Fotografia de Pierre Poulain / www.photos-art.org

Este texto de José Carlos Fernández foi inspirado na fotografia acima de Pierre Poulain, fazendo parte de um projeto intitulado FiloFoto.

A vida corre desafiando os contrastes, passa através deles, harmoniza-os, converte-os em motor de dinamismo. Deixam de estar enfrentados, e como as rodas de uma engrenagem, transmitem o impulso que converte os sonhos em factos objetivos.

Nesta fotografia há um muito belo contraste: o do mar, eterno, o de uma cidade, velha, recordando com saudade o seu passado; e o de um jovem exercitando-se no seu skate, alheio à beleza que o rodeia, tão absorvido num risco e num esforço de precisão que requer toda a sua alma. A luz joga e dança em três planos: as azuis pradarias imensas do mar, a branca plataforma de lajotas, geometricamente humana, e a também azul infinidade do céu. Entre elas, trepando, como os Titãs querendo escalar o Olimpo, os avermelhados telhados da zona histórica lisboeta. A ambição e a atividade humana não deixa que nenhuma das infinidades descanse, as horizontais são quebradas uma e outra vez com o espírito aventureiro de Jasão, ou com o cobiçoso renegado de Alberich. Navegam os barcos nas águas, os automóveis ou os viandantes as planícies, os aviões os céus, os satélites o espaço, ferindo a paz que deles nasce, como a pluma que fere a brancura da folha com discursos incoerentes, estéreis e sem sentido. Que sentido tem toda esta atividade, se ninguém lê, porque não o tem, o significado do que com ela escrevemos, semelhantes ao escritor enlouquecido no filme de O Resplendor. Pois a atividade quando é sem alma humana, perde a sua finalidade e sentido, como a atividade das células do organismo que se negam a morrer, enlouquecidas e desenfreadas.

Mas voltemos ao jovem que está absorto no seu desafio — não sabemos qual é, mas é evidente que o há. Os desafios humanizam-nos, porque põem à prova as nossas capacidades, o génio. Agora, trespassado o reino animal em que nem pastamos a erva nem enfrentamos a morte, por necessidade, caçando; necessitamos desafios que façam vibrar o nosso templo, que eduzam as nossas potências internas, que permitam conhecer as nossas forças e os nossos limites. Também, para o ser humano a vida se converte numa sucessão de desafios em que dizemos o que somos. O drama é quando perdemos o espírito de aventura externa e interna, e o que poderiam ser degraus para subir a escada da perfeição, as dificuldades, convertem-se em castigo, em maldição que nos imobiliza. Que desafios aprender a falar, ou aprender a caminhar, ou a escrever, e no entanto assumimo-los naturalmente, porque tínhamos a inocência da criança e sentíamos a necessidade de crescer para entrar no mundo dos adultos. Porque não continuamos a aceitar os desafios que nos permitiriam entrar no reino dos Despertos, dos sábios, dos heróis, dos génios, e ainda dos próprios Deuses?

A questão é que cada idade tem os seus desafios, e quando vemos um trintão ainda com o seu skatesentimos que algo está desencaixado, como quando vemos correr alguém de 60 anos ou mais. Por outro lado, os verdadeiros desafios têm que estar em consonância com o Grande Desafio que chama, como um clarim para a batalha, os seres humanos a trabalhar pelo bem dos outros, a convertermo-nos de novo — como dizia Platão — em filhos do Céu, ou seja, da Razão Celeste, a alcançar a verdadeira liberdade no seio da verdadeira obediência, a libertarmo-nos das limitações que impedem o voo da Alma, a voar cada vez melhor no céu da mente pura.

O verdadeiro desafio é Ser Humano, com maiúsculas, e esta é uma tarefa árdua, que requer todas as forças internas (que os romanos chamaram “virtudes”). Recordemos o filósofo austero Diógenes, com uma lamparina acesa ao meio-dia, procurando um ser humano na própria cidade de Atenas. Quando lhe respondiam dizendo que nela havia milhares deles, todos os cidadãos, ele repreendia-os questionando:

Há algum que seja verdadeiramente justo, verdadeiramente honesto, que seja paciente com os erros dos outros e inflexível com os seus, que seja incapaz, até de pensar, ceder ante a adversidade, com um critério nascido do discernimento e a liberdade que nada nem ninguém possa subjugar ou seduzir, nem pelo prazer nem pelo medo, empenhado audaz e tenazmente no seu trabalho, mas sem um átomo de ambição, sempre amável e sempre firme, em harmonia com a Natureza e estudando os seus tesouros de beleza e conhecimento, generoso e não calculista…?

Que desafio, não chegar a este cume, que desponta no reino do verdadeiramente humano, que não o atravessa!

Que desafio apenas esforçar-se nisso, seriamente e sem descanso!

Que desafio, querer ser como Cristo, amando o seu próximo mais que a si mesmo e sem rejeitar nem odiar nem deixar de compadecer a quem o torturou!

Ou poder chegar a dizer o que Confúcio, o Mestre chinês, por excelência, segundo está escrito no Lun Yun (ou Analetos):

Quando tinha 15 anos, pus o meu coração na aprendizagem; aos 30, estava firmemente estabelecido; aos 40 não tinha mais dúvidas; aos 50 sabia o desígnio do Céu; aos 60 estava disposto a escutá-lo; aos 70 podia seguir o que o meu coração me indicava sem transgredir o que é correto.

Pois como na parábola oriental, o importante não é só acertar no alvo, é fazê-lo sobre uma ponte suspendida no abismo, com tal serenidade e disposição de ânimo.