E qualquer que escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe fora que lhe pusessem ao pescoço uma mó de atafona, e que fosse lançado no mar (Mc. 9, 42).
Valeria a pena conhecer a versão original deste versículo, para melhor compreender o seu sentido. Ainda assim, a aventura de procurar compreendê-lo, tal como tem sido traduzido recentemente, vale por si mesma. O fascínio deste versículo encontra-se na antítese em que ele se constitui. Aparentemente, Jesus contrapõe a inocência (dos pequeninos) e a pena capital (a morte, a violência entre a violência); ou seja, para Jesus, aquele que atenta contra a inocência é réu de morte.
O que haverá de tão importante na inocência, que quem o ponha em causa deva morrer, antes que o faça? O que haverá de tão fulcral na inocência da infância, para que em outras passagens Jesus diga se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus (Jo. 3, 3) e deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas (Mt. 19, 14)? A idade da inocência termina, sensivelmente, com o início do Estádio das Operações Concretas, de Piaget (por volta dos 7 anos). Até esta idade, a criança não mente. Não sabe mentir, não vê interesse em mentir, não reconhece qualquer valor à mentira. Até esta idade, a criança conhece apenas a Verdade. Sente, pensa, vive e relaciona-se na Verdade.
Não coloca a possibilidade de trair, ser desleal ou infiel, ser desonesta ou pouco íntegra. Nem coloca a hipótese de que outros o façam, aceitando tudo o que vê, ouve, e sente como a mais pura verdade (ainda que seja, na realidade, uma retorcida mentira, de alguém mais velho). A criança é absolutamente genuína e percebe os outros e as circunstâncias como absolutamente genuínas.
Como para a criança desta idade tudo é Verdade, não existe, para ela a necessidade de julgamento. A necessidade de discernir, de separar a verdade da mentira, o bom e o mau, o certo e o errado, não existem para uma criança pequena. Toda a experiência é absorvida enquanto Realidade, moldando a perceção profunda que o ser humano tem e terá dessa mesma Realidade.
Por isto mesmo, por não ter filtros, a criança está totalmente exposta à influência do mundo, aprendendo e apreendendo a realidade que lhe é mostrada. Os medos são aprendidos. A raiva é aprendida. A insegurança é aprendida. A violência é aprendida. A mentira é aprendida. O valor relativo das coisas e das pessoas é aprendido.
E, assim exposta, abre espaço ao escândalo, enquanto ato ou evento que põe em causa a sua inocência. Porque a sanidade e a pureza do ser humano – ainda em gestação nesta fase – depende da manutenção desta inocência durante todo o tempo em que deva existir (até à passagem para o Estádio das Operações Concretas). Ou seja, quando a criança convive com a Verdade, com a Beleza, com a Bondade e com a Justiça, desenvolve uma perceção do que é Belo, Bom e Justo, assumindo a Verdade (como contraponto do engano, da deslealdade, da infidelidade, da desonestidade e da ausência de integridade) como denominador comum, não questionável, da sua Realidade.
Esta perceção, assim desenvolvida precocemente, mantém-se no registo profundo do ser humano, uma vez que todo o seu desenvolvimento posterior assenta bio-emo-psicologicamente nessa mesma perceção, nessa mesma Verdade.
Pelo contrário, uma criança escandalizada – cuja experiência precoce é contrária à Beleza, à Justiça, à Bondade e à Verdade – retém no seu registo interno, profundo, uma perceção deturpada da Realidade, tornando-se um adulto distante das Ideias, condenado a viver na Caverna (de Platão).
Eventualmente, findo o tempo da inocência, todos entramos na Caverna. O que nos poderá distinguir, talvez, é este registo interno, esquecido com o tempo e a entrada em força no mundo físico, social e mental… Este registo profundo, bio-emo-psicológico, que, a determinada altura da nossa vida, nos começa a gritar, lá das profundezas, que a Caverna não é a Realidade… que é imperativo pormos em causa o que os nossos olhos físicos e restantes sentidos percebem como realidade.
É verdade que o karma desempenhará, em tudo isto, um papel fulcral, determinando que crianças chegam ou não a ser escandalizadas, de que forma, e em que medida. E isso ultrapassa-nos. E é assim que deve ser. Apesar disso, o nosso papel, enquanto aspirantes a filósofos e ou políticos, é trazer aos nossos semelhantes adultos esta consciência da gravidade do escândalo da criança na sua inocência.
Porque, em última análise, escandalizar um pequenino inocente, ainda que possa colaborar com o karma, também poderá ser criar karma. Escandalizar um pequeno inocente é deixar num ser humano um registo profundo adulterado – da Realidade da Vida e do Ser Humano – e, eventualmente, condená-lo à Caverna, e ao sofrimento que a caracteriza. Talvez seja essa a lógica subjacente à palavra do Mestre Jesus: será preferível morrer, antes que escandalizar um pequeno inocente.
Uma inocência infantil preservada origina uma criança (mais velha) e um adolescente com os valores da Verdade, da Beleza, da Justiça e do Bem muito claros, no seu interior – e, por isso, capaz de desenvolver em si mesmo, consciente e voluntariamente, esses valores da Justiça, do Bem, da Beleza e da Verdade, durante o percurso até à idade adulta, e mesmo durante a adultez.
O acesso a essa referência, a esse registo profundo, permite que se torne um adulto estruturado, orientado às Ideias, em vez de subjugado à matéria ou ao astral. E uma inocência preservada permite ao ser humano o regresso à sua pureza, mais tarde no seu percurso já não como condição própria da idade física, mas como condição de elevação da alma, pois esta elevação não acontece na ausência de pureza. E a pureza preserva-se pela vivência imperturbada e imperturbável da Verdade e da Beleza, da Justiça e da Bondade, durante a primeira infância.
Porque nenhum de nós, pais e mães, consegue garantir – quer por causa das nossas próprias dificuldades, quer por não podermos controlar totalmente o ambiente em que a criança gerada se desenvolve – esta pureza absoluta não existe ainda, na humanidade. Mas podemos fazer um caminho de aproximação, sendo aprendizes de discípulos. Podemos procurar recuperar, nós mesmos, essa pureza com impurezas, da nossa infância precoce, da nossa idade da inocência, que sobrevive no mais profundo de cada um.
Começando pela Verdade. Pela integridade. Pelo conhecimento de si mesmo. Das suas impurezas, e das suas forças ou dons. E prosseguindo pelo caminho da Beleza. Da admiração. Do Amor. Antes de mais… Amor a si mesmo. Cheio de lacunas, mas Belo. Digno de Amor. Como qualquer ser humano.
Porque quem é perfeito, não precisa de amor, uma vez que já é Amor. Quem ainda caminha aos tropeções, tantas vezes para a almejada perfeição (ainda que não chegue a ela, nesta encarnação), é que precisa de Amor. Eu. E tu. E todos. Amemos. Amemo-nos. Para podermos caminhar.
Depois do Amor, os dois gumes da espada de Guerra Sagrada: a Justiça e a Bondade. A plasmação social da Verdade e da Beleza. Parece simples, mas não é. Parece difícil, mas não é. É apenas constância. Vontade. Cair, e levantar-se. Ficar ferido, sarar e prosseguir. Mesmo no nevoeiro. Confiando que a Pureza profunda está lá, e há-de guiar-nos até ela. E para lá dela, depois…. É um processo. Um caminho. Com etapas. Para dentro, profundamente, primeiro. E só depois para fora. E novamente para dentro, mais profundamente. E depois para fora… Como um botão que se fecha, ao cair da noite, e abre novamente ao raiar da aurora, espalhando em redor o seu perfume. Não em círculo, como aparenta. Em espiral. Abrindo progressivamente mais. Pondo a descoberto mais pétalas. Mais, e mais… até descobrir e tornar visível o Centro de Si.
Um caminho através da Verdade e da Beleza. Da Justiça e da Bondade. Um caminho espiralado, rumo ao Bem. Um caminho que vai tornando possível, progressivamente, outras saídas da Caverna. Um caminho que, a seu tempo, permitirá a preservação massiva da inocência da primeira infância – a vivência imperturbada e imperturbável da Verdade e da Beleza, da Justiça e da Bondade, durante os primeiros anos de vida na carne. Um caminho de purificação. De alívio do karma. Um caminho de Luz e de Paz, uma vez concluída a Guerra Sagrada interior. Um caminho que passa, necessariamente, pelo regresso à Pureza da infância – ao conhecimento inquestionável do que é Verdadeiro, Belo (digno de ser amado), Justo e Bom.
Parece simples, mas não é. Parece difícil, mas não é. É apenas constância. Vontade. Disciplina. E a certeza de que estamos no caminho. Num caminho. A meta não é a meta. A meta é caminhar. Não estagnar. Não regredir. Caminhar, apenas. Não estou só. Caminhamos juntos. Quando um cai, outro o ajuda a que se levante. E há uma Luz sobre este caminho: a Pureza que reside no mais profundo de nós, e o ensinamento do Mestre – sê como uma criança. Puro. Verdadeiro. Íntegro. Ama-te. Ama. Incondicionalmente. Procura ser Justo. Procura ser Bom. Para poderes agir com Justiça e com Bondade. O que só será possível à medida que vais descobrindo a Verdade maior – sobre ti mesmo, sobre a condição humana e sobre a Natureza; sobre o que é a Justiça e a Bondade, sobre o que é a Beleza, o Amor e a Verdade. Então verás. E não mais correrás o risco de escandalizar um pequeno inocente. Na presença da Pureza recuperada, toda a escuridão, Idade Média, trevas ou dor, perdem o seu poder.
Caminhemos. Unidos. Cada um no seu melhor – não na perfeição, que nenhum de nós a alcançou ainda! Mas na Dignidade. E na Responsabilidade. Em Verdade. Em Beleza. (Em Amor). Em Justiça. Em Bondade.
Rumo ao Bem maior.
Patrícia Oliveira
Imagem de destaque: Crianças brincando nos repuxos de água, numa tarde de Verão, Bev Sykes. Creative Commons.