutro crescem para se abraçarem.
De grande beleza e significado como símbolo está a cena em que o rei Marés, que quer evitar o casamento, para entregar o reino a Tristão, diz que se casará, mas com uma dama que é impossível de encontrar. Tristão o conseguirá, é claro, e este símbolo é semelhante ao de Teseu no Labirinto, no qual Teseu a recebe (a Ariadna), como Tristão (a Isolda), para entregá-la mais tarde a Dionísio (aqui Dionísio, na versão grega, não é o rei, mas o deus, o êxtase do amor infinito, como um fogo que muda tudo e transmuta):
«Onde encontrar a filha dum rei tão longe e inacessível a quem possa fingir, mas fingir apenas, que a quero por esposa?
Nesse mesmo instante, pela janela aberta ao mar, duas andorinhas que faziam o seu ninho entraram a brincar; depois, espantadas, desapareceram. Mas, dos seus bicos, tinha escapado um comprido cabelo de mulher, mais fino do que um fio de seda e brilhante como um raio de sol.
Tendo-o apanhado Marés, fez entrar Tristão e os barões e lhes disse:
– Para lhes agradar, senhores, tomarei mulher, sempre que vós quereis buscar a que eu escolhi.
– Certamente, a buscaremos, bom senhor; mas quem é a eleita?
– Escolhi aquela a quem pertenceu este cabelo e saibam que não quero outra.
– E de onde, bom senhor, vem este cabelo de ouro? Quem vos trouxe? E de que país?
– Provém, senhores, da Bela dos cabelos de ouro; duas andorinhas trouxeram-mo: elas sabem de que país.»
Outro dos elementos simbólicos e mágicos deste mito, e nesta versão literária escolhida, é o de um artefacto de encantamento, como um cão cheio de joias, com coleira e sino (simboliza Anúbis?) que é capaz de fazer com que Tristão deixe de sentir a terrível dor, angústia e separação de Isolda. Tristão o oferece-o como prenda a Isolda, mas ela, um dia ao pensar que já não sofre, mas o seu amado sim, lança-a no mar. São Tomás de Aquino, no seu Tratado das Paixões, de grande atualidade, indica o modo como evitar que a tristeza se converta em desesperação e atente contra a própria saúde. Dá cinco medidas: o deleite ou o prazer que alegra, o pranto, a amizade que conforta, o sonho e os banhos e, finalmente, a contemplação da verdade. Pois não há nada mais poderoso e revivificador do que a verdade, nada mais saudável do que o conhecimento que harmoniza a alma.
Refere-se este artefacto mágico ao vínculo com o poder benévolo dos arquétipos, simbolizados pelas estrelas e as joias que permitem o vínculo com as mesmas? Será que o cão mágico é o Anúbis egípcio, a perfeita pureza e amor, mas um amor vertical, pura compaixão que liga o infinitamente grande e o infinitamente pequeno? Difícil sabê-lo. De qualquer forma, a descrição e o uso deste instrumento parecem-nos enigmáticos:
“O duque, para relativizar a sua pena, mandou trazer ao seu camarim privado o seu jogo favorito, que, por sortilégio, nas horas tristes, encantava os seus olhos e o espírito. Sobre uma mesa coberta de nobre e rica púrpura colocaram o seu cão “Petit Crú”. Era um cão encantado; fora trazido ao duque da Ilha de Avalon; uma fada tinha-o enviado como presente de amor. Não há palavras suficientemente hábeis para descrever a sua espécie e a sua beleza. O seu pêlo era colorido com tons tão maravilhosamente dispostos que não se sabia definir a sua cor; o seu focinho parecia mais branco do que a neve, o seu lombo mais verde do que a folha de trevo; um dos seus flancos era vermelho como escarlate; o outro, amarelo como açafrão; a sua barriga, azul como lápis-lazúli; o seu dorso, rosado; mas quando se olhava para ele por muito tempo, todas essas cores dançavam diante dos olhos e alternadamente se transformaram em branco e verde, amarelo, azul, arroxeado, escuro ou claro. Levava no pescoço, suspendido numa cadeia de ouro, um cascavel com um tilintar tão alegre, tão limpo, tão doce, que ao ouvi-lo o coração de Tristão estremeceu, tranquilizou-se e fundiu o seu pesar. Ele já não se lembrava de tantas misérias sofridas pela rainha, pois tal era a maravilhosa virtude da cascavel: o coração, ao ouvi-lo soar, tão doce, tão alegre, tão claro, esquecia toda a tristeza.”
Símbolo também é a lasca da espada de Tristão, que está cravada no crânio de Morold (a morte) e pela qual Isolda o reconhece. Tal como o número Pi com os seus infinitos decimais não pode ser expresso como uma relação de números (a quadratura do círculo é o próprio movimento da vida), esta lasca indica esse desequilíbrio que permite o movimento, a incessante marcha de tudo o que vive, lutando, amando e buscando unidade, de novo estar inteiro.
Símbolos são os quatro inimigos do Amor de Tristão e Isolda, e que são vencidos por ele na terra, na água, no ar e no fogo. Um morre a pauladas e cai no buraco deixado por uma árvore caída (Terra). Outro afogado, golpeado por um remo (Água). Outro com uma flecha (Fogo) quando queria ver Tristão e Isolda na câmara secreta do amor (pelo buraco que ele queria ver entrou uma flecha de Tristão, alerta, que perfurou o seu olho). E outro golpeado com uma espada (Ar) no caminho.
Símbolo é a vida na floresta de Tristão e Isolda e como esta é lançada pelo rei à luxúria dos leprosos e salva por Tristão, símbolo é o sonho de Isolda que profetiza a morte de Tristão com a cabeça ensanguentada de um Javali no seu seio; símbolo também o sonho desta Ísis da Irlanda, em que se vê com as pernas transformadas em fontes de sangue: está crucificada, a sua missão ou destino é apenas transformar-se na vida que ela vive. Símbolo é a esposa casta e desejosa de Tristão, Isolda das Mãos Brancas e a transformação e loucura aparente de Tristão no último encontro com a sua amada.
Os mistérios da Cavalaria, herdeiros das Escolas Iniciáticas deixaram um rasto de símbolos de reconhecimento, de imagens que, embora muitas vezes não saibamos como precisar o seu significado, nos estremecem as almas, que necessita seguir essas pegadas para encontrar o seu sentido, não se perder no labirinto da matéria e da escuridão, e irradiar cada vez mais poderosa cada vez mais luz.
José Carlos Fernández
Escritor e diretor de Nova Acrópole Portugal
[1] Veja palestra do mestre Pedro Halffter “Tristão e Isolda: O Acorde Enigmático”.
[2] Segundo é explicado aqui https://redheraldica.com/articulos/esmaltes-y-colores
[3] Idem https://redheraldica.com/articulos/esmaltes-y-colores
[4] https://biblioteca.acropolis.org/sentido-del-mito-platon/
Imagem de destaque: Tristan and Isolde, Edmund Blair Leighton (1902). Domínio Público