“Duas cidades surgiram de dois amores: do amor a si mesmo, até ao desprezo de Deus, a cidade terrestre, do amor de Deus até ao desprezo de si mesmo, a cidade celestial.”

Santo Agostinho, De Civitate Dei, Lib XI, Cap. 28

Li por acaso esta frase do bispo de Hipona, de admirável poder retórico. Já sabemos que Santo Agostinho, antes de se converter ao cristianismo foi magister retoricum da cidade de Mediolanum, a atual Milão, ou seja, o representante desta cidade para fazer eventuais discursos perante a chegada de autoridades, em festas etc., além de ensinar as novas gerações de oradores. E, no entanto, a aparente beleza de uma máxima não indica que seja verdadeira. Como dizia Confúcio, um sábio sempre fará belos discursos, mas nem todos os que fazem “belos” discursos são sábios, e muitas vezes, nem sequer honestos. O discurso de Nero despedindo-se de Séneca, pouco antes de o matar, foi certamente belo, pois o bicho que morava na Domus Áurea, como uma aranha na sua rede de intrigas e crimes, aprendeu retórica pelo mesmo Séneca.

O livro “A Cidade de Deus” é uma obra tardia de Santo Agostinho, escrita já na sua velhice, entre 412 e 426. O título original é “A cidade de Deus contra os pagãos”, e, dada a sua extensão, 22 volumes, são inumeráveis os temas que trata: o destino e a história, a providência, o bem e o mal, a existência e natureza de Deus, etc.

O saque de Roma pelos visigodos no ano 410 chocou o mundo antigo. As pessoas atribuíam-no a um castigo divino por terem sucumbido às doutrinas alucinantes, sectárias e excludentes dos cristãos, e por deixarem de render culto aos velhos Deuses. Seja isto certo ou não, a verdade é que a nova religião desfez completamente o tecido social e institucional do Império Romano com as suas fantasias do iminente Fim do Mundo e a rejeição dos antigos valores da Concórdia, do Comprometimento, da Fidelidade, do Culto da Pátria, etc., etc. Que sociedade se pode manter de pé crendo que dentro de alguns anos vamos presenciar o Fim dos Tempos? Como trabalhar assim para o futuro? E é evidente que quem mais vai sofrer esta ausência de futuro são os que vêm depois, os filhos e os netos que se vêm perante o vazio, com as instituições públicas jurídicas, educativas, militares, etc. em ruínas e sem nada para substituí-las.

Santo Agostinho escreveu a sua Cidade de Deus para “demonstrar” que o Cristianismo não tinha nenhuma culpa por esta catástrofe.  Pelo contrário, era a solução, pois Roma era a “Cidade Terrestre, nascida do desprezo de Deus” e a nova religião trabalhava para a “Cidade Celeste”, abandonando toda a preocupação mundana.

O mundo, o qual é a cristalização do nosso trabalho nele, foi-se apagando na obscura neblina ácida de uma Idade Média que devorou não só cidades, mas quase a própria condição humana, a tal ponto estava animalizada.

O tema da Cidade Celeste não é novo. A própria Acrópole no alto das montanhas, desposando o azul do céu e os Deuses ou Ideais que neles vivem, representa a imagem dela na Terra. O seu primeiro reflexo, a partir do qual se podia construir, agora sim, uma cidade de verdade, pois as Acrópoles eram as pedras angulares, chave da abóbada ou piramídio que davam a medida às diferentes instituições nela existentes.

Vemos esta Cidade de Deus na Jerusalém do Apocalipse de São João, que Filipe II logo queria reconstruir no seu mosteiro-cidade-palácio de O Escorial.

Também em algumas catedrais góticas vemos representada esta “cidade de ideais” como uma maqueta ou cópia, em pequeno, da mesma sobre a Virgem, Cristo ou Santo a montante do Pórtico, suspendida sobre a sua cabeça, pois foram por eles pensadas ou sonhadas.

E muito antes, nos textos mesopotâmicos ou nos egípcios, é fácil comprovar que quando se referem a cidades como Heliópolis, etc; não o fazem às cidades físicas, mas cidades celestes ou estados de consciência onde moram os Deuses, isto é, vivificados pelos Arquétipos divinos.

Mosteiro O Escorial. Creative Commons

O medonho nesta afirmação de Santo Agostinho é que corta o vínculo entre a Cidade Celeste e a que deve ser a sua sombra, a terrestre, à qual se culpa assim de todos os males e desgraças, o que faz com que a terra e os assuntos humanos fiquem abandonados às potências do caos.

O professor Livraga (1930-1991), no seu artigo “Que é um ideal” disse que este é “um modelo celeste que pede da sua sombra terrestre, uma cada vez maior perfeição para parecer-se a ele o mais possível. É, por isso, uma finalidade e demarca um caminho, uma linha de tensão de consciência entre a sua residência natural e residência superior escolhida, pois a consciência espiritual tende a identificar-se com o Ideal”

É paradoxal e, no entanto, o justo Karma.

Santo Agostinho e o Cristianismo, depois de elogiarem os primeiros mártires por desertarem no meio da batalha – e encorajar outros a fazerem o mesmo – por quererem ser fiéis a Deus e não a Roma, apelam aos soldados cristãos das legiões romanas para se manterem firmes no seu posto, não para serem monges ou santos, mas para cumprirem o seu dever militar, para os proteger a todos, que é o que Deus lhes pede. Para o Inferno com esta dupla medida! Antes de Cristo, e com ele, já haviam renegado os filósofos Pitagóricos estas “duas medidas” que conduz à morte da alma e a dissolver-se esta na matéria. Bendita a bela Simplicidade, tal como a descreve o filósofo Giordano Bruno na sua “Expulsão da Besta Triunfante”: “Ela é simples, mostra um ar confiante e seguro, é uniforme, representa e tem semelhança com a face divina (…) O seu semblante é amável, porque nunca muda, e por isso, como gosta no princípio, sempre agrada, não por defeito próprio, mas de outros, e assim não pode deixar de ser amada”.

Representação da Cidade Celestial acima da cabeça da Virgem, na Fachada do Julgamento na Catedral de Leão. Creative Commons

A própria oposição que Agostinho faz entre as duas Cidades é uma medida dupla, um atentado à própria uniformidade das leis da Natureza, ou seja, aos Decretos de Deus.

Na mentalidade clássica a cidade terrestre quer evocar a celeste, alcançar com todas as suas forças a sua divina “medida”. O que nunca é possível, por causa da resistência que exerce a matéria, e incluímos aqui também a “matéria humana” que se nega a abandonar seus hábitos viciados ou simplesmente inúteis. Mas a Medida, o Ideal está sempre aí, como guia, como referência, como farol na tempestade, e como esperança redentora. Há um norte, e é necessário encontrar os caminhos na terra que nos permitam, por vezes com rumos aparentemente contraditórios, avançar nessa direção. Mas se focamos na Estrela e avançamos renegando a terra que pisam os nossos pés, é evidente que tropeçaremos e cairemos.

Esta lição é também a que nos dá o organismo humano, em que nada é perfeito, mas as células obedecem às leis escritas nos seu ADN. E quando isso não acontece, é porque se convertem, não numa célula saudável, mas numa cancerígena.

Além disso, para os filósofos romanos, gregos, egípcios, etc., o amor a si próprio, ou seja, a busca da beleza, luz e justiça no próprio coração humano era a chave para chegar a sentir e viver o “amor de Deus”. A falta de confiança no melhor de nós mesmos converte-nos em seres abjetos, mutilados, traumatizados, cheios de angústias e medos, mendigos da vida, sem nada para oferecer aos outros. A oposição que fez Santo Agostinho, e o Cristianismo em geral, entre o-si-mesmo e Deus, deixou um rastro de cadáveres morais e hipocrisia. Seus frutos foram, e são ainda, muito amargos, e os que caem nas redes destes sofismas abandonando a sua vontade ao totem de qualquer crença perversa, são “forragem para sectarismos” e fanatismos, sem liberdade interior, sem capacidade de pensar por si mesmos, sem decisão de servir aquilo que consideram nobre, justo e bom…  a única forma de construir uma cidade Terrestre que não seja inimiga, mas antes imagem da Celeste. Pois isto é, não uma fuga para a frente ou para trás, mas o que a Cidade de Ideais reclama da sua sombra, e dos seus “filhos de alma”.

Quão bem o expressaram os sábios egípcios: “Se Rá avança, eu avanço. Se eu avanço, Rá avança.”

Não há oposição, a Luz é sempre a mesma, brote do coração do Universo ou do próprio coração humano.

José Carlos Fernández
Escritor e diretor da Nova Acrópole Portugal

Imagem de destaque: Santo Agostinho, Gerard Seghers (atr). Domínio Público