Os mitos contêm no seu interior a capacidade de transportar o ser humano para uma maior compreensão da sua natureza mais profunda. Narrado sobre uma linha de tempo que nos transpõe, os mitos retratam histórias cujo cenário apenas podemos encontrar dentro de nós. Existe assim uma diferença entre História e Mito. O primeiro narra os acontecimentos ocorridos no plano cronológico, físico e terreno. O segundo narra os acontecimentos dentro de um plano transcendente e metafísico. A História conta a história da existência humana. Os mitos contam a história da alma humana.

Existe um mito, cujo relato foi dado por Apoleio, onde podemos encontrar não só a beleza própria desta narrativa, mas também uma compreensão sobre o sentido da vida desde a perspetiva da alma humana. O mito de Psiké, cuja escultura podemos encontrar no museu do Louvre, tem como personagens centrais Eros, Psiké e as suas irmãs. Todos os mitos estão revestidos por símbolos cujos véus são destapados pelos olhos da intuição e do pensamento mais profundo. Captar a essência do mito com os olhos do mundo profano revestido de superficialidade ou intelectualidade impede a captação da essência do mesmo.

De uma forma breve, o mito de psiké narra a dificuldade de uma jovem com elevada pureza e beleza na procura do Amor Verdadeiro. Ante o seu desespero, Zeus, o Deus dos Deuses, concedeu-lhe este desejo colocando-a pelas mãos de Zéfiro, e ante a advertência das suas irmãs, num palácio majestoso. Psiké, desconhecendo aquele local nunca imaginado, encaminhou-se para uma voz que lhe dizia estar na sua casa. Mais tarde e após caminhar nesse local a jovem deparou-se com uma figura masculina de voz doce, mas cujo rosto não conseguia ver. Psiké tinha finalmente encontrado o seu grande amor Eros, com o qual aceitou viver sob a condição de nunca poder ver o seu rosto. Com ele ficou neste palácio em grande harmonia e profunda alegria sabendo, no entanto, que todas as manhãs Eros saia do palácio apenas regressando de noite, momento no qual ficariam juntos.

Apesar da sua vida no palácio, Psike começou a sentir saudades da família e das suas irmãs pedindo insistentemente a Eros uma oportunidade para as ver. Eros mostrou resistência chamando atenção a Psiké do perigo que poderia suceder neste encontro, mas vendo a sua amada tão triste cedeu ao seu pedido. Com a chegada alegre das irmãs Psiké partilhou a sua vida com grande entusiasmo não esperando a reação de dúvida e inveja perante o facto da jovem não poder ver o rosto do seu amado deixando no coração de Psiké a perigosa semente da dúvida.

Na continuação do mito, e após a dúvida, Psiké foi levada pela curiosidade aproximando uma lamparina junto a Eros enquanto este dormia com o propósito de poder observar o seu rosto sabendo assim quem ele seria. Mas nesta aproximação Psike acordou Eros que, queimado pelo óleo da lamparina, acordou indignado com a traição da sua amada cujo Amor era vivido com tanta pureza. Nesse mesmo momento Psiké percebeu o seu erro, sabendo que perderia Eros para sempre.

Após a separação de Psiké e Eros, a jovem caiu na matéria, no plano de Soma com todas as suas sombras, tristezas e desesperos da mesma forma que Adão e Eva acabam por sair do paraíso acompanhados pelo conhecimento mas ausentes da conexão transcendente culminando na perda da felicidade e da imortalidade.

Adão e Eva no Paraíso terrestre, Tiziano. Domínio Público

Análise Simbólica do Mito

 A estrutura dos mitos, compreendem na sua constituição a representação dos três mundos de Platão sobre o qual estaria constituída a natureza Humana. Neste caso, poderíamos numa primeira análise integrar as personagens do mito na seguinte estrutura:

  • Nous representado por Eros, o Espírito
  • Psiké representada pela jovem, a Alma
  • Soma representado pelas irmãs, a Ilusão

Sob esta perspetiva simbólica, o mito de Psiké pode retratar na sua essência a interessante história da Alma Humana que repleta de pureza e na procura transcendente uniu-se a Eros através de uma dádiva Divina representada por Zeus. Esta ideia, retratada em muitos mitos e livros sagrados, como a passagem de Adão e Eva, representa o paraíso no qual o Espírito e a Alma habitariam no “início dos tempos” unidos pelo seu Amor puro e verdadeiro. A confiança apresentou-se neste mito como um elemento central desta união cujo elo foi rompido pela dúvida apresentada pelas irmãs.

No entanto, e apesar da dúvida ter gerado em Psiké um sentimento de desconfiança e receio, o reverso desta medalha, que seria a “não dúvida”, poderia levar à estagnação pois existe uma relação intrínseca ao Ser Humano entre o acto de questionar-se e movimentar-se. Desta forma, o pensamento, simbolizado pelas irmãs de psiké e pela maçã entregue a Adão pela serpente (cujo simbolismo também nos remete à ideia da Sabedoria) apresenta a forma de uma moeda cujos lados refletem a mente superior e a mente inferior tal como os Egípcios representavam as gémeas Ab e Ba no Papiro de Ani. No caso de Psiké o pensamento refletiu o lado da moeda cuja face a conectou com o mundo das dúvidas e das sombras.

Após esta queda, simbolizando também a “queda do anjo” uma ideia muito conhecida, Psiké iniciou o seu caminho inverso, ou seja, o caminho de subida da Alma no seu retorno a “casa”. É neste momento que o Ser Humano acompanhado pela sua Alma perdida (Psiké) dirige a sua vontade para a união de algo que já conheceu mas cuja memória foi apagada, tal como conta o Platão no seu Mito de Er, com o rio do esquecimento, iniciando assim a jornada do Herói, o caminho do solitário peregrino.

Psiké, levada pela força do Amor atravessa nesta subida um conjunto de provas lançadas por Vénus, cujos ciúmes fazem lançar sobre a jovem tarefas insuperáveis personificando o próprio karma e sobre as quais a jovem, simbolizando a alma de cada ser humano vai conseguindo superar. A partir do momento em que Psiké ousa, avança e não teme os perigos da sua aventura vê-se auxiliada por forças invisíveis que, ante o espanto de Vénus, ajudam a jovem alma.

No final, e perante o esforço das provas superadas o Espírito, representado por Eros, voa docemente sobre Psiké pegando-a sobre os seus braços restituindo-lhe assim a imortalidade perdida. Tal como Ulisses regressa a Ítaca para junto da sua Penélope cuja espera não desvalesse, também Psiké regressa para junto de Eros superando todas as suas provas fazendo-a assim merecedora desta Divina Transcendência.

Primeiro plano de Psiké reanimada pelo beijo de Eros, Antonio Canova, Museu do Louvre, Paris. Domínio Público

O mito de Psiké encerra na sua simbologia a Beleza do Sentido da Vida. Este regresso ao nosso interior mais profundo onde habita o Eros, esse Amor que nunca poderá ser encontrado no mundo material, mas apenas no plano transcendente por todos aqueles que ousem avançar na aventura de conhecer-se e dominar-se um pouco melhor.

Isabel Areias