A maioria dos pensadores modernos que recolhem e analisam a obra mítica da epopeia grega, digamos «primitiva», consideram que constitui uma fórmula pré-lógica de conceção dos fenómenos cósmicos e naturais que moveram os gregos. Este traço positivista não abandona a maioria dos historiadores da filosofia. Assim, a interpretação de Tales ou Empédocles é considerada uma transição do mundo mítico para o racional.
Portanto, é surpreendente para estes pensadores que Platão e mesmo Aristóteles voltem ao mito como recurso expressivo, e tentem interpretar esse facto como uma transição gradual de uma «filosofia mítica» até uma «filosofia científica».
Entre os platónicos encontramos a opinião de que Platão, através do seu sentido poético, interpreta os mitos como um meio de quebrar o rigor racional. Atribui-se a sua às ideias religiosas órficas, movimento espiritualista que teve grande influência em alguns dos pré-socráticos, especialmente em Pitágoras.
Geralmente é apresentado em oposição ao Mitos com o Logos, entendendo o primeiro como o conceito pré-lógico antecedente à conceção racional. Contudo, Platão afirma que o conhecimento lógico tende a desaparecer da memória do homem depois de algum tempo mais ou menos extenso, e então permanece fresca a imagem do mito como símbolo do conteúdo filosófico.
Vemos que o significado platónico do mito se aproxima muito de um caráter paradigmático, isto é, como modelo arquetípico de uma realidade que é apenas mimesis, imitação de outra original, eterna e imutável.
O mito é uma porta que separa ou liga o mundo sensível do mundo das Ideias, é uma forma de comunicação com esse mundo, inacessível ainda para o homem em toda a sua magnífica grandeza.
A Ideia pura é transcendente às coisas e imanente à alma, e a sua linguagem é o mito.
«O homem é superior às coisas sobre as quais pensa e inferior àquilo pelo qual pensa.»
O mito abre um caminho em direção ao inacessível.
Jean Brun, no seu livro Platão e a Academia, afirma:
«O mito é o meio pelo qual o intemporal se torna uma narrativa na boca dos homens e o Uno passa a ser localizado nos limites do discurso. Através deste recurso, o invisível torna-se inteligível ao homem e, se não perfeitamente visível, pelo menos percetível. Graças ao mito, o inefável pode ser relatado e o incomunicável pode ser comunicado. O mito é um caminho analógico que tenta provocar em nós a anamnesis capaz de nos levar novamente ao lugar onde se encontra uma origem que esquecemos. O mito é uma ascensão através do Logos».
Por fim, diremos neste ponto, com Jorge Ángel Livraga, que «O mito tem várias propriedades. É um dos sistemas de sucesso utilizados nas escolas iniciáticas, pois sem deixar de ser racional, possui alguns elementos pararracionais com a propriedade de despertar no homem certos aspetos que estão além da sua estrita capacidade de raciocinar. Onde a razão não chega, o mito chega; está mais próximo da intuição do que da razão. O mito fala-nos de uma verdade em linguagem simbólica, e essa linguagem tem vantagens notáveis; é suficientemente rico, amplo e plástico para que dentro desse simbolismo todos possam captar o que conseguem assimilar. Diante de um mito, ninguém fica “em branco”, enquanto que diante de uma explicação racional, sim. É por isso que Platão recorre ao mito quando tem de explicar elementos tão subtis que não cabem na estrita capacidade humana».
Lista dos principais mitos platónicos
Fazemos uso constante de mitos platónicos, e a tarefa de ler e analisar todos ele é uma maratona, então este breviário pode ser de alguma utilidade. De forma alguma consideraremos o tema esgotado e, antes, este trabalho tenta incentivar a leitura do original e beber das mesmas fontes platónicas esta brilhante abordagem do caminho em direção ao invisível.
Podemos estabelecer uma ordem na exposição dos mitos de acordo com o tema que neles é levantado, mesmo quando essa escolha é complexa porque em vários há mais de um significado e podem ser ao mesmo tempo, por exemplo, cósmicos e escatológicos.
Desta forma, a estratificação será, de alguma forma, arbitrária, mas servirá para que haja uma relação relativamente ordenada entre eles. Assim, reconheceremos os seguintes grupos:
- Mitos teogónicos e cosmogónicos.
- Mitos antropológicos.
- Mitos ontológicos e psicológicos.
- Mitos sociopolíticos.
a) Mitos teogónicos e cosmogónicos
- O nascimento de Eros(O simpósioou o banquete). Neste diálogo são propostas uma série de «encomios» ou peças retóricas de carácter elogioso, sobre o tema do amor, que se ordenam sucessivamente como uma transfiguração entre o dionisíaco e o apolíneo, coroados pelo discurso de Sócrates. Aqui expõem-se algumas conceções míticas interessantes dos participantes do banquete que merecem ser mencionadas.
A exposição de Pausânias associa Eros ao serviço que presta à deusa Afrodite, e distingue um Eros Pandemos e um Eros Urânios; um amor apaixonado, irreflexivo e vulgar, e outro de origem divina, que motiva a perfeição do ser amado desinteressadamente. Uma é inspirada na musa Polímnia e a outra em Urânia.
Após a apresentação de Aristófanes, orientada para o antropológico, e de Agatão, em cuja casa acontece o simpósio, que o torna um deus belo e perfeito, Sócrates apresenta, para encerrar, uma conversa que teria tido com Diotima de Mantinea, profetisa e iniciada, onde se conclui que Eros é criado quando a Pobreza (Penia) vem mendigar à porta da mansão dos deuses, de onde Poros (Riqueza, Recurso) saiu embriagado, para descansar no jardim. Então Penia decide ter um filho de Poros e deita-se ao lado dele. Assim se concebe Eros, que é um génio e não um deus, que vive miseravelmente, mas ama a abundância, que não é belo nem definitivamente feio, e que Platão relaciona com o filósofo que ama a sabedoria porque não a possui.
- A construção do universo(o Timeu). O demiurgo construiu o universo seguindo um modelo idêntico, uniforme e eterno. Esse mundo eterno é um Ser vivo e tem alma. O Anima Mundi é o resultado da mistura da substância indivisível e invariável e da substância divisível, da qual se obteve um terceiro composto, procedendo-se à mistura novamente destes três. O mundo, seguindo o modelo original, tem sido um reflexo tão belo e perfeito quanto possível. A alma, de natureza esférica, está colocada no centro de tudo, e se estende além das diversas partes e até além.
O demiurgo cria os quatro tipos de seres vivos. Primeiro, a dos seres celestiais ou deuses, a partir do elemento fogo, de forma arredondada e cuja imagem perfeita assemelha-se aos modelos de deuses de Homero e Hesíodo. Depois vêm os tipos de seres que povoam o ar, a água e, por fim, os que caminham sobre a terra, entre eles o homem.
Platão coloca entre o modelo e a sua imitação um terceiro elemento que ele chama de “recetáculo” ou «ama de leite» e que os comentaristas traduzem como o Espaço. É Aquele ilimitado que permite distinguir uma coisa da outra, contê-las todas e finalmente fundi-las numa só.
O tempo é uma imagem em movimento da eternidade, não é uma realidade suficiente por si só. Os acidentes do vir a ser são variedades do tempo e não afetam a eternidade. O tempo imita a eternidade e gira em círculo de acordo com o número, segundo Platão.
Este mito é um dos mais sombrios e ainda deixa perplexos os filósofos. Quase todos se dedicaram ao seu estudo com resultados mais ou menos infrutíferos. Plutarco, Cícero, Giordano Bruno ou Blavatsky, entre outros, dedicam-lhe várias páginas, sendo esta última o que mais elementos de comparação e estudo fornece na sua Ísis Sem Véu e na sua Doutrina Secreta, o que daria para mais de um artigo.
- Constituição da Terra (o Fédon). Inserido num mito relacionado com o destino das almas, contém referências sobre a estrutura da Terra. Platão disse que a Terra que habitamos é composta por três Terras concêntricas. Uma está acima da nossa e a outra abaixo. Não vemos a superior, explica Platão, pois um observador localizado no fundo do mar não veria o céu se tomasse as águas do oceano como céu, mas esta esfera subtil tem a aparência de um globo com doze porções coloridas nas quais as estrelas se movem, e é o éter. Aqueles que habitam essa esfera não sofrem de dores ou doenças e têm comunicação direta com os deuses. A inferior é o abismo para onde vão as coisas invisíveis, a morada do Hades, para onde vão as almas impuras para expiar os seus erros, como as antípodas ou Talas em oposição aos Lokas da tradição indiana.
Platão concede destinos «geográficos» aos falecidos, enviando os filósofos, os mais justos entre os homens, ao lado dos deuses numa vida desencarnada. Aqueles que foram por vezes justos e por vezes injustos irão para Aqueronte e para o Lago Aquerúsia, e depois de receberem as compensações de acordo com as suas ações, boas ou más, serão destinados novamente ao ciclo das gerações. Aqueles que cometeram injustiças movidos pela raiva irão para o Piriflegetonte, o rio das chamas ardentes, e para o Cocito, purgando os danos causados às suas vítimas, localizado no Lago Aquerúsia. Se forem perdoados, as suas penas terminarão; caso contrário, serão lançados no Tártaro, onde habitam aqueles que cometeram crimes imperdoáveis. Podemos ver aqui uma clara alusão aos «planos» da experiência post-mortem.
- Movimentos do cosmos(O Político). Platão estabelece uma relação entre os movimentos do cosmos e a evolução humana. Em princípio, Deus dá ao mundo um sentido giratório e depois permite que continue de modo tal que chegado a um ponto, o mundo regresse no sentido contrário. Como a evolução das sombras geométricas dos números, esta também se manifesta em dois sentidos, na forma de rotação das lâminas da cruz de Vishnu-Shiva, primeiro como os ponteiros de um relógio, do um ao múltiplo, e vice-versa, do múltiplo para o um. A multiplicação é guiada pelo ódio e a reunificação pela amizade. Na era regressiva ao Uno fala-se de rejuvenescimento, do retorno, é a época de Cronos, em que os deuses convivem com os homens como os pastores com as ovelhas. A outra, em que a vida caminha para a morte, é a era de Zeus, em que os homens devem se defender sozinhos. Contudo, os deuses, com pena do sofrimento humano nesta última época, concederam aos homens a indústria e o fogo. Esta é uma clara alusão ao mito de Prometeu e à descida à matéria, apenas iluminada pelo fogo da consciência concedido por Prometeu.
b) Mitos antropológicos
- O mito dos metais(A República). Nesta breve alusão, para explicar a origem das diferenças existentes na natureza humana, Platão conta-nos que no início os deuses introduziram quatro «metais» na alma humana em proporções que refletem a construção do universo pelo demiurgo. Assim, todos os homens possuem uma proporção de ouro, outra de prata, outra de cobre e outra de ferro. Um destes metais prevalece sobre os outros, distinguindo assim os homens de ouro, os filósofos; homens de prata, os guardiães; homens de cobre e ferro, artesãos e aqueles chamados aos trabalhos agrícolas e pastoris. Isto dá origem, ao mesmo tempo, à necessária estratificação do Estado proposta por Platão.
- O andrógino primitivo(O Simpósioou Banquete). Corresponde à exposição ou elogio de Eros que faz Aristófanes no banquete na casa de Agaton, e onde diz que antigamente a Humanidade era constituída por seres andróginos, masculinos e femininos ao mesmo tempo, dotados de duas cabeças, quatro braços e quatro pernas, uma força enorme e um orgulho desafiador para com os próprios deuses. Como resultado disso, os deuses, com a ajuda específica de Apolo, separam os andróginos, deixando o umbigo como prova desta operação. Então a vida se torna impossível para cada parte, já que não pode viver sem a outra, então Zeus, por piedade, dá a cada uma delas um órgão sexual na frente, permitindo o acasalamento e a satisfação do desejo. Como consequência disso e do relacionamento das partes, surge e se aperfeiçoa o amor entre ambos, que nada mais é do que a busca pela unidade perdida. Parte desta exposição é considerada seriamente por Platão, devido à sua inegável origem mítica e esotérica, e apenas discutirá as conclusões fornecidas por Aristófanes, que evidentemente se desviam para uma conotação social.
- Atlântida(o Crítiase o Timeu). Este mito, de evidente conteúdo histórico, mostra a fundação da Grécia pelos deuses, conforme é referido a Sólon pelos sacerdotes de Sais, no Egito. Contam-lhe que na Antiguidade os gregos eram superiores a qualquer povo, guiados pelos deuses, mas vários cataclismos abalaram a Terra, afundando a outrora gloriosa grande ilha que habitavam, da qual hoje apenas se avistam alguns promontórios. Desta forma, os atenienses perderam a memória do seu passado e comportaram-se como crianças inconscientes da sua primitiva glória. Platão enfatiza o contexto histórico contido no mito, que tem sido parcialmente ignorado devido aos preconceitos positivistas daqueles que pararam para analisá-lo, particularmente na época moderna.
c) Mitos ontológicos e psicológicos
- O mito de Glauco(A República). Refere Platão a queda de Glauco ou Glaucon nas águas depois de ter sido cativado pelo seu reflexo, e como, arrastado para as profundezas do mar, foi perdendo gradualmente a memória da sua origem divina. Coberto por algas, conchas e areia, o deus esqueceu quem é e agora move-se pelo fundo do oceano como um monstro abominável e deformado.
Encontramos neste mito uma clara alusão à encarnação ou queda do homem na matéria, ainda mais se relacionarmos esta queda com a divisão tripartida do mundo que faz Platão.
- A construção da alma(o Timeu). Já foi mencionado como o demiurgo fez a Alma do Mundo, a partir do Mesmo e do Outro, criando uma terceira substância que, misturada com as outras duas, dividida e unificada matematicamente, move-se sozinha em forma circular, girando no seu próprio eixo.
Mais tarde, o demiurgo faz outra mistura e a divide num número igual de almas às estrelas, e ensina-lhes a natureza do Todo. Essas almas são então lançadas nos instrumentos do tempo e unidas a um corpo. Este corpo é movido pela violência dos seus elementos de origem, ou seja, a natureza do fogo, da água, do ar ou da terra, perturbando a alma, que em vez de conhecimento, apenas obtém sensações. Quando a perturbação faz com que as almas percam o ritmo do seu movimento circular original, elas caem na confusão, no desconhecimento dos nomes das coisas e na oposição de definições contrárias à verdadeira natureza do Mesmo e do Outro. Somente quando essas almas tiverem superado com o seu ritmo original as tendências dos seus corpos, retornarão ao conhecimento verdadeiro.
- A queda da alma(Fedro). Platão refere neste diálogo a dificuldade para saber com precisão o que é a alma. Mas afirma que podemos nos aproximar a ela através de uma imagem. Neste mito descreve a alma como uma carruagem alada onde um cocheiro conduz os cavalos. As almas dos deuses possuem cavalos robustos e dóceis; por outro lado, as almas humanas possuem dois cavalos, um bom e obediente e outro rebelde. Os Imortais seguem a procissão de Zeus e contemplam «as realidades que estão fora do céu». Na sua circulação eles não se desviam do seu círculo original (ver Timeu) e podem ver as Ideias em si mesmos.
As humanas se esforçam para seguir as almas dos deuses, mas devem lutar constantemente no conflito com os cavalos, e esbarram uns nos outros, até que, aprisionados num imenso redemoinho, já não lutando, se deixam arrastar, perdendo a possibilidade da contemplação do divino. Então perdem as asas e caem no chão para se alojarem no corpo de um homem.
No mesmo Fedro, Platão para na descrição destes dois cavalos. Branco e de olhos pretos, o dócil, inclinado à prudência e à beleza, não necessita do chicote. O outro é preto e de olhos cinzentos, amigo da discórdia e do excesso. A alma do homem fica então dividida entre a sua natureza divina e a sua natureza mortal e apaixonada.
São três partes que constituem a alma humana, assim como existem três substâncias da mistura original. Na República Platão já refere que duas destas partes são mortais (o concupiscível e o irascível) e apenas uma é imortal (a razão). Até a localização anatómica que Platão dá a essas partes é altamente significativa, pois relaciona a concupiscência ao baixo ventre – o mundo animal –, que é moderada pela temperança; a ira com o coração, mundo humano, cuja virtude é o valor ou coragem; e a razão com a cabeça, cuja virtude é a prudência.
É a reminiscência que faz as almas recordarem o mundo original esquecido e dá movimento aos seus cotos sem penas, diante dos objetos que motivam a sensação, mas que ao mesmo tempo trazem a memória da sua verdadeira imagem. No Ménon é feita referência à mesma tradição mítica, afirmando que a alma é imortal e renasce constantemente em diferentes vidas. Depois de ter contemplado todas as coisas, tanto na Terra como no Hades, a alma preserva vivas as memórias devido à sua natureza homogénea, para que à sua vista de um possa recuperar as restantes. Isto é demonstrado posteriormente no mesmo diálogo, quando Sócrates traz um escravo, portanto sem instrução, de um de seus interlocutores, a quem submete a um problema geométrico que é resolvido por ele em virtude da sua mera memória, motivada por Sócrates através da maiêutica.
- A imortalidade da alma e a metempsicose(o Fédon). É aqui que Platão é invariavelmente associado aos pitagóricos e à religião órfica. Já mencionamos o destino das almas após a morte, associado às características da Terra e as três esferas.
Após a viagem das almas pelas três «Terras», seguem as puras, como já dissemos, na companhia dos deuses. As impuras, impedidas pelo contato com o corpo, vagam até encarnarem conforme os seus desejos. É bastante obscura a relação com as formas animais que estabelece Platão neste mito, dando aos comilões e alcoólatras a encarnação de burros, e aos ladrões e tiranos os corpos de lobos e milhafres; por outro lado, aqueles que se comportaram com retidão social irão para formas animais como as abelhas ou as formigas. Obviamente, não devemos interpretar isso literalmente. Podemos ver nisto chaves de caráter psicológico, assim como astrológicas, para relacionar as formas animais com planos de consciência e momentos da encarnação. Há também relações com o reino elementar no qual caem as «cascas astrais», ou almas «passionais», uma vez que os princípios constituintes se dissolvem e se separam.
A filosofia, como método de educação, separa a alma do corpo que a prende de forma natural, causando que ela se desprenda dos sentidos e, portanto, da sua insistente chamada. A alma assim treinada confia em si mesma e abandona paulatinamente o contato com o corpo.
- O mito dos Infernos(Górgias). Outra referência ao julgamento das almas aparece no mito incluído neste diálogo, que menciona a época de Cronos e o início da de Zeus, onde eram os seres vivos que julgavam os seus semelhantes antes de morrer. A sentença era pronunciada no mesmo dia em que ocorria a morte. No entanto, os julgamentos tornaram-se incorretos nos últimos tempos e as Ilhas Afortunadas foram povoadas por habitantes indignos. Então Zeus interveio, determinando que os homens não soubessem a hora da sua morte, e o fizessem nus para não deslumbrar os juízes com a sua aparência. Finalmente, designou juízes também nus e mortos: Minos, Eaco e Radamanto. As almas assim julgadas são punidas para que melhorem, ou como exemplo a não seguir se foram incorrigíveis. Talvez encontremos aqui a mesma relação que estabelecem os egípcios entre a nudez e a inocência e pureza necessárias para assistir ao julgamento diante dos deuses, já que é a psique e os seus adornos que «vestem» a alma dando-lhe uma aparência enganosa.
- O mito de Er, o Panfílio(A República). No Livro X deste diálogo, Platão elabora sobre a escolha dos géneros de vida ao retornar novamente à Terra, usando mais uma vez o mito. Agora, a personagem escolhida é um soldado, Er, que os deuses permitiram que permanecesse consciente depois de morrer em batalha e voltasse para referir o que viu.
Após a morte, as almas seguem dois caminhos, dependendo da natureza das suas ações. Os justos vão em direção a uma abertura que vai para o céu e os criminosos descem por outra em direção ao fundo da terra. Depois de fazer uma cansativa peregrinação no abismo «expiando dez vezes cada crime durante cem anos por cada expiação», ou descansar pacificamente no céu, as almas regressam pelas aberturas para serem julgadas e escolherem a sua próxima vida. Um hierofante dá às almas a oportunidade de escolha, descartando formas de vida das mais diversas variedades, de animais, de tiranos, de justos, de homens ricos ou pobres, etc. Avisa-os que a decisão depende deles mesmos e que mesmo uma má vida pode ser revertida pela virtude. Apesar destes avisos, a maioria das almas inclina-se para estilos de vida semelhantes aos da sua existência anterior. Depois disso, a virgem Laquesis, filha da Necessidade, os conduz às Parcas; o génio escolhido que servirá de guia coloca nas mãos das almas o fuso de Cloto; em seguida, as conduz até a trama de Átropos, para que confirmem a decisão, e por fim, são levadas à planície do Lete, onde a maioria se atira nas águas do rio impelida por uma sede intensa, produto dos seus esforços, águas que causam o esquecimento, exceto aquelas que prudentemente não beberam.
- O mito do anel de Giges(A República). Neste diálogo também se menciona o mito do anel de Giges, que dava ao seu portador a capacidade de se tornar invisível simplesmente girando a pedra para dentro. O seu dono, motivado pela ganância, distorceu o seu poder original. Mais uma vez Platão insiste nos poderes próprios do homem que, turvados pelos vícios, se voltam contra si mesmos, gratificando os desejos insaciáveis da psique, que transformam o poder numa faca de dois gumes. Este mito também está associado às características políticas e o uso da justiça nas mãos dos detentores do poder, pelo que podemos situá-lo na fronteira com o tema seguinte dos mitos sociopolíticos.
d) Mitos sociopolíticos
- A origem da cultura(Protágoras). Este mito refere-se à criação dos seres mortais pelos deuses, que encarregaram Prometeu e Epimeteu de lhes fornecer diversas qualidades. Epimeteu distribuiu para alguns o dom da força, para outros agilidade, a resistência ao frio; e a outros asas, cascos, etc. Quando chegou a vez do homem, não havia mais presentes para conceder. Prometeu rouba o fogo a Hefesto e a Atenas, o conhecimento das artes, mas apesar disso os homens não podiam viver nas cidades porque lhes faltava ciência política. Então Zeus enviou Hermes para lhes dar a veneração e a justiça.
Talvez valesse a pena mencionar como referência mítica neste ponto a origem das constituições, referidas em As Leis, onde Platão mostra o estado original dos povos após um cataclismo, vivendo nas montanhas, e a sua posterior descida aos vales, do mesmo modo em que a virtude, típica das alturas, se transforma em vício na medida em que a vida proporciona facilidades e o homem perde o ponto de vista original, com clara alusão às quatro épocas presentes nas tradições indianas.
- O mito da caverna(A República) É, sem dúvida, o mais conhecido e comentado dos mitos platónicos pelo seu alcance psicológico, político e por fazer parte da sua extensa exposição sobre a teoria do conhecimento, via que conduz os filósofos a ultrapassar os limites do mundo sensível, rompendo as cadeias da ilusão, e que as enfrenta diretamente com a origem da luz, as Ideias puras, através de cuja contemplação o homem se relaciona definitivamente com os deuses. Este mito constitui um eixo central ao qual chegam os outros como fragmentos de um quebra-cabeça, e os seus detalhes e matizes são tão ricos que são descobertos na medida em que se compreende a sua ascese diante da realidade. Nenhuma das referências que faz Platão é coincidência, nem há nenhum detalhe onde ele para, seja para descrever as sombras, as correntes ou objetos que são carregados na parede e que são projetados ao fundo.
Até certo ponto, os outros mitos estão contidos neste, e os seus significados são extensos e magistrais. A caverna serviu a Platão para antecipar em dois milénios e meio uma realidade que hoje é absolutamente válida e que mais uma vez encontra o homem diante do enigma, esgotada a razão, perdido o rumo da verdade, cortado da sua própria origem toda a intuição pelo racionalismo positivista.
Talvez precisemos que o Mythos venha novamente em nosso auxílio e nos forneça uma ponte inalterada entre a realidade em mudança, cheia de sombras, e o sonho ainda desconhecido das Ideias, emergindo brilhantemente no horizonte do futuro.
Francisco Duque Videla
Publicado na Biblioteca Nova Acrópole em 07-11-2017
Bibliografia:
Werner Jaeger, Paideia.
Julián Marías, História da filosofia.
Jean Brun, Platão e a Academia.
Platão, Obras completas.
HP Blavatsky, Ísis revelada.
Imagem de destaque: Mitologia. Domínio Público