Mas há outra coisa: não somos apenas cientistas, somos também seres humanos. Não podemos esquecer a nossa dependência dos nossos semelhantes. Não me refiro apenas à nossa dependência material, sem a qual nenhuma ciência seria possível e sem a qual não poderíamos trabalhar. Refiro-me também à nossa profunda dependência moral, no sentido em que o valor da ciência deve residir no mundo dos seres humanos, no sentido em que todas as nossas raízes estão aí. Estes são os laços mais fortes do mundo, mais fortes do que aqueles que nos unem uns aos outros, estes são os laços mais profundos, aqueles que nos unem aos nossos semelhantes.

O que se supõe que devemos pensar de uma civilização, que sempre considerou a ética como uma parte essencial da vida humana, mas que não foi capaz de falar sobre a possibilidade de matar quase todo o mundo [com uma guerra nuclear], exceto em termos cautelosos e de teoria dos jogos?

Conferência em Rheinfelden, do livro Prometeu Americano

Este é um mundo em que cada um de nós, conhecendo as nossas limitações, conhecendo os males da superficialidade, teremos de nos agarrar ao que temos perto de nós, ao que conhecemos, ao que podemos fazer, aos amigos, à tradição e ao amor, porque de outra forma, dissolver-nos-emos na confusão universal e nada saberemos e nada amaremos.

Conferência na Universidade de Columbia em 1954

Robert Oppenheimer (1904-1967) é com justiça considerado o pai da bomba atómica. Se por vezes, encontramos personagens que bem poderíamos chamar “encarnações históricas”, este é um deles, arrastando na sua alma a cruz de todos os paradoxos que lhe permitiram abrir a porta à era atómica, da qual, evidentemente, se sairmos violentamente, sairemos muito mal: o caminho só vai para a frente ou um quase “começar de novo”, ou um esquecimento e abandono e continuar de outra maneira.

De família abastada, culta e de ascendência judaica, nasceu em Nova Iorque e desenvolveu uma fina sensibilidade moral ao ser educado numa espécie de escola pública e comunidade filosófica chamada Sociedade para a Cultura Ética, cujo lema era que “o homem deve assumir a responsabilidade de dirigir a sua vida e o seu destino”, palavras proféticas no seu caso.

Ele próprio recordaria que “fui uma criança empalagosa e repulsiva de tanta bondade. Tive uma infância que não me preparou para o facto de o mundo estar cheio de crueldade e de amargura.

Prodigioso nos seus estudos, em criança lia Platão e Homero em grego, e Júlio César, Virgílio e Horácio em latim. Aos nove anos, disse à sua prima: “pergunta-me uma coisa em latim e eu respondo-te em grego”. Tímido, ensimesmado, sensível, mas com uma determinação estoica e uma vontade de aço. Aprendeu a velejar em criança e, aos 16 anos, fazia-o no meio de tempestades “com absoluta confiança no seu domínio do vento e do mar”. Os seus outros grandes passatempos, dos sete aos doze anos, era colecionar minerais, ler e escrever poesia e construir com blocos. Aos doze anos, correspondia-se com geólogos que, sem saberem a sua idade, o admitiram como membro do Clube Mineralógico de Nova Iorque, e convidaram-no a fazer uma palestra. Quando se apresentou, o público atónito desatou em risadas; o que não o impediu de subir a um caixa e ler a sua conferência, que foi recebida com um grande aplauso geral.

Outra vocação que descobriu no Novo México, onde mais tarde viria a estabelecer o centro de Los Alamos para o Projeto Manhattan, quando era adolescente, foi montar a cavalo em excursões de cinco e seis dias pelas montanhas e desertos, dormindo ao relento, cavalgando mais horas do que qualquer um poderia suportar, e enfrentando todos os tipos de perigos, impávido perante eles. O estudo e a contemplação da natureza selvagem atraíam-no, e ele era capaz de enfrentar as condições mais espartanas.

Em 1922, começou a estudar química na Universidade de Harvard, que compaginava com Tchekhov e identificava-se a si mesmo com o Príncipe Hamlet. Embora a sua escolha de química não tenha sido imediata, já tinha feito anteriormente cursos desconexos de filosofia, inglês, literatura francesa, história e introdução ao cálculo. Queria também estudar arquitetura, ou clássicas, e até converter-se em poeta ou em pintor; a sua concentração e vontade eram formidáveis, lia de uma assentada quase três mil páginas da História do Declínio e Queda do Império Romano, de Gibbon, ou inspirado, escrevia versos em francês ou inglês. Logo, no espaço de um ano, deu-se conta de que gostava mais de física do que de química e, para ser admitido nos seus cursos, elaborou uma lista de 15 livros clássicos de física que tinha lido. A consagração deste caminho veio quando conheceu Niels Bohr, já Prémio Nobel pela sua investigação sobre a estrutura dos átomos e as radiações que deles emanam, e deu duas palestras em Harvard, e o jovem Oppenheimer ficou impressionado. No mesmo ano, inscreveu-se, com apenas um outro estudante, num curso com Alfred North Whitehead e, juntos, analisaram os três volumes de Principia mathematica de Bertrand Russell. Lia, lia e lia, e também sempre foi apaixonado pela psicologia. Em 1923, escreveu uma carta satírica em que falava de si próprio na terceira pessoa: Cresceu e tornou-se um homem e tanto, não tem ideia de como Harvard o transformou. Receio que estudar tanto não tenha sido bom para o seu espírito. Disse umas coisas tremendas. Na outra noite, por exemplo, estava a discutir com ele e perguntei-lhe: “Mas tu acreditas em Deus, não? E ele respondeu-me: “Acredito na segunda lei da termodinâmica, no princípio de Hamilton, em Bertrand Russell, e não vais acreditar, em Siegfried Freud.

Formou-se em química e começou a trabalhar nos laboratórios Cavendish, sendo o seu mentor, J. J. Thomson, já com 69 anos, Prémio Nobel em 1906 por ter detetado o eletrão.

Com depressões nervosas, começou a apresentar sintomas de desequilíbrio. Data desta época, a história da maçã com que quase envenenou o seu tutor Patrick Blackett, que também foi Prémio Nobel da Física em 1948, e tentou afogar o seu amigo Fergusson, por ciúmes. Assemelha-se a uma das personagens de Dostoiévski, que tanto lia e admirava.

Em março de 1926, passou férias com amigos na Córsega e sofreu uma crise emocional na ilha. No entanto, algo lhe sucedeu, e foi sempre um mistério, porque despertou a sua alma e superou os estados anímicos incertos. Um biógrafo perguntou-lhe e respondeu ambiguamente que foi o amor, mas não uma aventura com uma mulher. Na sua obra Prometeu Americano, de Kai Bird e Martin J. Sherwin, que obteve o Prémio Pulitzer em 2006, um livro que estou a seguir de perto nestas notas, os seus biógrafos dizem que foi uma epifania devida à leitura de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, que como dizem, “falou abertamente à alma atormentada de Oppenheimer” e deixou nele “uma impressão profunda e permanente”. Um psiquiatra não conseguiu salvá-lo das suas torturas mentais e abatimentos, mas este livro sim. Abandonou a física experimental e de laboratório, para a qual não servia, e dedicou-se inteiramente à física teórica. Ao ler um artigo do físico alemão Werner Heisenberg, que interpretava o movimento dos eletrões com matrizes matemáticas, e o de outro austríaco, Erwin Shrödinger, que o fazia com a sua famosa equação de onda, deu-se conta de que era esse o caminho da sua vida, trabalhar na nascente física quântica. Conhece Max Born, que estabeleceu a interpretação estatística da função de onda (que tantas dores de cabeça daria a Einstein) e pela qual ganhou o Prémio Nobel da Física em 1954, e torna-se seu discípulo, mudando-se para a Universidade de Göttingen, então o centro da física teórica. A fama já o precedia, com dois artigos, um sobre níveis de energia molecular, Sobre a teoria quântica de bandas de vibração e de rotação e outro Sobre a teoria quântica do problema de dois corpos. Já em Göttingen escreveu Sobre a teoria quântica das moléculas, ou como o próprio físico disse “porquê as moléculas são moléculas”, que foi fundamental para a compreensão do mundo e da física de altas energias. A sua tese de doutoramento foi sobre o efeito fotoelétrico no hidrogénio e nos raios X e, em 1927, escreveu o primeiro artigo que descreve o efeito de túnel da mecânica quântica, segundo o qual as partículas sem energia, para atravessar um obstáculo, podem fazê-lo como se estivessem a atravessar um túnel. Esta teoria importantíssima foi também a que permitiu construir um microscópio, que permite até ver os átomos, o chamado “microscópio de efeito de túnel”. Terminado o doutoramento, regressou aos Estados Unidos. Acrescentou uma nova língua ao seu ativo, o italiano. Quando se deu conta de que os seus amigos estavam a ler Dante no original, desapareceu da vida pública durante um mês e leu a Divina Comédia em voz alta.

Max Born (1882-1970), Prémio Nobel da Física em 1954. Domínio Público

Depois de um semestre em Harvard, aceitou um lugar de professor no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), onde além de ensinar, publicou seis novos artigos (um deles sobre a teoria quântica da captura de eletrões), e depois, alternando com o anterior de seis em seis meses, na Universidade de Berkeley, também na Califórnia. Escolheu esta última universidade precisamente porque a física teórica era um deserto, e seria bom começar algo do princípio. E assim fez, criando o centro mais importante da América para a divulgação da nova Teoria Quântica, e reunindo cada vez mais valores, um trabalho imprescindível para a sua futura missão em Los Alamos.

Mas antes de iniciar as suas aulas, desfrutou de uma nova bolsa para melhorar a sua formação matemática, estudando na Universidade de Leiden (Países Baixos) com o físico Paul Ehrenfest. Em pouco mais de um mês no país, surpreendeu os amigos ao dar uma aula em neerlandês. E depois com Wolfram Pauli, famoso pelo seu princípio de exclusão, segundo o qual só podem existir dois eletrões em cada orbital de um átomo ao mesmo tempo. Publicou neste intervalo, um trabalho chamado Notas sobre a interação do campo e da matéria. Pauli diria de Oppenheimer que “as suas ideias são sempre interessantes, mas os seus cálculos estão sempre errados”, porque queria seguir a estela de uma intuição, sem esperar, e admirava também a sua capacidade de distinguir a essência dos problemas, mesmo que prestasse pouca atenção aos detalhes. Também se tornou amigo de Isaac Rabi, seis anos mais velho do que ele, e que viria a receber o Prémio Nobel da Física, pelas suas investigações sobre a ressonância magnética e o seu método, que permite estudar as propriedades magnéticas e a estrutura interna das moléculas, dos átomos e dos núcleos, estudos cujos frutos foram o relógio atómico, o maser, o laser; durante a guerra, trabalharia no MIT, desenvolvendo e aperfeiçoando o radar, e também no Projeto Manhattan em Los Alamos.

No livro Prometeu Americano resume muito bem esta etapa da vida de Oppenheimer, e torna-se evidente, junto com as suas futuras contribuições na física teórica, que se não lhe deram o Prémio Nobel, foi pela sua participação no projeto Manhattan. O que tem uma certa lógica. Se os prémios que criou Alfred Nobel buscavam lavar a sua consciência, por ter inventado a dinamite, com a morte e destruição que deixou atrás de si, parecia escusado que o criador da bomba atómica aspirasse a um.

Lemos no Prometeu Americano:

Quando Robert deixou Zurique, em junho de 1929, para regressar aos Estados Unidos, tinha-se consolidado uma reputação internacional pelo seu trabalho em física teórica. Entre 1926 e 1929 publicou dezasseis artigos, um número extraordinário para um cientista (de entre 22 e 25 anos). Enquanto, entre 1925 e 1926 era demasiado jovem para participar no primeiro florescimento da física quântica, sob a supervisão de Wolfgang Pauli, juntou-se claramente à segunda vaga. Foi o primeiro físico a dominar a natureza das funções de onda do espetro contínuo. A sua contribuição mais importante, segundo a opinião do físico Robert Serber, foi a teoria da emissão por efeito de campo, uma aproximação que lhe permitiu estudar a emissão de eletrões nos metais, induzida por um campo muito intenso. Nesses primeiros anos, conseguiu progressos no cálculo do coeficiente de absorção dos raios X e na dispersão elástica e inelástica dos eletrões.

Nesses anos de juventude, embora escrevesse poesia, um dos únicos poemas que parece ter publicado foi na revista de Harvard, Hound and Horn, em 1928. É difícil saber se descreve uma viagem no deserto e nas montanhas do Novo México ou uma alegoria da sua própria morte.

CROSSING[1]

It was evening when we came to the river
With a low moon over the desert
that we had lost in the mountains, forgotten,
what with the cold and the sweating
and the ranges barring the sky.
And when we found it again,
In the dry hills down by the river,
half withered, we had
the hot winds against us.

There were two palms by the landing;
The yuccas were flowering; there was
a light on the far shore, and tamarisks.
We waited a long time, in silence.
Then we heard the oars creaking
and afterwards, I remember,
the boatman called us.
We did not look back at the mountains.

Mais tarde a revista The Christian Century perguntou a Oppenheimer, em 1963, que livros tinham moldado a sua vocação e a sua filosofia de vida, ao que respondeu:

  1. As Flores do Mal (Las flores del mal), de Charles Baudelaire
  2. A terra baldia, de T.S. Eliot
  3. A Divina Comédia, de Dante Alighieri
  4. Bhagavad Gita
  5. Satakatraya (Os Três Séculos), de Bhartrihari
  6. Hamlet, de William Shakespeare
  7. A Educação Sentimental, de Gustave Flaubert
  8. As obras completas de Bernhard Riemann, de Bernhard Riemann
  9. Teeteto, de Platão
  10. Cadernos do cientista Michael Faraday (alternativamente chamados Diário de Faraday, sendo as diversas notas filosóficas da investigação experimental feitas por Michael Faraday)

Em Berkeley, o seu conhecimento tão profundo do tema e a sua forma elétrica de ensinar converteram-no “em uma espécie de flautista de Hamelin da física teórica”. E em breve espalhou-se a notícia, que quem quisesse aprender de verdade mecânica quântica devia fazê-lo com ele, nesta Universidade. Mais tarde diria: Não me pus a criar Escola, não me pus a buscar alunos. Na realidade comecei como divulgador da teoria que amava e sobre a que segui aprendendo; não se compreendia bem, mas era muito rica. Ali fez amizade com Ernest Lawrence, um grande físico experimental, jovem como ele, que criou a máquina que permitiria penetrar nas interioridades do átomo, o ciclotrão, o primeiro acelerador de partículas, pelo que ganharia o Nobel, em 1939.

Intervém numa multitude de artigos dos seus doutorados, sem se atribuir o mérito, extrai o melhor de cada um, como depois faria em Los Alamos.

No Dia dos Namorados, ou seja, o 14 de fevereiro de 1930, termina um artigo, chamado “Sobre a teoria de eletrões e protões”, em que analisando a equação do eletrão de Dirac, abre a porta à existência da antimatéria. O eletrão deve ter, por lógica da teoria quântica, uma partícula idêntica, mas com carga positiva, o que depois receberá o nome de positrão. Dois anos depois, o físico experimental Carl Anderson demonstraria a sua existência. Um ano mais tarde, e com base nisto mesmo, Paul Dirac ganharia o Prémio Nobel, compartido com Erwin Schrödinger.

Paul Dirac (1902-1984). AIP Emilio Serg&egrave, Visual Archives

Como disse o seu biógrafo, Oppenheimer não tinha paciência para se dedicar a um único problema durante muito tempo, mas abriu a porta a que outros, um após outro, o fizessem, a um ritmo nunca antes visto numa Universidade. E também escreveu artigos com os seus alunos de doutoramento e outros, sobre radiação cósmica, sobre raios gama, sobre cascatas de eletrões e positrões, sobre eletrodinâmica quântica (que mais tarde se tornaria o grande campo de ação de Feynman).

Se ele abriu a porta à antimatéria, abriu também a porta à existência de buracos negros. Trabalhando sobre a estabilidade nuclear das estrelas de neutrões, encontrou um tamanho máximo, a partir do qual estas se tornam instáveis. Estudando a contração gravitacional contínua desde uma estrela gigante, cujo combustível se esgotou, calculou que, a partir de uma certa massa, esta entraria em colapso como anã branca e, depois, cada vez mais, pela força da gravidade, como estrela de neutrões, e mais, até se tornar numa singularidade que nem sequer deixaria escapar a luz, até que persistisse apenas o seu campo gravitacional, ou seja, um buraco negro. Ou seja, ele é o real descobridor teórico dos buracos negros, mas o seu estudo passou despercebido até 1970, quando puderam ser observados astronomicamente.

Também fez amizade com o professor de sânscrito em Berkeley, Arthur W. Ryder, com quem aprendeu e se apaixonou pelo Bhagavad Gita, com o seu sentido de dever, com a sua necessidade de disciplina, trabalho, meditação e guerra interior para alcançar a verdadeira paz. Estes foram sempre os princípios orientadores do jovem Oppenheimer e, numa carta ao seu irmão Frank, escreveu-lhe:

O facto de a disciplina ser boa para a alma é mais fundamental do que qualquer razão dada para a sua bondade. Creio que pela disciplina, mas não só por ela, podemos alcançar a serenidade e libertarmo-nos, em certa medida, pequena, mas preciosa, dos acidentes da encarnação […] e desse desapego que preserva o mundo a que renuncia. Creio que mediante a disciplina aprendemos a conservar o que é essencial à nossa felicidade, em circunstâncias cada vez mais adversas, assim como a abandonar de maneira simples, o que de outra forma nos pareceria indispensável.

E se os Upanishads encantavam outros pais da Física Quântica, como Schrödinger, Oppenheimer estava mais inclinado pelo Mahabharata, que é um hino à ação e ao sacrifício, ao dever e à responsabilidade para com o mundo, pois “o karma dos outros está cheio de perigos” e a cada um chama o dever da sua própria ação. Leu também o Megaduta de Kalidasa, o Shakespeare hindu, e o Satakratayam com a sua amorosa crucificação.

Em 1936, conheceu e apaixonou-se por Jean Tatlock, de 22 anos, que o introduziu nos círculos comunistas, nos quais poderia facilmente ter tido grande importância, mas sem qualquer compromisso formal. O comunismo estava muito próximo do socialismo do New Deal, com a sua necessidade de procurar justiça para além do capitalismo feroz e implacável. Oppenheimer (e mais tarde o seu irmão Frank) simpatizavam com estas causas e, numa longa viagem de comboio, leu os três volumes de O Capital de Marx, um estudo que poucos comunistas teriam feito. O FBI desconfiou dele quando lhe deu credenciais de segurança máxima em Los Alamos, e elaborou um dossier de milhares de páginas que o general Robert Groves sempre desvalorizou porque sabia que, apesar do seu passado, era leal, profundamente leal, aos Estados Unidos. No seu infame julgamento em 1953, semelhante às perseguições inquisitoriais de Galileu, e pelo qual o seu cartão de segurança foi retirado, os seus inimigos atacaram-no como hienas e expulsaram-no publicamente, com toda a humilhação e escárnio que acompanhavam tais cenas. Este “julgamento” é tão espetacularmente infame que os seus preâmbulos ocupam 120 páginas no livro Prometeu Americano, e depois foi representado como uma obra de teatro de grande êxito (em vida do próprio Oppenheimer, amargurado por o fazer dizer no final, em jeito de confissão, palavras que nunca tinha pronunciado nem pensado). Remeto o leitor interessado para este livro, que revela muitos dos elementos da personalidade deste físico poeta.

Na realidade, com o Projeto Manhattan, afastou-se totalmente desses círculos comunistas, embora mantivesse algumas das suas amizades; e depois da guerra, odiou o regime soviético como uma das piores formas políticas da história e alertou contra ele em palestras e artigos.

Durante 18 anos foi diretor do Instituto de Estudos Avançados de Princeton e, tal como antes em Berkeley, converteu-o num importante centro de física teórica, apesar da oposição dos matemáticos, que se converteram numa grande dor de cabeça para Oppenheimer. Havia, por exemplo, John von Neumann, que construiu um dos primeiros computadores, Kurt Gödel, que provou o próprio paradoxo dos fundamentos da matemática, e John Nash, a quem Oppenheimer ajudou tanto quanto pôde durante a sua doença (que vemos no filme Uma Mente Brilhante). O Instituto era também o santuário de Albert Einstein, que mantinha uma amizade tensa (admiração mútua e alguma rejeição) com o novo diretor. Trabalharam lá também Niels Bohr e Paul Dirac e dezenas de convidados ilustríssimos que passaram vários meses a partilhar os seus conhecimentos ou simplesmente a repousar nesta espécie de academia platónica. De facto, em 1948, Oppenheimer contratou Harold F. Cherniss, seu amigo de Berkeley e o maior especialista em Platão e Aristóteles, e acolheu também, por exemplo, o historiador Arnold Toynbee e o poeta T.S. Eliot.

A relação com Einstein era curiosa: Oppenheimer teve de sofrer com o facto de o criador da teoria da relatividade, se dedicar todo o tempo no Instituto de Princeton, a tentar provar que a teoria quântica tinha falhas, e há quem pense que a frase da revista Time “Einstein é um marco, não um farol”, se deve a ele. No entanto, Einstein fez uma breve declaração a seu favor, no seu famoso julgamento inquisitorial. E, como todos, Oppenheimer tinha detalhes de carinho por Einstein. Descobriu que, apaixonado pela música clássica, não conseguia captar o sinal de rádio dos concertos do Carnegie Hall. Mandou instalar uma antena no telhado da casa do físico alemão e um dia este apareceu com um rádio para ouvirem juntos um concerto. Einstein também o respeitava pelos seus esforços em prol do pacifismo, e contra a louca corrida aos armamentos, que poderia destruir toda a humanidade.

O sentimento de culpa e até de angústia por ter criado a primeira bomba atómica, e aberto esta Caixa de Pandora, deve ter sido grande. É ciência, claro! Mas ao serviço do poder ainda não purificado do egoísmo, que perigo para a humanidade, e o seu frágil equilíbrio! Quando a Alemanha nazi já estava em ruínas, e pior, quando se soube que o pretexto para a criação da bomba, a corrida aos armamentos, era falso, isto é, que Heisenberg nunca quis e nunca pôde criar a bomba, embora tivesse conhecimentos para tal (e chegou a conceber reatores nucleares); um grupo de cientistas de Los Alamos decidiu não continuar o trabalho, já desnecessário e extremamente perigoso nas suas consequências futuras. Vários abandonaram o projeto e Oppenheimer, com o seu carisma singular, persuadiu-os a continuar. Pior ainda para Oppenheimer era saber que o Japão era um inimigo derrotado, e que a única coisa que queria era que essa rendição não fosse incondicional (o imperador era para eles a alma do Japão; servir a sua cabeça numa bandeja na derrota era inconcebível para o povo e dirigentes japoneses).

Um pouco de fé de ambos os lados e diplomacia teriam resolvido a questão. Perto do fim da sua vida, Oppenheimer ficou impressionado ao ler num ensaio que a utilização real da bomba se deveu ao facto de os Estados Unidos quererem acabar com a guerra agora, porque os russos, que na realidade, eram vistos como inimigos, ainda que aliados temporários, avançavam selvagemente e, quanto mais dias passassem, mais o Japão perderia para os americanos. Um pouco de boa-fé e uma diplomacia rápida e efetiva teriam conduzido a uma rendição imediata. Mas não, como era difícil vencer a tentação de usar a bomba e demonstrar o poder ilimitado sobre o mundo inteiro. No final, Oppenheimer e a sua equipa de Los Alamos tinham razão em pensar que tinham as mãos manchadas de sangue. Pois, embora o bombardeamento das cidades japonesas não tivesse sido inferior ao efeito pontual da bomba atómica, por exemplo, em Tóquio, tratava-se de uma nova dimensão, mil vezes mais pavorosa para o que se previa no futuro. Oppenheimer opôs-se seriamente, como conselheiro do governo, à construção da bomba de hidrogénio, mil vezes mais potente do que a bomba de Hiroshima, e à corrida aos armamentos. Seguindo a filosofia de Niels Bohr, propôs a única solução realmente válida para o mundo nesta nova etapa e apresentou um dossier muito completo sobre a forma de a realizar: deveria existir um comité internacional da energia atómica que fiscalizasse todas as minas de urânio, todas as fábricas de enriquecimento e todo o processo industrial e de investigação, de maneira a que fosse integralmente para a paz, para conseguir uma energia ilimitada outorgada gratuitamente para todos os países (os mais poderosos ajudando os que eram menos). Os mecanismos de controlo e coerção real tornariam impossível a qualquer país agir livremente neste aspeto. É uma lástima que esta solução, que também era evidente para todos aqueles que o pensassem serenamente, tenha sido impedida pelos interesses egoístas dos proprietários das minas de urânio, e que estavam, como não, no comité de investigação e assessoria, e pela soberba dos Estados Unidos, que se aproveitaram do facto de estarem em vantagem, de terem um poder ilimitado para obrigar com as suas políticas internacionais e aos interesses económicos imperialistas, no pior sentido da palavra. A voz de Oppenheimer foi incómoda, e foi deixado de lado, e depois difamado, com a cumplicidade do Presidente Eisenhower.

Primeiro, Oppenheimer deu inúmeras palestras em comités governamentais, entre cientistas, em universidades. E quando foi afastado da Comissão de Energia Atómica, continuou a combater com todas as armas de persuasão que tinha. As pessoas que o ouviam ficavam rendidas aos seus argumentos, ao seu carisma e à clareza da sua visão. Mas agora que já não estava nos centros de poder, a sua capacidade de fazer pender a balança a favor da racionalidade era cada vez menor. Algumas dessas conferências foram editadas em livro, como Open Mind, e é surpreendente a perspicácia do físico ao prever as três décadas seguintes e até que ponto a humanidade estava à beira da autoextinção (ainda não saímos da linha que nos permite ver o abismo). Graças talvez, ao esforço titânico de Gorbatchev para o desarmamento, não nos lançámos de cabeça.

A cidade de Hiroshima (Japão) após a explosão da primeira bomba atômica usada contra civis em finais da Segunda Guerra Mundial. Domínio Público

Numa dessas conferências, Oppenheimer parece filosofar como o próprio Confúcio:

Numa censura[2] implícita aos que pensavam que os Estados Unidos, poderosos e armados nuclearmente, podiam atuar unilateralmente, recitou: A dificuldade de fazer justiça ao tácito, ao imponderável e ao desconhecido não é exclusiva da política, sem dúvida. Acompanha-nos sempre na ciência, assim como nos assuntos pessoais mais triviais, e é um dos grandes problemas da escrita e de todas as formas artísticas. Por vezes, a forma de o resolver chama-se estilo. É o estilo que complementa a afirmação com a limitação e a humildade; é o estilo que possibilita uma ação eficaz, mas não absoluta; é o estilo que, no campo da política externa, nos permite harmonizar a busca de fins essenciais para nós, com o respeito pelas perspetivas, sensibilidades e aspirações daqueles para quem o problema pode aparecer sob outra luz; é o estilo, a deferência que a ação mostra à incerteza; e, acima de tudo, é o estilo mediante o qual o poder cede à razão.

Oppenheimer resume em si mesmo, o drama da alma humana, e da própria Ciência. A verdade, se não estiver ao serviço da bondade, da justiça e da beleza, em que se converte a verdade? E jogando o jogo das rodas lulianas, podemos dizer o mesmo. Se a justiça não estiver ao serviço da beleza, da bondade e da verdade, de que nos serve? Na medida em que nos afastamos desse piramidão e manancial de luz, tudo se desfoca. A ambição substitui a vontade pura, as sombras adensam-se, os ventos são semeados e colhidos como tempestades. E a História deve ser reconduzida, num rasto de fogo, ou como os movimentos e convulsões da terra que fazem a água, em cascata e livre, seguir o seu caminho para o mar. Na alma de Oppenheimer, vemos o buscador da verdade, o poeta e até o profeta. Também o guerreiro de vontade de aço cumprindo a missão encomendada e guiando as forças históricas, ou encantando-as como o flautista de Hamelin. E também, associado ao poder e implicado nos seus remoinhos, os seus biógrafos veem lampejos de ambição desmedida, de um orgulho satânico muito profundo, convivendo com o asceta e o místico. Onde está a verdade? Não é fácil para o ser humano procurá-la, mas só nela vive a redenção necessária para seguir avançando.

José Carlos Fernández
Almada, 9 de junho de 2024

[1] TRAVESSIA

Era de noite quando chegámos ao rio

com a lua baixa sobre o deserto

que havíamos perdido nas montanhas, esquecidos,

com o frio, o suor

e as cordilheiras que bloqueavam o céu.

E quando o encontrámos de novo,

nas colinas secas junto ao rio,

meio murchito, tínhamos

os ventos abrasadores contra.

Havia duas palmeiras no embarcadouro;

as iúcas estavam florescendo;

Havia uma luz na outra margem, e tamariscos.

Esperámos um bom bocado, em silêncio.

Então ouvimos crepitar os remos e depois,

recordo, o barqueiro nos chamou.

Não víamos atrás, as montanhas.

[2] Como todas as citações, do livro Prometeu Americano.

Imagem de destaque: 1- Robert Oppenheimer depõe perante a Comissão de Assuntos Militares do Senado em 1945. Associated Press