“Do mesmo modo que aqui os enamorados se configuram à semelhança do seu amado (…) e assim é que poderão unir-se a eles, assim também a alma está prendada do Uno e movida pelo amor desde o princípio.” – Enéadas VI, 7, 31
Um dos mais famosos poemas de Luís e Camões, Transforma-se o amor na cousa amada, de nítida inspiração neoplatónica, resume a última etapa da alma na sua transfiguração divina de fusão com o Uno.
Poema retirado da edição das Obras de Luís de Camões de 1720.[i]
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que, como um acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma:
Está no pensamento como ideia,
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
Através do amor divino, atraído por aquilo que, na verdade, é ele mesmo – o Uno – ergue-se acima de todos os desejos, pois só se procura a ele próprio:
“E ele mesmo que é amável é Amor, Amor de si mesmo, pois não é belo de outro modo que de por si mesmo e em si mesmo.”
“O Uno como que se adentra em si mesmo e como que se ama a si mesmo, Luminosidade pura, sendo ele mesmo o mesmíssimo que ama.”
“Transforma-se o amador na cousa amada” significa, portanto, que a alma, impregnada do amor pelas essências inteligíveis, se transforma nas próprias essências que contempla:
“Não se trata já de duas coisas extrínsecas, contemplante e contemplado, mas que o vidente de vista penetrante possui dentro de si o objeto visto.”
Nessa visão suprema da beleza do mundo inteligível já não existem sensações provenientes dos sentidos, e tampouco existem desejos do corpo, pois a alma elevou-se a uma região totalmente imaterial, que é consubstancial à própria essência da alma:
“Não é que primeiro [a alma] desejasse fazer-se inteligência e depois se fizesse inteligência mediante o desejo entre o sujeito e a inteligência gerada. Não há desejo em absoluto. (…) Não havia objeto algum ao qual tender.”
Nada há “mais que desejar” porque, no verso camoniano, “em mim está a parte desejada”. O desejo alimenta-se da divisão, da separação entre quem deseja e o desejado. Há um objeto exterior para o desejo. O amor, por outro lado, o amor divino de que nos fala Plotino, é a força que leva à união, à comunhão com o Ser interno, onde desapareçam todas as divisões e separações, onde se reencontra o Uno ao qual “tal alma está ligada”.
É através desse Amor, unindo-se a essa “cousa amada”, que por fim a alma pode descansar do seu longo percurso. O Uno é o princípio e fim do caminho, é o lugar do eterno repouso, é a última paz, conseguida pela alma que se reencontra com a sua própria essência.
“É no Uno onde a alma descansa.”
A “linda e pura semideia” – semideia significa semideusa – é, certamente, Afrodite, ou seja, a Alma do Mundo, mãe de todas as almas, que refere Plotino:
“Zeus há-de ser idêntico à Inteligência, enquanto que Afrodite, que é a sua filha, nascida dele e com ele, haverá de ser identificada com a Alma.”
Ou então:
“A Afrodite Celeste é uma Alma diviníssima que, nascida diretamente – pura de pura – da Inteligência (…) foi designada simbolicamente de “sem mãe”. E com toda a razão pode ser chamada deusa e não daimon, pois está exempta de matéria e permanece pura em si mesma.”

Aphrodite Urania, de Christian Griepenkerl, 1878. Domínio Público
Nesta Alma do Mundo participam todas as almas humanas, “como um acidente em seu sujeito”:
“Alma total tem um Amor total e cada alma particular o seu amor particular. E porquanto a relação que guarda cada alma particular com a total não é a de separada dela, mas a de compreendida nela de tal modo que todas sejam uma só, essa mesma relação guardará também cada amor particular com o Amor universal.”
O Amor, como nos ensina Plotino, é filho de Poros (abundância) e de Pénia (carência), que representam, respetivamente, a Forma e a Matéria. A Forma pertence ao mundo das Ideias, às quais a matéria vai buscando numa dança perpétua de aperfeiçoamento. O Amor, herda de Pénia o desejo, ou seja, a necessidade daquilo que lhe falta; de Poros, obtém a inspiração para se unir à Ideia perfeita que já está em si mesmo. Vejamos a interpretação de Plotino do mito (Enéadas III 5, 9):
“O Amor é uma coisa mista porque, por uma parte, participa da indigência pelo que deseja saturar-se, mas, por outra, não é impartícipe da abundância.” Diz-se, pois, que é filho de Poros e de Pénia porquanto a deficiência e o desejo, bem como a recordação das razões, juntando-se na alma, geraram essa atividade dirigida para o Bem que é o Amor.
“Poros é uma Razão representativa do conteúdo do mundo inteligível e da Inteligência. (…) Pénia é a matéria porque também a matéria é deficiente em tudo.”
A alma do Poeta, então, não procura na Terra a sua amada, não nos fala de nenhuma dama nem de um amor corporal. Procura em amor a Alma do Mundo, a deusa que “está no pensamento como ideia”, sabendo que é a sua alma quem tem que se elevar e transformar à sua imagem e semelhança, do mesmo modo que a matéria se deixa conformar pelas formas.
Na sua íntima e profunda natureza, sente “o vivo e puro amor de que sou feito”.
Henrique Cachetas
[i] Obras do grande Luis de Camões, principe dos poetas heroycos, & lyricos de Hespanha, novamente dadas a luz com os seus Lusidas, 1720. https://archive.org/details/obrasdograndelui00cam/page/2/mode/2up
Imagem de destaque: Plotino e Camões Creative Commons, Domínio Público.