Há uns dias vi um documentário da BBC que me impressionou muito[1]. É a história de uma família com um filho, que tem uma doença degenerativa que o impede progressivamente de fazer uso dos músculos, e que vive quase confinado em casa até que morre com 25 anos. Salvo umas amizades familiares que o visitavam de muito em muito tempo, a sua vida social era quase nula. Desde pequeno muito aficionado aos videojogos, passava grande parte da vida neles, e dado que o prognóstico era morrer sendo jovem, uma vez terminados os estudos, era-o cada vez mais. Os pais estranhavam que, em vez de triste e amargurado estivesse sempre de bom humor e com uma atitude positiva. Nos últimos anos de vida o jovem escreveu num blog sobre o seu dia-a-dia e videojogos, nos quais era um especialista, tendo passado mais de 20.000 horas neles. Quando morreu, o seu pai anunciou o falecimento no próprio blog e recebeu atónito um grande número de emails de condolências, em numerosas línguas e procedentes de muitos países. A sua morte tinha gerado um choque numa quantidade enorme de amigos, de um mundo virtual em que era tido com grande respeito e honra, como Lord Ibelin Redmoore no planeta mítico de fantasia de Azeroth. No funeral estiveram numerosas pessoas que nunca o tinham conhecido em “carne e osso”, e que falaram do imenso orgulho de ter vivido junto a ele num mundo virtual, com o avatar ou identidade que a sua imaginação tinha criado.
Recomendo ler o artigo da BBC pois os detalhes são de grande interesse.
Esta história apresenta-nos grandes perguntas sobre o verdadeiro sentido da vida, e ainda sobre o que esta é, para o ser humano, realmente. E ainda sobre o mais além dela, sobre a morte, pois se esta é apenas a consciência que deixa de estar ancorada a um mundo físico e entra no mundo da própria imaginação, sem ataduras…
Mas com capacidade de interatuar com outros, como nos videojogos, e com todo o tipo de entidades em todos os planos que a consciência tem? Porque não? Sempre associamos aos outros e imaginamo-los retidos, aprisionados nos seus corpos como nós e desde aí vivendo e interpretando a vida para fazê-lo da melhor maneira. Mas e como no Mito da Caverna de Platão, se os outros não viveram nas suas sombras, mas na realidade consciência, ou seja, em nós também, ainda que com a sua própria vontade, com as suas decisões próprias? E na verdade o que vamos encontrar depois da morte, ou melhor, o que encontramos definitivamente no profundo da vida? Porque é que os outros não podem ser mais reais na nossa consciência, que nós mesmos? Não é esta a quintessência do amor? Em todo o caso, sempre percebidos através do olho da imaginação, e através de uma fresta muito, muito estreita, e que o nosso egoísmo faz ainda mais estreita.
Na filosofia platónica, e não só, descreve-se o mundo, ou seja, a consciência humana:
- – Prisioneira do mecanismo e leis fixas. E aí somos filhos da necessidade, o mundo é uma máquina que funciona aparentemente por si mesma, com as suas próprias leis: Dura Lex, sed Lex;
- – Depois vivendo na e através da imaginação, e fazendo as suas escolhas e exercendo as suas decisões;
- – E no final, ou saindo da caverna da nossa ignorância, o mundo Real, o que não muda com as circunstâncias, é em si mesmo, não é reflexo de nada.
Três mundos: o mecânico, físico; o da imaginação, da moral e das virtudes, e dos labirintos que na própria mente forjamos e dos quais somos criadores e vítimas e resultado; e o real, que podemos chamar de consciência pura, liberados das sombras na mente, e não havendo nela limites, sem tempo, nem dentro fora, nem longe perto, nem aqui e ali.
Na filosofia samkhya e yoga, na Índia, identificam estes três reinos com os estados de vigília, sonho e sono sem sonhos; e mais além um quarto que não podemos nem imaginar, quiçá equivalente à própria luz do Sol do Bem no Mito da Caverna de Platão, ou ao Uno de Plotino.
Na nossa ignorância, com a consciência identificada com as sensações e estados fisiológicos, pensamos que o Real é o corpo e as suas chamadas, desejos e prazeres básicos, dores e limitações. Mas se queremos aceder ao Real, nesta Filosofia, ensina-se que só se pode aceder através da imaginação e da mente, com os seus mil cenários. O que nela façamos antes ou depois gerará consequências que a consciência deverá enfrentar, ainda que na prisão do corpo. A Lei, sendo a cristalização da Verdade, é inflexível. No exemplo dos videojogos, ou no facto de estar encarnados no aqui e agora, e na matéria, por muito que a imaginação se identifique com uma personagem, a crua realidade vai dizer-nos, “olha para o teu corpo e para as suas necessidades!” ou “onde está a amada ou amado que abraças na tua realidade virtual?”, “Que realidade há nisso?” E a águia quer ser livre e os barrotes da jaula impedem-na e só pode sonhar o seu voo. Como dizia o professor Jorge Ángel Livraga, estes Sonhos da Alma prisioneira são os Ideais.
Grande pergunta, que realidade há nisso? A realidade da minha imaginação, da minha vontade, que forjou as personagens, que assumiu decisões nesse mundo com as suas próprias leis, e com elas as suas consequências, que manifestou o seu coração, a sua mente, o seu espírito na viagem e nas aventuras que forja na sua imaginação (com a ajuda do programa de computador ou do programa de funcionamento da própria psique) e interatuando com os outros. Sim, mas isto não sacia a nossa sede de realidade. A água que ali bebemos não mata a nossa sede de vida e pode-nos martirizar. É menos real uma amizade neste mundo virtual, do que a que forjamos além dele olhando-nos nos olhos, apertando as mãos?
Como nas famosas histórias de dois namorados que se conheceram por via epistolar durante anos, e ao dar o último passo, a última prova de realidade, fracassam, porque não querem atravessar esta porta, temerosos da verdade do mundo. E, no entanto, neste mesmo exemplo, a relação entre quem escreve estas cartas, seria mais real que a do, ou dos, que as encomendavam, desonestamente, a outros por interesse ou medo que o conhecessem como de verdade são, sem delicadeza ainda, cultura ou nobres intenções. Ou seja, a luminosidade é a do nosso mundo interior, e a nossa maior ou menor nobreza também, e o que somos é o que escrevem os nossos atos, palavras, sentimentos, irradiando assim a vida interior, e nada que tenha a ver com o corpo. Mas o material e as suas leis inflexíveis são o suporte.
Porque diz H.P.Blavatsky em Ísis sem Véu – e cito de memória aproximadamente – que o ato mais real na nossa vida é o tato de outra pessoa? E quem diz tato, é também olhá-la, ouvi-la, senti-la. Porque se diz que para arder e transmutar-se no atanor do amor há que estar próximo, junto? Ou que o mestre necessita, para forjar o discípulo de verdade, estar junto a ele, que não é suficiente a relação epistolar ou a videoconferência? É como uma eletricidade que percorre todos os planos da existência, mesmo o material, onde encontra o seu suporte e, de certo modo, ainda, o seu núcleo de verdade. Porque se diz que Deus, ou Kundalini, dormem no coração da matéria, e que ali esperam ser despertados para prosseguir de volta no caminho?
Por outro lado, não são as disciplinas religiosas, e peço desculpa pela comparação, como uma forma de videojogos espiritual, em que vamos forjando, com a nossa imaginação, com a nossa vontade, com os nossos sacrifícios ou orações, um mundo interior, o único elemento válido para entrar em contacto com o mundo subtil, e depois mais além das sombras psíquicas, com os Deuses, Poderes Angélicos ou Virtudes Transcendentais? E não há nelas espadas de vontade geradas com a imaginação, e vestes, e palavras de ordem, e frases mágicas, e labirintos? Por exemplo, quando um monge, meditando, passa milhares de horas desenhando na sua imaginação e modelando um mundo de “verdades” espirituais ou da consciência, que como não é ainda totalmente real, deve ser desfeito para fazer um ainda mais perfeito. Mas não é isto a essência da própria vida, também aqui e agora? A alma só pode viver na imaginação, não na própria matéria, isso faz o bruto na sua inconsciência. E não é o curso de vida uma obra de arte mais ou menos bela, que se não se ajusta à Harmonia, deve ser desfeita uma e outra vez para assim ir aproximando-nos ao Real? A isto, na Índia, chamam-no Lila, o Jogo dos Deuses, pelo qual os universos são criados e destruídos, pois o que importa é o artista, ou seja, a Alma, que se exercita neles, que joga, e canta e dança como o Shiva no seu Círculo de Fogo.
Alonso Quijano, sem valores nem imaginação, nem ideal cavaleiresco está mais louco que o Quixote, pois ainda que este último tenha perdido o ponto de contacto, a “ligação à terra”, vive na sua imaginação, e leva à realidade dos que o rodeiam, um mundo que é mais belo, justo, bom e duradouro que o simples comer, reproduzir-se e dormir. E ainda que se espatife com a crueza de um mundo moralmente insensível ou com as engrenagens de aço da vida material, não cede nem renuncia a estes Ideais, nem diz que Deus morreu, que não existe. Ninguém pode fazer com que renegue a Beleza, a Bondade e a Justiça, e afirma com os seus atos e palavras que há mais certeza e vida nas Damas e Cavaleiros que nos simples homens e mulheres. Pois o fogo dos Ideais transmuta o homem num Cavaleiro e a mulher numa Dama. E a nobreza, além de ser o justificativo moral do comando, é a natural inclinação ao bem, e esta desperta através de exemplos, de ideais, de valores.
No final, a solução deste enigma, deste paradoxo que evoca em nós a bela história do cavaleiro Lord Ibelin Redmoore, deve ser quiçá o koan do Budismo Zen:
“Qual é o bater da palma de uma só mão?”
Definitivamente, viver é, como disse um sábio, mestre de H.P.Blavatsky:
“Criar, aspirar, transformar-se e triunfar”. Devemos seguir o caminho que nos leva a isto.
José Carlos Fernández
Escritor e diretor de Nova Acrópole Portugal
Anotações
[1] Vi-o em português em “A vida secreta de meu filho que só descobri após sua morte” e pode ler-se neste artigo em espanhol ainda mais desenvolvido “La impresionante vida secreta en internet de mi hijo con discapacidad”