Posto que os males residem aqui e “por necessidade andam a rondar esta região” e posto que a alma deseja fugir dos males, “há que fugir daqui.”

I 2, 1

“A meta onde devemos dirigir-nos é o Bem e o Princípio Supremo.”

I 3, 1

A subida “daqui para o alto”, da qual nos falam Platão e Plotino, é o processo através do qual nos assemelhamos cada vez mais com Deus, o Bem divino e absoluto. Isso equivale a conquistar o nosso verdadeiro Eu, que é uno com o Eu divino.

Existem, assim, várias etapas ou degraus através dos quais sobe o peregrino, que elencamos desta forma:

  1. As virtudes cívicas, que consistem no controlo dos apetites e emoções do composto animal (corpo e alma sensitiva), bem como a ordenação e disciplina interior.
  2. As virtudes purificativas, que resultam na purificação da alma, tanto animal como humana, até alcançar um estado de perfeita pureza e separação afetiva do corpo.
  3. As virtudes contemplativas, que geram a iluminação pelas reminiscências da alma.
  4. O desfecho e a conversão da alma à inteligência capaz de se fundir no Uno.

Vejamos o que nos relata Plotino nas suas Enéadas acerca destes Degraus da Virtude.

 

As virtudes cívicas

“A sabedoria, na parte racional, a coragem na irascível, a moderação, consistente numa certa concórdia e harmonia da parte apetitiva com a racional, e a justiça, consistente no comum desempenho da função própria de cada uma dessas partes no que respeita a mandar e ser mandado.”

I 2, 1

Coruja observando a vida urbana , símbolo da sabedoria na natureza. Creative Commons

De acordo com a tradição deixada por Platão, as virtudes cívicas são quatro: a sabedoria, a coragem, a moderação e a justiça. Estas são as virtudes que fazem o nosso eu terreno assemelhar-se tanto quanto é possível a um reflexo do mundo inteligível. Isto é possível pois todas resultam da aplicação de uma mesma Medida, ou seja, de um sentido ético profundo da alma humana, proveniente da Inteligência, que assim consegue conduzir todos os pensamentos, emoções e ações pelo caminho medido, isto é, o caminho reto e virtuoso.

As virtudes cívicas fazem-nos realmente ordenados e melhores porque impõem medida às paixões e eliminam as opiniões falsas.”

I 2, 2

Alegoria da Prudência, Luca Giordano. Domínio Público

Sabedoria (phrónesis) é a virtude própria da alma racional. É uma visão correta, ponderada e prudente de todas as circunstâncias, de todos os atos, de todas as opiniões. É uma sabedoria prática que se atinge através da reflexão profunda, da seleção criteriosa dos conceitos, desvinculando-os de qualquer motivo afetivo, de qualquer egoísmo, desejo ou apego. A alma não pode ver a verdade nem agir bem enquanto a luz passar pela lente deformadora do nosso psiquismo ondulante e inconstante. Tornamo-nos sábios aplicando a Medida intuída que nos chega desde o alto. Cada ato sábio é um ato medido, fazendo ecoar no eu profundo o entendimento para cada gesto. Daí que prudência seja sinónimo de sabedoria.

Coragem (andreia) dirige-se ao estabelecimento da medida na nossa alma sensitiva e irascível, ou seja, no nosso mundo emocional. É neste plano que surge o medo e a pressão influenciadora das circunstâncias externas. De modo a manter o critério estabelecido na razão pelo uso da sabedoria, a alma não pode desviar-se do seu caminho como resultado daquilo que acontece no exterior a ela. O sentido de Medida, no plano das emoções, está em manter o rumo daquilo que é justo, bom e verdadeiro. Esta virtude reflete-se tanto no rumo das nossas ações como no nosso pensamento, isto é, quando não há coragem, tanto alteramos o curso dos atos como o curso da mente. Valentia, fortaleza interior, convicção, determinação, são todas virtudes subsidiárias da escalada da alma em direção ao alto. Coragem é uma força para o Bem. Uma vez no Alto, por eterno ser, desaparece até o medo da morte.

Moderação (sôphrosýnê) determina uma Medida na relação da alma com o corpo. Tudo o que o corpo peça, todos os seus instintos e apetites, devem ser educados na moderação reflexa da razão. É natural de uma alma ainda apegada ao corpo deixar-se atrair pela beleza que se pode captar através dos sentidos. Surge daí, de forma espontânea, uma atração para com o objeto ou corpo belo que nos pode conferir prazer. Esse prazer sensível, uma vez alimentado sem moderação, produz um vínculo cada vez maior da alma com o corpo, o que confere um movimento oposto àquele que estamos a procurar através das virtudes: uma subida para o alto. A moderação dos impulsos que nos encaminham para os prazeres sensíveis é o movimento que treina a alma em desvincular-se do corpo, permitindo-lhe abrir espaço dentro de si para a captação de uma beleza e de um prazer que não dependem do mundo exterior.

Justiça (dikaiosýnê), por último, é o resultado e a condição para uma harmonia entre todos os outros planos e respetivas virtudes. Há justiça dentro de nós quando no governo interior está a razão, ao mesmo tempo que as emoções e o corpo se deixam governar. Isto pressupõe a criação de um sistema piramidal de valores, cujo vértice superior é pontífice de uma comunicação com o mundo inteligível (a sabedoria da mente superior), cujas dimensões intermédias estão fortalecidas em caráter e virtuosa virilidade, sem cobardias nem tendências desviantes do caminho justo (a coragem da alma sensitiva), e cujas dimensões inferiores respondem com responsabilidade e disciplina aos ditames de todas as ordenações superiores (a moderação nos prazeres sensíveis).

Esta virtude, a justiça, alinha todas as dimensões numa verticalidade apoiada em sólidos fundamentos e confere um impulso ascendente que permite mergulhar com maior segurança no mundo inteligível.

Platão, Rafael. Domínio Público

 

As virtudes purificadoras

“Se uma coisa era boa antes do estado de impureza, basta-lhe a purificação.”

I 2

Na transformação interior que nos leva ao alto através de uma semelhança crescente com Deus, Plotino adverte que as virtudes cívicas são necessárias apenas na medida em que temos uma personalidade terrena, ou seja, um corpo e uma alma animal. Como Deus não tem esta personalidade, também não pode ter estas virtudes, pelo que a semelhança completa não é conseguida através destes aspetos. Elas são apenas um passo inicial para ir mais além.

As virtudes purificadoras devem levar-nos, através da purificação paulatina, ao estado de pureza, ou seja, àquele estado em que já nada mais existe na consciência que pertença ao inferior. O nosso Eu humano, sendo imortal e da mesma natureza do mundo inteligível, existiu em estado puro antes de nascer. A alma viajou mergulhada pelos arquétipos, uma vez que o bem e a beleza estão impregnados na sua essência. Foi ao entrar no corpo que a alma se tingiu e se obscureceu com a matéria. Atingir o bem, portanto, não é um conjunto de ações que se possam fazer com o corpo, nem uma disposição de caráter que se possa produzir, nem um tipo de conhecimento que se possa obter, por mais superior que seja. Atingir o bem é recuperar o Bem que existe na essência da nossa alma, a qual só pode ser conseguida purificando-a de tudo o que lhe seja alheio, ou seja, separando-a do corpo.

Duas virtudes são importantes para essa purificação: centralidade e verticalidade.

A alma pode separar-se do corpo concentrando-se em si mesma.”

I 2, 5

Tendo conquistado uma estabilidade nas virtudes cívicas, iniciamos um processo de purificação, também chamado de ascese, mergulhando no interior da nossa alma e concentrando naquilo que é a sua essência. Para conseguir a perfeita concentração e a sua impassibilidade, é necessária uma purificação, ou seja, um afastamento das seguintes afeções da alma:

– Prazeres desnecessários: o prazer sensível é, como já foi explicado acima, um movimento centrífugo da alma, que a direciona para fora de si mesma. Existem, contudo, prazeres necessários e aceitáveis para o filósofo, sem que por isso, necessariamente, se veja desviado do seu centro.
– Dores e sofrimentos: são realidades perante as quais se dificulta o processo de chegar e manter-se no centro da alma. Sendo, porém, algumas dores inevitáveis, está ao alcance do filósofo desvincular-se do veículo da dor, “suportando-a docemente”, sem se deixar arrastar por ela.
– Ira: o recomendado é eliminá-la completamente. Não sendo possível, deve ser mantida controlada e relegada à parte inferior da alma, desde que “essa ira indeliberada seja escassa e débil.”
– Medo: deve ser eliminado completamente, excepto na forma de advertência do perigo.
– Desejo: nenhum que seja vil pode ser permitido. Evitar desejo de comida e bebida, dos prazeres venérios, ou de outros desejos naturais. Se os houver, apenas quando nos surpreendem em imaginação.

Em suma, a alma será pura de tudo isso e desejará tornar pura também a sua parte irracional para que nem mesmo seja impactada; todavia, se o for, que não seja fortemente, mas que os golpes sejam poucos e imediatamente desfeitos pela proximidade da alma [racional].”

I 2, 5

Num homem assim purificado, cada uma das virtudes cívicas anteriormente conquistadas converte-se num princípio superior do mundo inteligível. A virtude é uma faculdade da alma ligada ao corpo. Ao entrar no mundo inteligível, adquire-se um outro tipo de capacidades, “porque tampouco a Justiça em si mesma nem nenhuma das demais é virtude, a não ser ao modo de Modelo.” – I 2, 6

Inicialmente, as virtudes crescem como forças a partir de sementes que estão na alma em potência, reflexo de princípios inteligíveis, sendo nutridas e guiadas por uma estrela que brilha no céu distante do nosso mundo interior, sempre que olhamos para cima. Ao chegar ao estado final de virtude e de pureza, aproximamo-nos dessas estrelas-guias, formas-ideais da virtude, e convertendo-nos na sua própria luz, a mesma que nos guiou para o alto.

A sabedoria e a prudência [transformam-se] na contemplação das coisas que possui a Inteligência, a justiça superior da alma consiste numa atividade orientada à Inteligência; a sua moderação na conversão interior à Inteligência; a sua coragem, na impassibilidade semelhante à daquele que contempla, que é impassível por natureza.”

I 2, 5

Com as virtudes cívicas, construímos os degraus pelos quais vamos subindo até ao limiar do mundo inteligível, o pórtico a partir do qual iniciamos a verdadeira contemplação, à medida que nos purificamos de todas as sombras do mundo que acabamos de deixar para trás.

Depois, aliada à centralização da consciência na alma, desprendida já de todas as afeições externas, adquirindo uma perfeita impassibilidade da mente, deve também imprimir-se um resoluto impulso ascendente e vertical, através do mundo inteligível, em direção ao Uno.

 

As virtudes contemplativas

“Tendo chegado à região inteligível e colocado nela o seu assento, é preciso caminhar até chegar ao extremo dessa região, que coincide precisamente com o final da viagem.”

I 3, 1

Plotino enumera três vias para chegar ao Uno: o amor, a música e a filosofia. Em todas elas existe uma etapa, próxima do final, na qual a contemplação das essências inteligíveis é um passo fundamental.

Ao músico, com grande sensibilidade para os sons, há que ensiná-lo a captar a Harmonia Inteligível. Ao amoroso, há que conduzi-lo desde a beleza corporal à beleza da moral e, por fim, à Beleza inteligível, absoluta e perfeita em si mesma. O filósofo, por sua vez, não necessita de um processo prévio de separação daquilo que é corpóreo, como os dois anteriores. Precisa apenas de um guia para desenvolver nele a virtude perfeita e iniciá-lo na matemática e na dialética. Estes são os três “destinados à subida”. A dialética coloca “fim à evagação pelo sensível, instala-se no inteligível, e aí, rejeitando a falsidade, empenha-se em alimentar a alma na chamada Planície da Verdade” (I 3, 4).

A alma rompendo os laços que prendem a terra, Pierre-Paul Prud’hon. Domínio Público

Aquela disciplina exercita a alma numa ascensão até ao mundo superior, mas não ignorando a existência nem fechando os olhos a todos os outros mundos inferiores. A ascese necessária à contemplação do mundo divino não é uma ascese do corpo, ou seja, não representa um isolamento em relação a todas as coisas exteriores, no sentido de um simples afastamento físico. A ascese trata-se de um movimento para o interior, gerando uma perspectiva mais elevada e totalmente desapegada do entorno, ainda que nele se mantenha a nossa presença física.

Com efeito, há três áreas principais na qual a dialética é fundamental, e apenas uma delas diz respeito à contemplação direta do Bem supremo. Falamos da contemplação da natureza e da contemplação da ética, ou seja, dos hábitos humanos. Natureza – Ser Humano – Uno: eis as realidades que conformam a escada vertical da contemplação.

Contemplação da natureza: é aquela atividade da alma que consegue perceber e captar a essência dos seres, do movimento dos astros e das leis do universo. A compreensão profunda da natureza não se dá através dos sentidos, mas organizando a informação dos sentidos de acordo com os princípios inteligíveis que surgem de forma inata na nossa alma, porque “a inteligência proporciona princípios evidentes a quem seja capaz de os receber.” (I 3, 5)

Contemplação da ética: o despertar interior leva-nos a uma melhoria da sensibilidade para a retidão dos pensamentos e a propriedade das ações. A ética é uma questão de prática, gerando hábitos cuja bondade está em serem guiados pela nossa alma racional. Refletir sobre a conduta dos homens, as suas motivações, os seus hábitos, o seu caráter, antevendo a beleza moral das suas almas, ajuda-nos a desenvolver as virtudes morais que nos aproximam do Bem, não só interior mas também exterior. “Recolhe-te em ti mesmo e vê; e se ainda não te vires belo, como o escultor de uma estátua que deve tornar-se bela (…) não cesses de moldar a estátua de ti mesmo, até que resplandeça em ti o esplendor deiforme da virtude, até que vejas a temperança assentada em seu trono sagrado.” (I 6, 9). Para Plotino, não é possível ser sábio nem atingir a contemplação superior sem uma prévia ou simultânea virtude nos planos inferiores.

Contemplação dos inteligíveis: existe uma beleza que só pode ser vista com os olhos da inteligência. Mas esses olhos não podem ver plenamente enquanto não ascenderem através dos espessos véus do mundo psicológico e entrarem plenamente na luz do mundo inteligível. Aí, a alma “experimenta um deleite, uma alegria e um assombro bem maiores do que os experimentados diante das belezas precedentes, pois nesse caso contemplam o reino da verdadeira Beleza” (I 6, 4). O Amor é a grande força que ilumina a alma e a atrai inexoravelmente para a grandiosa beleza do Ser, pois o Ser supremo é também a suprema Beleza e o supremo Bem, pelos quais somos infinitamente atraídos:

“Quem quer que o veja, quanto amor sente! Quanto desejo de se unir a ele! Que assombro! Que imenso deleite! Quem ainda não o viu pode desejá-lo como um bem; mas quem o vê ama-o e reverencia-o como a própria Beleza, enche-se de maravilhamento e deleite, é assaltado por um benéfico estupor, ama-o com um amor verdadeiro e desejos ardentes, ri de todos os outros amores e despreza as coisas que antes achava belas.”

I 6, 7

 

Nota: as citações acima são retiradas da Enéadas de Plotino

Imagem de destaque: Escada em espiral no Vaticano. Creative Commons