Os reis da antiguidade demonstraram um grande conhecimento da psicologia humana quando, para fazer rir os seus convidados, apresentaram-lhes um parlapatão deformado… disfarçado de rei. Talvez, se eles tivessem deixado o anão com roupas comuns, sem ostentações e num calmo silêncio, o público não teria uma resposta de gozo em relação a ele e é muito provável que nem sequer tivessem percebido a sua presença e, se o tivessem feito, ter-lhe-iam dirigido alguma palavra de encorajamento.
Penso que seria bom parar e pensar, mais frequentemente, o porquê do descrédito dos temas esotéricos e espirituais em geral… E como é difícil para nós expô-los sem que as pessoas, especialmente os jovens, gozem com eles ou simplesmente os escutem com uma curiosidade que é difícil de se traduzir em ação.
Numa das minhas últimas viagens pela Europa, num país nórdico, acabamos por passar a tarde em conversas frutíferas, alegres e filosóficas. Memórias e anedotas vieram à mente, assim como projetos e planos. Uma pequena cabeça suméria olhou-nos com os seus olhos circulares de espanto metafísico desde os seus 5.000 anos de antiguidade. De repente, alguém põe nas minhas mãos um livro em espanhol e me pergunta se eu o conheço. É uma biografia apologética de um hindu que fundou uma escola (?) de autorrealização no início do século XX, na cidade de Los Angeles, EUA; um hindu cujo nome não quero lembrar – como disse Cervantes sobre o lugar em La Mancha – e a quem darei o nome através das suas iniciais, P. Y. Sim… o livro passou pelas minhas mãos na minha já distante adolescência e teve um vago sabor a nada.
Mas como alguns discípulos tinham feito perguntas sobre os assuntos tratados no livro, olhámos rapidamente para ele e eu mesmo li alguns capítulos em voz alta… até que, rompendo as barreiras da seriedade com que tínhamos abordado o assunto, todos nós irrompemos em gargalhadas que chegaram até a lágrimas. Um velho discípulo meu, que conhece a minha vocação para as piadas e gafes, teve de se certificar, lendo com os próprios olhos o livro, pois não podia acreditar no que tinha ouvido.
Além dos nomes pomposos, ou melhor, alcunhas, com os quais nomearam os dirigentes daquela desordenada “ordem” – que, ignorando a modéstia mais básica, se identificavam como “a filha favorita da Grande Mãe”, “aquela que carrega a verdade suprema”, “o amigo de Deus”, “o Mestre inefável”, e outros semelhantes – apareceram fotografias de orientais e ocidentais a olharem-nos fixamente, com uma espécie de nojo metafísico e sorrisos de desprezo a partir dos mais altos cumes das suas “espiritualidades”.
“Aquele que não dorme” aparecia ao lado do “que não come” e havia uma fotografia do fundador, que tinha morrido voluntariamente… de um ataque cardíaco durante um jantar oferecido ao embaixador da Índia nos EUA.
Também foi feita referência ao facto de como um simples “mantra” e uma simples “respiração” permitiam que qualquer pessoa ficasse sem comida para toda a vida e assim atingisse a idade de 112 anos.
Em resposta a uma pergunta de um dos participantes de uma das reuniões do “âshram” durante um “Kumbha Mela”[1] sobre o porquê de estas técnicas não serem ensinadas ao povo da Índia, que já sofria de fome nos anos 30, um destes personagens disse-lhe para esperar alguns momentos porque tinha de perguntar a Deus. E o Supremo, de uma forma direta, respondeu que não se podia ensinar isso ao povo para não deixar os agricultores sem trabalho… Uma vez feita essa revelação, aparecem babados de felicidade, com uma fotografia de Ghandi intercalada.
E assim correm as páginas entre os elogios mútuos da infinita espiritualidade de todos os presentes, a maioria dos quais nunca mais reencarnaria.
Uma velhinha simpática explica-nos uma e outra vez as virtudes de viver sem comer nem dormir, embora confessando que já não sabe quando está acordada ou a dormir, que nunca sofreu nenhuma doença e que permanece sentada no seu “tapete sagrado”.
Festejando outra Kumbha Mela na época natalícia para celebrar ao fim da Segunda Guerra Mundial, apesar de o fazerem numa data equivocada, o fundador e os seus exaltados acólitos preveem que agora vem uma era de paz e concórdia entre todos os homens… e outra foto de Gandhi, alguns meses antes de ser morto a tiro.
Os nomes ridículos sucedem-se, incríveis desculpas são trocadas, e tudo se desenvolve como uma banda desenhada do Super-Homem, misturado com Mortadelo e Philemon e Condorito. Em comparação com isso, as histórias de Popeye, Pato Donald e o gato Felix são velhos tratados e os livros de Tintin e Asterix livros de missa.
Confesso que o riso daqueles que me acompanharam e o meu próprio riso acalmaram as nossas consciências, vendo que dentro da nossa pequenez, pelo menos não tínhamos gerado tais loucuras e aberrações “sobre-humanas”.
Alguém me pergunta com espanto o que responder aos discípulos que leram este livro tão promovido, sobre se aquele que não come alcança sabedoria superior, teofania, grande realização. Levanto os olhos e vejo novamente os olhos redondos da velha cabeça suméria; junto a ela há pedras, vasos, vidros. Eu pergunto se estes objetos comem. Disseram-me que não o fazem. Eu respondo-lhes. “E pelo simples facto de as pedras não comerem, serão estas superiores aos humanos que comem?”.
Todos nos rimos… Mas tínhamos roçado uma verdade.
Como é belo ser filósofo!
Jorge Ángel Livraga
Publicado em Biblioteca Nueva Acrópolis em 10-12-2019
Anotações
[1] Uma das maiores festividades do hinduísmo, que consiste numa peregrinação onde milhões de fiéis vão a certos rios sagrados da Índia colocando colares de flores e velas nas margens.