Giordano Bruno, filósofo e mártir do livre pensamento no século XVI e muito avançado para o seu tempo, explica que: A poesia não nasce das regras, senão muito acidentalmente. São as regras que derivam da poesia; e por isso há tantos géneros e espécies de regras verdadeiros quantos géneros e espécies de verdadeiros poetas.

Vamos atrás da pista deste livro em que se descreve a tablatura de normas e erros na obra de Wagner. Acompanhamos a obra monumental de Roso de Luna, Wagner mitólogo e ocultista, quando menciona a instituição, na cidade de Nuremberg, dos mestres cantores:

“O maestro Borrell acrescenta, por fim, na sua preciosa obra dedicada ao estudo desses mestres cantores:

Um simples conto de Hoffman, intitulado O tanoeiro de Nuremberg, sugeriu a Wagner a ideia primária do argumento da obra, evocando na sua alma de artista e de patriota uma completa visão da velha Alemanha, com toda a sua organização social, as suas lutas poéticas e as suas tradições lendárias.

E. T. A. Hoffmann, autorretrato. Domínio Público

Já inserido no ponto de vista histórico do século XVI, ansiava por conhecer a origem e o mecanismo da instituição dos mestres cantores, e estudou-os a fundo no interessante livro de Juan Cristóbal Wagenseil, intitulado De Sacri Romani Imperii Libera Civitate Noribergensi commentatio, impresso em Altdorf, em 1697. Nas suas páginas encontrou toda a documentação de que precisava, e fez viver mentalmente numa sociedade e num tempo tão distante do nosso. Este antigo fólio foi, portanto, a principal fonte do poema wagneriano. O domínio do assunto levou-o, insensivelmente, a penetrar nas profundezas da biografia de Hans Sachs, seu protagonista, e a rever, com a avidez de um bibliotecário, a riquíssima obra poética do ilustre meistersinger, espalhada pelos arquivos da Alemanha.

A análise dos leitmotivs1deste poema musical, e mais especialmente da Abertura, mostra que a chave para o compreender é a tensão e a harmonia entre a força centrífuga da inspiração e o génio, da vida, em definitivo, e a força centrípeta da tradição e a forma, que a aprisiona, mas onde pode encontrar a sua plenitude e transfigurar-se em luz, em beleza pura. O leitmotiv dos Mestres Cantores é a tradição, o poder e a estabilidade que há nela, é a forma que sustenta sobre o mundo, e que o cria, o cristaliza, ao cristalizar a verdade e a vida, da mesma forma que a natureza fixa, converte em árvore e frutos a energia da primavera. O leitmotiv que se opõe e equilibra o da autoridade dos Mestres é o do amor e do desejo, com quartas perfeitas descendentes, o mesmo tema que usa Wagner para expressar a impetuosidade e o amor de Siegfried no Anel do Nibelungo.

Siegfried encontra a mulher repousando sobre a rocha, Arthur Rackham. Domínio Público

Como ensinou o filósofo Jorge Ángel Livraga, esses são os dois poderes ou forças que se harmonizam na natureza: a obediência e a liberdade, a razão e o sentimento, gerando as primeiras formas que permitem a sua expressão e o segundo espaço ou vida que corre entre elas, como numa construção arquitetónica ou num esqueleto ou numa cadeia em que se harmonizam o rígido e o articulado, ou na matemática os números e os não-números que abrem o espaço para a vida correr entre eles. O sábio já mencionado Sri Ram no seu livro Aproximação à Realidade, explica-o com clareza cristalina:

A poesia da vida não é uma fantasia, mas uma verdade. Devemos primeiro partir esta carapaça, para que tenhamos uma consciência ou perceção livre ou delicada o suficiente para captar as formas puras da Verdade para as apreender, que são pronunciadas para nós neste mundo externo em sílabas de Beleza. Em vez de poesia, poderia chamar-se música, e perceber nessa música um modelo arquitetónico perfeito; um modelo que está subjacente em tudo o que está acontecendo. A arquitetura tem sido chamada de música congelada. A arquitetura é objetiva; a música é essencialmente subjetiva, e na beleza perfeita se unem o sujeito e o objeto. O significado que está na forma brota através da própria forma. O significado é o sujeito que está presente nesse objeto formal. Quando um objeto, expressão ou movimento, é um objeto de perfeita beleza, a forma, que essencialmente é uma limitação, deixa de o ser e começa a ampliar-se com o seu significado intrínseco. Quando uma forma é perfeitamente bela, começa a expressar a luz que tem dentro.

Em Os Mestres de Nuremberg, a Reta Medida, ou a qualidade harmónica (satva) entre esses dois extremos está em Hans Sach, uma personagem histórica real, e que o próprio Goethe reconheceria como seu antecessor intelectual. Este Hans Sach, sapateiro, filósofo, místico, poeta e músico, é o génio mais distinto e recordado desta Ordem dos Mestres em Nuremberg. Citamos novamente Borrell2 no seu livro3:

Para dar uma pequena ideia da extraordinária produção de Hans Sachs, diremos que é surpreendente a diversidade de assuntos tratados nas suas canções. De natureza religiosa, escreveu paráfrases sobre os Mandamentos e o Credo, interpretações de passagens do Antigo Testamento, meditações sobre os Evangelhos e sobre a vida dos santos; colocou, também, em verso, as Sentenças de Salomão e todos os Salmos da Igreja. Na ordem profana, tem inúmeras transcrições de poetas clássicos, sobretudo Virgílio, Plutarco e Tito Lívio; farsas satíricas, que ridiculizam os costumes alemães da época; um belo fluxo, em quantidade e qualidade, das suas célebres Schwanke ou contos populares de graciosa invenção e forma desenvolta, composições de verdadeiro caráter dramático (lendas, tragédias, peças cómicas), algumas das quais representavam os mesmos meistersingers na igreja de Santa Marta e nos dias de festa do repique.

Proibia a Tablatura que se imprimissem os bar [poemas] destinados à Singschüle, mas além destas foram preservadas infinitas composições de Sachs, que são quase sempre acompanhadas por uma vinheta gravada em madeira grosseiramente executada, mas nunca sem graça, expressão e caráter.

Com apenas um número se pode dar uma ideia da fecundidade poética de Hans Sachs. Um seu biógrafo, Schweiter, diz que são mais de 6.100 composições de todos os géneros escritas pelo mais famoso dos meistersingers, e acrescenta: «Avaliando-as aproximadamente, esse número de obras corresponde ao colossal número de 500.000 versos. Meio milhão!

“Entre esta copiosa literatura de Hans Sachs destaca-se uma obra que teve grande repercussão e à qual deveu o início da sua popularidade. Toda a Alemanha a aprendeu de cor, acabou por publicá-la e a ergueu como bandeira de uma nova seita religiosa. Do fundo do claustro de Wittenberg, o frade Martinho Lutero acabava de expor o plano da Reforma. Em 1523, Hans Sachs presta homenagem à nascente doutrina por meio de uma canção heroica, composta por 600 versos, e intitulada O rouxinol de Wittenberg, em cuja primeira parte é sintetizada o objeto da composição.

Hans Sachs, Hugo Bürkner. Domínio Público

Para cima! – diz ele – a noite morre4, a luz se aproxima. Ouço no abrigo o canto divino de um rouxinol, cuja voz se espalha pelas montanhas e planícies. Diante da sua música celestial junta-se o rebanho de ovelhas, desviado durante a noite pelo descuido dos seus indignos guardiães, o leão e os lobos. Em vão as feras tentam agarrar o cantor gentil ou apagar a canção com os seus uivos. O rebanho finalmente encontrou o seu caminho de salvação.”

Como se vê, o simbolismo cândido e infantil da composição não poderia ser mais transparente: o Papa Leão X, os monges e sacerdotes, são representados pelo leão e os lobos, pastores do rebanho; a cristandade é simbolizada pelas submissas e mal dirigidas ovelhas, e o rouxinol, que anuncia a aurora, que conduz os fiéis pelo caminho certo e abafa os uivos das feras, não é outro que o próprio reformador Martinho Lutero. Esta obra de Sachs foi constituída desde o início num verdadeiro hino da nova religião e foi adotada por todos os luteranos como uma espécie de Credo. Fazendo o citado Schweiter um cuidadoso estudo da composição e comentando-a estrofe por estrofe, diz que a tradução e o resumo detalhado não podem expressar todo o fogo com que está escrita esta poderosa diatribe, nem o impulso da sua versificação sóbria e vigorosa “semelhante ao movimento de um martelo de aço manejado por um braço nervoso que golpeia e levanta faíscas.

No coro de aclamação do terceiro ato de Os Mestres, Wagner usou a primeira estrofe de O Rouxinol de Wittenberg, prestando assim uma homenagem de admiração ao histórico protagonista da sua obra magistral.

Outra lição magistral de Estética é encontrada quando Hans Sachs ajuda Walther, de modo que, sem renunciar ao seu génio poético, construa um bar (poema na tradição dos meistersingers) seguindo as regras estabelecidas para ele. É um ato de pedagogia, pois sem forçar, o desafia para que a corrente de inspiração, que é de amor sempre, brote da alma de Walther, como um rio que sem perder o ímpeto, permanece no canal e não arrasta o que encontra no seu caminho. Aí ele ensina que o poema nasce de um Sonho, ou seja, de um encontro misterioso no mundo celestial, no qual o Desconhecido se casa com a mente ou alma humana e concebe um filho. Um Sonho5 no sentido dado pelo Professor Livraga ou Sri Ram, quando este último diz:

Que não é sonhar com aquela consciência rudimentar, cega, irracional que constitui o nosso sonho comum, mas sonhar com uma faculdade [budhi] que absorveu a essência da razão; ou seja, não é o sonhar do inconsciente, para usar o termo da psicologia moderna, mas sonhar sonhos que num extremo são sonhos e no outro criações. Se pudermos identificar o sonho com a sensação de ordem, ação, criação e realização, teremos o estado de vigília ligado ao sonho, que o homem espiritual alcançou.

Diz-lhe também que a melodia é um bom veículo da poesia, como diria Platão: a palavra, ou seja, a mente deve reinar, mas a nave que o leva novamente aos mundos do Sonho e que o suporta neles é a melodia. O mesmo acontece com a pintura, segundo o professor Livraga, o traço, a linha, reinam e são os mais subtis, mas quem sustenta a sua vida anímica, a sensação e a emoção que geram é o reino da cor. Também Hans Sach disse-lhe que quando interprete essa canção em público deve ter em mente a sua visão, o seu sonho, porque deve dar-lhe vida novamente, deve evocá-la não apenas com as palavras e a melodia, mas com a sua vontade: é um ato mágico.

Ensina-lhe também que cada obra artística, neste caso um poema-canção, é um ser com vida própria, é um filho, ao qual devemos dar um nome e celebrá-lo. Quando Aristóteles diz que as obras de arte são poéticas, de poiesis, “criação, produção é porque uma vez que sai das mãos ou da voz e do coração do autor, já não lhe pertence, agora é do mundo, e embora carregue o sangue da alma do seu autor e a forma impressa pela sua mente, a semente é espiritual, pertence ao reino do Desconhecido, daquilo que está além dos nomes, formas, espaços e tempos, causas e efeitos, e que é ao mesmo tempo a única raiz da Juventude Eterna, da Vida Única, a seiva espiritual que dá forma e movimento ao Universo.

Neste poema, a bar, como nas ordens grega dórica, jónica e coríntia, a primeira estrofe é o pai, dá a identidade, a segunda, a mãe, a explica, e a terceira é o filho, o significado dinâmico, a projeção dela no mundo. É como a trilogia platónica 1-Ser-Bondade 2-Verdade 3-Beleza. A Verdade é a luz do Ser e a Beleza, a sua marca no mundo. E isto se repete três vezes (reino ideal, reino intermédio e reino de manifestação), gerando uma Enéada, que foi como no Egito e na Índia estratificavam a ação dinâmica dos Deuses. Um exemplo paradigmático disso é a Enéada de Heliópolis.

Em resumo, Wagner explica a necessidade e o poder da tradição, mas que ela, para não ser letra que mata o espírito, deve manter a seiva vital6, o vento do amor e primavera que fecunda a alma e lhe permite dar flores e frutos, que corre entre as paredes da construção artística.

E da mesma forma que existe um Código de Honra para nos ajudar a não perder o sentido dela em situações duvidosas ou difíceis, ou simplesmente não nos esquecermos Dela, as Regras da Estética, nascem para cristalizar uma vivência sagrada e poder evocá-la sempre que a vontade o exija. É o significado das estátuas de pedra dos Deuses que se moviam nos templos, que explica Platão, e era necessário amarrá-las com correntes. Elas são as sagradas intuições, que devem ser amarradas, fixadas em leis, formas, atitudes, ritmos, caminhos meditativos, cerimónias, para nos encontrarmos novamente cara a cara com esses poderes divinos ou com as suas sombras luminosas nas nossas mentes e corações. Assim o diz Wagner neste poema musical:

A casa onde nasceu Richard Wagner, Hermann Walter. Domínio Público

Sachs

Aprendam as regras dos Mestres
para que possam acompanhá-lo e ajudá-lo
a guardar no vosso coração
o que durante a juventude,
o amor e a primavera lhe ensinaram,
e o podais manter sempre.

Walther

Se agora gozam de tanta reputação
quem fez as regras?

Hans Sach

Foram mestres arrependidos da dor
espíritos oprimidos
pelas preocupações da vida:
na solidão dos seus problemas
criaram para si uma imagem
que lhe manteria viva, clara e forte
a recordação do amor da juventude
aquela em que vive a primavera da vida.

Afinal não basta estar inspirados, não basta o presente que corre em direção ao futuro, são necessárias também as raízes da tradição, com todo o poder e estabilidade que permitem. Não podemos esquecer a nossa história nem renunciar àqueles que agora são Guardiães da nossa caminhada, isto é, os nossos Antepassados. Sem eles o futuro não é possível, pois seria um futuro fugaz, instável, desorientado, dissolvente, sem verdadeiros caminhos a percorrer, como vimos na sucessão ad nauseam dos movimentos artísticos que rompem com todo o anterior sem trazer nada de realmente alegre, ainda que sim com muitos anúncios, como os da fábula da montanha que pariu um rato.

Quase no final da ópera de Os Mestres Cantores de Nuremberg, e depois que Walther faz uma canção pela qual consegue a sua amada e que merece a honra de mestre, quer rejeitar com arrogância a medalha que lhe concede o grau de mestre, pela dor que eles lhe causaram no primeiro Ato, com as suas regras rígidas. Hans Sachs restaura a harmonia com um belo discurso musical:


Sachs
(Tomando Walther pela mão)

Não desprezeis os Mestres, eu imploro,
e honra a sua arte.
Eles dedicam-vos os seus louvores;
não pelos vossos antepassados, que eram dignos deles,
nem pelo vosso brasão,
seja lança ou espada,
mas pelo facto de que sois um poeta,
o admitiram os Mestres:
e a eles deveis a vossa alegria de hoje.
Assim, pois, pensa nisso com gratidão:
como se pode desprezar uma Arte que concede prémios como este?
Uma arte que os Mestres cuidaram,
pois é seu dever fazer,
e mimaram com o melhor que sabiam,
para conservá-la pura: a mantiveram-na tão nobre como quando
reis e príncipes a abençoaram, e apesar
do decurso mau dos anos, o conservaram em alemão puro,
pois só floresceu ali onde os Mestres lutaram por ele e o defenderam.
Que mais podeis pedir-lhes?

O presente nunca está separado do passado nem do futuro, honremos por isso os mestres da arte e da vida e nos esforcemos por ser a sua digna continuação.

José Carlos Fernández

Escritor e Diretor de Nova Acrópole Portugal

1 Veja o incrível estudo dela em https://www.youtube.com/watch?v=yDi44y5LKl8&ab_channel=RichardAtkinson, pura filosofia construída através de uma arquitetura musical e conceitual ao mesmo tempo.

2Félix Borrell Vidal, no seu “Os Mestres de Nuremberg, esboço crítico”, infelizmente uma obra hoje quase desconhecida.

3 Desde o Wagner, mitólogo e ocultista de Mario Roso de Luna.

4 https://www.youtube.com/watch?v=R_9iJRoIJ-Q&ab_channel=opera4all Veja por exemplo aqui a partir de 1h14m40s

5 “Meu amigo, precisamente a tarefa do poeta / é interpretar e recordar os seus sonhos. / Acredite, a loucura / mais real de um homem / é apresentada em sonhos, / e a poesia e a arte do verso / não é mais do que a interpretação desses sonhos.” É o que diz Hans Sachs ao cavaleiro Walther.

6 Sachs: Não deixo que minha esperança desapareça,
porque ainda não aconteceu nada
que me obrigue a fazê-lo.
Se assim for, podeis acreditar que em lugar
de impedir que escapareis
eu mesmo teria escapado convosco!

Imagem de destaque: Em 1875, a família Wagner fixou residência numa vila em Bayreuth, que o compositor chamou de Wahnfried, Schubbay. Creative Commons