A 13 de Novembro de 2019, um dos grandes ciclistas de história, o francês Raymond Poulidor, faleceu. Foi um corredor notável, responsável por animar as corridas com os seus impetuosos ataques a quilómetros da meta e a sua feroz determinação, durante os longos 18 anos da sua carreira (1960-1977).
Apesar do seu grande talento nunca ganhou a maior das corridas por etapas, a Volta a França. Porém, teve uma presença de peso com os seus 8 pódios (três vezes 2.º classificado e cinco vezes 3.º). Teve a infelicidade de coincidir na época de dois corredores de exceção, autênticos terminators da estrada, Jacques Anquetil e Eddy Merckx, cada um deles com 5 vitórias na classificação geral da grand boucle.
Nascido a 15 de Abril de 1936, em Masbaraud-Mérignat, França, num meio pobre tendo, por isso, começado a trabalhar desde cedo na quinta dos seus pais. A vida não era fácil, pois, segundo as suas palavras “o solo era pobre e tínhamos que trabalhar arduamente; os ganhos da quinta eram escassos”. Nesta pequena localidade pouca coisa havia para fazer nos tempos livres: visitar feiras locais, participar em concursos de doces, em corridas de sacos ou, aquilo a que se dedicou com afinco, a corridas de bicicleta entre vilas.
Tendo ganho a sua primeira bicicleta aos 14 anos, iniciou a sua participação em corridas aos 16. O serviço militar veio interromper o seu contacto com o mundo do ciclismo. Foi colocado na Argélia, onde foi condutor. O seu corpo notou a falta de atividade física a que estava habituado, tenho engordado 12 kgs. Mas mal terminou a sua estância no exército, rapidamente recuperou a forma tendo ganho algumas corridas. Mas o que lhe chamou a atenção, curiosamente, não foi uma vitória, mas sim um segundo lugar obtido no GP de Peyrat-le-Château, onde ganhou 80,000 francos, um valor tão grande ganho numa corrida e que em seis anos de trabalho na quinta nunca tinha conseguido.
Torna-se profissional em 1960 correndo pela Mercier Team, equipe a que foi fiel durante toda a sua vida desportiva. Os próximos seis anos seriam marcados por uma das grandes rivalidades a nível desportivo, os seus embates na estrada com o também francês Jacques Anquetil. Nada animou e polarizou mais a sociedade francesa nessa época do que o confronto entre estes dois colossos do ciclismo.
Havia uma diferença de dois anos entre ambos e as suas personalidades não poderiam ser mais antagónicas. Anquetil tinha um carácter frio, cortês e calculista, Poulidor era algo temperamental não deixando de ser afável e impetuoso. Estas personalidades refletiam-se na maneira de correr: Anquetil procurava controlar as corridas de forma calculista, correndo o mínimo para não perder a distância em relação aos seus rivais mais próximos, respaldado por uma poderosa equipa, e guardando as suas energias para onde era realmente forte, o contrarrelógio, onde costumava fulminar os seus adversários. Por seu lado, Poulidor, era mais impetuoso, muitas vezes não se apoiava na equipa e realizava ataques surpresa que agitavam todo o pelotão, não pensando em poupar energias para as etapas seguintes.
A imprensa e uma França mais elitista tinham preferência por Anquetil devido às suas inúmeras vitórias, ao seu estilo altivo e à elegância com que montava a sua bicicleta. Por outro lado, o povo encontrava em Poulidor o seu ídolo pois identificavam no seu rosto tisnado e sulcado, bem como no constante esforço para ganhar, o árduo modo de vida que tinham nas suas terras, onde trabalhavam dia após dia sem descanso. Além disso, Poulidor, era possuidor de um bom senso que encantava as multidões. Afirmou ele numa ocasião que uma corrida, por mais dura que fosse, durava menos do que um dia a realizar a colheita.
A tal ponto ia o desgosto de grande parte do povo por Anquetil que este chegou a ser assobiado em algumas chegadas à meta. Para ultrapassar esta situação a equipe propôs a Anquetil que realizasse uma grande proeza de modo a que ganhasse a admiração e afeto das massas. Não seria uma tarefa fácil, pois implicava ganhar a clássica Paris-Bordéus no dia seguinte a vencer o Critério Dauphiné Liberé. Incrivelmente, Anquetil conseguiu a proeza, mas nem mesmo assim o coração do povo se voltou para ele.
A rivalidade chegou a polarizar a França de mal modo que estudos sociológicos foram realizados na época para analisar a situação.
O exemplo que nos fica de Raymond Poulidor é que, sem ganhar tantos títulos como Anquetil, com a sua simplicidade, combatividade e esforço constante mostrava que na vida não haveria que desistir, que a luta contra a adversidade era constante mas que havia que persistir. Esta maneira de ser captou o imaginário dos franceses, remetendo-os para as dificuldades do seu quotidiano.
Mesmo nos dias de hoje a figura de Raymond Poulidor é extremamente acarinhada pelos franceses. É certo que o nome de Jacques Anquetil figura nas listas de grandes vencedores da história do ciclismo e é respeitado por isso, mas é Poulidor quem mora no coração de grande parte dos franceses e apreciadores do ciclismo em geral.
Provavelmente porque ninguém consegue ficar indiferente à figura que nunca vestiu a camisola amarela da Volta à França, que nunca a ganhou, mas que sempre continuou a lutar por esse objetivo intensamente, de tal modo que aos 38 anos ainda consegue atingir o pódio da grand boucle, um feito notável para a época.
Na derrota, Poulidor sempre manteve uma postura correta. É um grande exemplo para o mundo de hoje, em que o que importa é ganhar, muitas vezes a qualquer preço. Esquece-se que no fenómeno desportivo perde-se mais do que se ganha e há que saber conviver com isso. Mais do que ganhar há que saber competir e dar o melhor de cada um e Raymond Poulidor é símbolo adequado desta maneira de ser.
Merci Raymond.