Conhecemos o termo sophia desde os tempos da Grécia Antiga, e já na altura, o conceito conjugava em si quatro premissas basilares: conhecimento, ação, saber e virtude. Mas mais do que um conceito grego, a “sabedoria” traduz uma forma de conduta, de atuar e de agir de acordo com a ética. Atuar sabiamente era essencial. Possuir esta capacidade era um dom que equivalia a ter conhecimento de todas as coisas e a aplicá-las da melhor maneira, podendo-se assim contemplar a verdade camuflada do Mundo.
Muito típica do Antigo Egipto e da Mesopotâmia, a sua essência jaz em textos literários que expressam uma atitude moral (Vernus, 2001), e cujo principal interesse residia no estabelecimento de uma verdadeira ética comunitária (López, 2017). Estas narrativas “moralmente corretas” acabaram por dar origem a um género literário: a Literatura Sapiencial. Fruto das interações humanas e do convívio entre povos, tão estimulados pelas redes de comércio do Mundo Antigo, esta acabou por se difundir pela Grécia Antiga, pelo Império Romano, e ainda a encontramos em alguns textos bíblicos, judaicos e indianos.
O uso do termo sapiencial é justificado pela função que é atribuída a estas obras: transmitir os padrões de conduta sobre os quais se deve regular a vida do homem em sociedade. A “sabedoria” capacita o homem das ferramentas necessárias para estar em harmonia com o Universo, ao mesmo tempo que leva uma boa vida.
A Literatura Sapiencial aposta na “conservação de um quadro ético e moral tradicional, bem como na estabilidade social e política de uma sociedade em permanente mudança” (Caramelo, 2004: 358). Passando-nos quase a ideia de que devemos enveredar pelo “sacrifício, agora, para ganharmos algo mais tarde” (Peterson, 2019: 218). “Sacrifício” no sentido de nos despojarmos das más intenções, bani-las por completo do ser, para se atingir a integridade pessoal e espiritual.
Quando nos propomos a analisar o passado devemos concebê-lo como um todo, nunca descurando das realidades, ambientes e significados que se foram estabelecendo ao longo das suas diacronias temporais. Compreender as circunstâncias em que determinada situação ocorreu é preponderante no estudo de qualquer tópico da Antiguidade. E os géneros literários não são uma exceção, pois “compreender a literatura sapiencial no Oriente antigo implica conhecer o seu contexto, o seu significado e a sua função” (Caramelo, 2004: 355).
Todo e qualquer tipo de literatura expressa as vivências e problemáticas enfrentadas em determinada época e espaço. É o espelho daqueles que se propõem a eternizar e a poetizar o antigo; ao mesmo tempo que reflete cenários já vividos – tal como Vitor Hugo nos descreve, com um forte cunho social, a vida dos mais pobres e desfavorecidos de Paris no período da Insurreição Democrática, em plena França do século XIX, no livro Les Miserables (1862). Na ótica de Francisco Caramelo (2004: 355), a Literatura “reflete a sociedade nos seus contornos essenciais” não deixando de projetar uma determinada conceção do ideal do todo social.
É impossível não passar para o papel – ou manuscrito, ou papiro – os diálogos sociais da História da Humanidade, estes agarram-se à tinta e não a largam até que toquem no suporte escolhido. Assim, convertem-se num discurso que não será nada mais do que o registo factual de um período, uma fonte histórica. E mais: a literatura sapiencial testemunha um “diálogo permanente com a sociedade, numa sucessão de perguntas e de respostas que parecem, não raras vezes, libertar-se do tempo, mostrando-se válidas para outras épocas” (Caramelo, 2004: 355), deixando transparecer a intemporalidade que a cerca, independentemente do período em que seja lida ou analisada.
As Instruções Sapienciais do Antigo Egipto
As “instruções” que nos deixaram os escribas do Antigo Egipto são textos filosófico-morais, obras pragmáticas ligadas ao comportamento do indivíduo em sociedade. Transmitidas pelo mestre ao discípulo, ou pelo pai ao filho, são uma herança de conselhos éticos, passados de geração em geração, que ilustram um modo de vida que visa o bem-estar do outro, e do próprio. Ao mesmo tempo, vão aconselhando cautela perante as adversidades da vida, que eventualmente poderão trazer algum tipo de infortúnio.
É durante o período do Império Médio que a literatura sapiencial vai dando os primeiros passos e ganhando um maior destaque. É possível que este género literário se tenha desenvolvido ainda mais em alturas conflituosas, em momentos em que a desordem reinava. Só em situações caóticas – como sucedera, por exemplo, durante os Períodos Intermédios e as invasões estrangeiras da Época Baixa – é que os valores e as atitudes se invertem. Quando tudo isto termina, é preciso convencer novamente a população a regressar aos carris e a restaurar a ordem cósmica. De acordo com López (2017: 91) estes ensinamentos denotam uma forte evolução “devido à crise social de perda de valores, em finais do Império Novo”.
As Lamentações de Ipuwer parecem salientar o caos e a desordem que reinara numa época conturbada da história egípcia. Caramelo (2004: 357) atribui-lhe alguma veracidade histórica e defende que o texto expressa o caos vivido durante o I Período Intermediário – período que antecede o Império Médio –, ao que o autor sustenta com as seguintes passagens do texto:
Cada cidade afirma “Expulsemos os nossos governantes. (…)
O cidadão [diz] “Oh! Que hei-de eu fazer!”. (…)
As cidades são pilhadas, o Alto Egipto tornou-se numa terra abandonada». (…)
Eis que os cidadãos trabalham nas pedras de amolar. (…)
Os cidadãos vão e vêm desolados.
Como refere Rogério Sousa (2008: 347): “A principal preocupação da literatura sapiencial egípcia consistia em definir as condições que, na experiência humana, contribuíam para a manutenção da ordem cósmica, a maet.”. O comportamento do indivíduo tinha um papel fulcral no equilíbrio e na harmonia do Cosmos egípcio. Esperava-se um comportamento civilizado de maneira a promover a Maat na sociedade (Ryan, 2016). A Maat atuava como uma consciência que guiava os mortais, instruindo-os para o bem – “para obter a paz plena e permanecer em perfeita união com o Divino, o egípcio necessitava de viver em equilíbrio e consciência com a Maat” (Barros, 2020: 79).
Tal equilíbrio apenas é capaz de ser mantido se nos guiarmos “contra o caos e a favor da ordem” (Barros, 2020: 78), algo muito defendido pelas doutrinas egípcias para uma vida dentro dos ditames da perfeição, mas sempre com um “coração ouvinte”, pois este “assinalava um estado de consciência atenta e altruísta que ligava o homem à ordem cósmica” (Sousa, 2008: 348) – o coração era o embrião que levava o indivíduo a atuar segundo as leis da Maat, como veremos mais à frente. Sousa (2008: 347) refere que:
Balançando permanentemente entre a maet e a isfet, o caos, o homem podia, graças ao seu livre-arbítrio, ter um papel activo na construção de uma sociedade justa e harmoniosa, ou, pelo contrário, contribuir para a corromper, espalhando a mentira, a intriga e a desordem.
O conceito de caos sempre foi muito temido pelos povos antigos, sendo na maior parte das vezes visto como “um demónio, uma entidade capaz de assustar, o destruidor da harmonia terrena” (Barros, 2020: 78). A crença egípcia de que a sociedade e o universo se encontravam constantemente ameaçados pelo caos e desintegração (Andrés, 2017 apud Barros, 2020: 82) é um bom exemplo disso.
Contudo, o que era este tão temido caos? Jordan Peterson (2019: 64) dá vários pareceres acerca do caos: “o caos é o reino subterrâneo dos dwarves, usurpado por Smaug, a serpente do tesouro” (para os antigos egípcios, o caos – isfet – era personificado na malévola serpente Apep), “é o fundo do profundo oceano, para o qual o Pinóquio viaja a fim de resgatar o seu pai do Monstro”, “é a estabilidade a colapsar debaixo dos nossos pés”.
Se o caos é uma esfera escura e incerta, a ordem, por sua vez, é o minuto em que a tempestade acalma e o sol abre, o momento em que o Dilúvio acaba e a pomba que Noé enviou à procura de terra lhe traz um ramo de oliveira. Peterson (2019: 62) define a ordem como o “território explorado”, o “lugar onde o comportamento do mundo encaixa nas nossas expectativas e desejos; o lugar onde todas as coisas acontecem como queríamos” (2019: 63).
De acordo com Barros (2020: 79) o homem já nascera com uma predisposição para a ordem e para a organização, daí a sua grande necessidade em criar padrões de comportamento capazes de guiar uma sociedade e assim “fruto desta necessidade, as comunidades começaram a estabelecer padrões de comportamento, guiando-se por uma instrução geral e universal visível, mas também invisível, regida em consonância com o Cosmos, mantendo o equilíbrio universal”.
Encontramos uma imensidão de obras que procuravam educar as gentes egípcias para agirem em conformidade com “a moral e os bons costumes”. São exemplo disso textos, As palavras de Sasebek, As Instruções/Máximas de Ptah-hotep, O diálogo de um homem com o seu ba, As Lamentações de Ipwer, a Profecia de Neferty e o Conto do Oásis, etc., que se fixam na defesa e salvaguarda de uma postura eticamente correta, e que reconhecem a sua importância para o pleno funcionamento do Estado egípcio. Desde 3000 a.C. até à chegada de Alexandre Magno foram produzidas cerca de dezassete obras deste tipo.
Estas obras destinavam-se a uma elite muito específica – bem esclarecida e até letrada –, provavelmente constituída por altos funcionários e escribas. Porém, não eram exclusivamente direcionadas a estes, sendo que a sua divulgação pela restante população era imperativa para “manter tudo em ordem”. Francisco Caramelo (2004: 357) defende que as “instruções” são um mero resultado da vontade das elites em manter a estabilidade nas relações sociais:
Provérbios e instruções resultam da reflexão de círculos próximos do Poder, traduzindo a ponderação dos problemas sociais e políticos fundamentais, mas, obviamente, na óptica da elite que os pensou e produziu. As suas preocupações assentam essencialmente na estabilidade das relações sociais, na conservação de um comportamento moral adequado e na obediência às instituições. Esta estabilidade era fundamental (…). Era essencial preservar os valores morais tradicionais.
No meio de toda esta “ética «burocrática»” (Sousa, 2008: 348), os egípcios utilizaram o termo sb3yt (sebayt), ‘instrução’/‘ensinamento’, para designar estes ensinamentos. Porém, o mesmo também podia referir a uma coletânea de textos que um mestre dava a copiar a um aprendiz ou uma lista de conceitos que nomeavam as realidades do universo egípcio.
De uma maneira muito inteligente o povo do Nilo aplicou o termo sb3yt a todos os textos que “em virtude dos saberes que compreendiam, estavam destinados a perdurar” (Fernández, 2014: 25), de modo a não se perder no tempo uma sabedoria que fora vital para o Mundo dos Faraós se manter forte por tantos milénios.
Cláudia Barros
Bibliografia
Andrés, A. L. (2017). Maat. Orden cósmico y justicia en el Antiguo Egipto. Barcelona: Universitat Oberta de Catalunya.
Barros, C. (2019). Medicina egipcia: ¿La piedra angular de la Medicina actual? Egiptología 2.0, 50-56. Obtido de https://www.academia.edu/39783003/Egiptolog%C3%ADa_2_0_no_16_Medicina_egipcia_La_piedra_angular_de_la_Medicina_actual
Barros, C. (2020). ¿Quién ha robado el lino del almacén? Egiptología 2.0(21), 78-89.
Canhão, T. F. (2010). A literatura egípcia do Império Médio: espelho de uma civilização. Tese de Doutoramento, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Lisboa. Obtido de http://hdl.handle.net/10451/2461
Caramelo, F. (2004). A função social e política da literatura sapiencial no Próximo Oriente antigo. Em F. Ribeiro da Silva, M. Cruz, J. Ribeiro, & H. Osswald, Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos (pp. 355-360). Porto: Universidade do Porto. Faculdade de Letras.
Fernández, M. E. (2014). Textos sapienciales en Egipto y la Biblia : Amenemopé y la “colección de los sabios”. Reseña bíblica(80), 25-34. doi:10.13140/RG.2.1.2269.1287
López, M. M. (2017). Sabiduría ancestral egipcia e israelita. Desafíos éticos para el buen vivir urbano. Em M. M. López (Ed.), Biblia y Ciudad: Pedagogía del buen vivir con contexto urbano. Bogotá: Universidad Santo Tomás.
Peterson, J. B. (2019). 12 Regras Para a Vida: Um Antídoto para o Caos (6ª ed.). (H. Gonçalves, Trad.) Alfragide: Lua de Papel.
Ryan, D. P. (2016). O Antigo Egipto por cinco deben ao dia. Lisboa: Bizâncio.
Sevcenko, N. (2003). Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural (2ª ed.). São Paulo: Brasiliense.
Silva, A. d. (2019). The Roles of God in the Ancient Egyptian Instruction Texts of the Middle and New Kingdoms. Tese de Doutoramento, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Lisboa. Obtido de http://hdl.handle.net/10451/37915
Sousa, R. (2008). O controlo da consciência e o poder: política e religião na afirmação do poder faraónico. Em V. Oliveira Jorge, & J. Macedo (Edits.), Crenças, Religiões e Poderes. Dos Indivíduos às Sociabilidades (pp. 347-356). Porto: Edições Afrontamento.
Vernus, P. (2001). Saguesse de l’Egypte pharaonique. Paris: Imprimerie Nationale.
Imagem de destaque: Figura do Deus Thoth esculpida nas costas do trono da estátua sentada de Ramsés II. Wikimedia Commons