Para Platão um sábio é alguém que não quer nada para si e olha para as coisas com a ideia do Bem, perguntando a si mesmo como servir ao Bem, como servir as coisas e não a si mesmo.

Ora, partindo desta ideia poderá ter sido com base nela que Platão, pretendendo a unidade do ser e com isso de todas as coisas, tenha tentado mostra-nos o quanto estamos ainda longe da unidade (BEM), pois vemos o mundo e as coisas segundo a nossa pequena mente, vemos as coisas como sombras projetadas e temos a ilusão de que essa projeção é a realidade.

Se essa projeção é uma projeção da sociedade como um todo, ela pode ser transposta para a nossa realidade pessoal, ou seja, o mundo da nossa psique e do nosso comportamento individual (acima como abaixo, dentro como fora – Hermes Trismegisto).

Ao ser acorrentado, agrilhoado pelas correntes dos limites internos, da sua visão redutora, fruto de vários mecanismos individuais e reflexo do coletivo, cabe ao Ser Humano deixar de tomar a sombra por realidade. A sociedade encarrega-se de dizer o contrário, ou pelo menos é assim que muitas vezes é interpretado, pois as vozes do “velho do restelo” fazem eco no Ser há muitas gerações, perpetuando a sombra, a mesma maneira de ver o mundo, os outros e a nós mesmos.

Platão escreveu a Alegoria da Caverna no seu livro A República.

Haverá maneira de o homem sair da sua condição de prisioneiro e alcançar a liberdade interior, uma liberdade que esteja para além dos condicionamentos da matéria e o coloque como autor do seu destino?! Essa busca do ser humano será com certeza tão velha quanto o próprio homem, quando se interroga, se questiona, se põe em causa, enfim quando supera algo que literalmente o acorrenta. E quando assim é há um novo folgo, um Ser novo nasce e não somos mais os mesmos.

Esse progresso muitas vezes parece fruto do acaso, mas a construção do ser poderá ser feita por via de um propósito, de uma decisão consciente e pensada. Será que podemos superar os limites do nosso ser, transformar os limites internos em ferramentas que nos ajudem a desamarramo-nos dos outros ou da genética, da hereditariedade, da sociedade, da cultura, que parece condicionar-nos irremediavelmente?

Ou seja, que resposta buscarmos para encontramos fé em nós mesmos para a difícil tarefa de nos construirmos, ou melhor, de nos transformarmos, já que o Ser é uma obra inacabada?

Em primeiro lugar parece que temos que perceber com profundidade que essas sombras projetadas são na realidade sombras e que a nossa tomada delas como certas se deve à falta de vontade de questionarmos os nossos atos, pensamentos, palavras, de nos interrogarmos sobre nós e tudo mais. Claro que muito deste estado radica numa sociedade que valoriza a memorização, a preguiça de colocarmos em causa as ideias alheias, que muitas vezes tomamos como nossas, ou seja, todo um conjunto de limites internos que nos conduzem à aceitação dessas sombras: a resistência interior; a acomodação por segurança (o arquétipo da ordem mal vivido, a ilusão de que mais vale um mundo em comodismo do que o desconhecido, que embora desejado, é perigoso); o karma; a educação, a infância e o meio; o medo; o desejo; a luxuria, gula, preguiça e raiva; a tristeza; a crítica (julgamento).

A caminhada começa quando percebemos que, entre muitos outros, não é possível abarcar todo o conhecimento empírico, que quase tudo nos escapa, que a felicidade é efémera, o prazer passageiro, a fama transitória, de que o nosso centro não é fixo, de que não controlamos as emoções e pensamentos, de que os objetivos alcançados não têm mais interesse e deixam muitas vezes um sabor amargo de vitória, de que as palavras estão gastas, de que são desvirtuadas, esvaziadas e sem valor.

Quando a noite escura da alma acontece, quando o ser está mergulhado num vazio, vazio esse fruto da perceção, digamos inconsciente, de que as tais sombras que tomamos por realidade caem aos nossos olhos e que, não acreditando nas sombras, tudo parece uma parede escura, só aí, quando ainda acorrentados, sem mais refúgio numa “realidade” que percebemos não ser a verdadeira alegria, a nossa alma grita de dor, o desespero se instala, nada parece fazer sentido, tudo foi experienciado, os contrastes foram levados quase ao limite (e muitos experimentam-no), os relacionamentos mostram um reflexo distorcido e a alma está então pronta para a travessia. E dizemos isso, já os mestres o dizem, porque todo o ser humano vive repetidamente “pequenas mortes”, até finalmente perceber que a vida da alma é aquela que vale a pena seguir.

Gravura de Jan Saenredam sobre a Alegoria da Caverna da Platão, de 1604 / British Museum

É com o começo do trabalho de “regresso à casa do pai”, que é um regresso a nós mesmos, à nossa ideia arquetípica do bem, do belo e do justo, à unidade perdida, que ganhamos forças para, passo a passo, nos desacorrentarmos e sairmos da na e começarmos a ter uma visão do que pode ser a verdadeira realidade, tão longe ela fica da nossa vida pequenina, mas ao mesmo tempo passando por ela (é no nosso quotidiano que operamos as mudanças).

E é nas pequenas coisas que vamos construindo a realidade, nem sabendo onde vai dar, mas sabendo que como era, já não mais será e que aqueles sonhos de infância são possíveis. Tudo aquilo que nos disseram que não era realizável, afinal é, que com resiliência, paciência, aceitação, coragem, vontade, conhecimento, sabedoria, compaixão e generosidade e com as quedas, construiremos a nós próprios e isso influenciará por certo a construção de uma nova visão, que impulsiona o SER à libertação.

É preciso descobrir aquilo que verdadeiramente nos motiva, nos dá alegria, energia, força, nos faz querer ser mais e melhor, nos une a um projeto que é maior que nós mesmos.

As correntes são pesadas, o hábito está muito arreigado, os outros podem não estar despertos e mesmo a dormir parecem-nos felizes. Necessitamos estar atentos, o perigo dos nossos limites espreita.

É com certeza um trabalho que levará toda uma vida, mas não podemos mais olhar para trás, pois de lá viemos e pouco construímos para que nos desse essa felicidade que tanto procuramos e que não se realiza sem um trabalho pessoal que cada ser deve empreender.

Só a confrontação com a nossa realidade, o conhecimento dos nossos limites, a vontade e coragem para sair deles, empreendendo atos nesse sentido, conduzem o Ser à necessidade de partilhar e entregar-se aos outros, por verdadeira compaixão, saindo aos poucos das margens de si e com isso servir ao Bem.