Numa das cenas mais engraçadas deste drama musical de Wagner, Beckmesser, um dos mestres cantores que aspira ao prémio humano do concurso, a jovem e bela Eva, começa na sua canção a alterar e dizer incoerências, uma sequência de estupidezes, um ato de loucura. E é lógico que assim seja, porque ele está possuído pela paixão de conseguir a mão de Eva a qualquer preço, ele roubou a letra da dita canção na casa de Hans Sachs (o poeta, sapateiro e protagonista desta ópera), ele não a sabe bem de memória, não entende o sublime das suas imagens, porque a sua mente é estreita, o seu temperamento não é artístico, e o seu caráter é vil e egoísta, ganancioso e mesquinho… e não tem o menor direito moral de aspirar sequer ao prémio, que é o futuro, a felicidade e o dote de Eva. No final, todas as pessoas riem e zombam dele, porque o que fez, embora temporário, não passou de um ato de loucura.
E assim, cantando o seu amor, que na verdade é desejo libidinoso, querendo conquistar seu “tesouro” (no sentido de Gollum em O Senhor dos Anéis), disse:
“Moro no mesmo lugar, trago ouro e frutas
sumo de aço e peso
o aspirante me arranca do pelourinho
em caminhos de ar que quase mal me consigo agarrar à árvore.
Em segredo, o meu medo aumenta
porque as coisas vão dar certo aqui
ao lado da minha escada havia uma mulher
tinha vergonha e não queria olhar para mim.
Pálido como uma abóbora, o cânhamo enrolava-se no meu corpo
fechando os olhos o cachorro voou pelos ares
o que eu já tinha comido há muito tempo,
como frutas, madeira e cavalos
da árvore do fígado.”
(Todos riem à gargalhada)
Por mais que se esforcem em nos fazer ver o contrário, não há beleza na loucura, e a própria natureza destrói tudo o que sai da harmonia, e ainda mais se afasta do seu próprio instinto vital de sobrevivência, que na dimensão humana chamamos razão, pois é esta e a linguagem como efeito que nos permitem tornarmo-nos fortes graças à cooperação. As sociedades humanas têm-se unido e permanecido firmes graças à linguagem e ao que os filósofos zoroastristas chamariam de “Boa Mente”, e destruído quando abertas aos ventos pestilentos da loucura e depravação, frutos do egoísmo e da ignorância, como ensina o próprio Platão.
O mais assustador é que, durante um século, as “Academias” (que nunca foram pessoas simples e de bom coração e natural sensibilidade) premiaram facilmente disparates semelhantes a este na poesia (sem pés nem cabeça), na escultura (o mesmo); na pintura, com os pesadelos oníricos de um Dalí ou a mediocridade pictórica de um Picasso – comparando-o, por exemplo, com um Boguereau ou um Henrique Medina, da mesma Escola Francesa -, que também foi um sinistro abusador de mulheres; ou os absurdos – embora espantosos – fractais de um Pollock, que além de tolos, parecem atos de psíquico onanismo, ou o latrocínio de um Kandinsky, que se apoderou do estilo e das visões espirituais de Hilma af Klimt; na música com um Ligeti no seu aberrante “Mistérios do Macabro” que talvez deveria melhor chamar-se “Mulher com Aspirador”, etc., etc., etc.
Na cenografia sofremos esses ventos tresandando de loucura nas mesmas representações das óperas de Wagner, em que transformam, por exemplo, o Walhalla num Salão de Bilhar, Wotan num mafioso e Brunhilde numa prostituta de bairro.
E não é que seja uma ou mais representações de Wagner torturadas pela loucura e que deixam a medida certa (ou o seu simples legado que estabelece com precisão como deve ser encenada cada uma das suas óperas, e que o atraiçoam com a nossa cumplicidade), ou o bom-tom. Pelo contrário, é difícil encontrar aquele que a mantenha, e especialmente no que deveria ter sido o santuário do Mestre, em Bayreuth, que há mais de vinte anos é um ninho de depravação estética, uma fábrica de crimes contra a nossa sensibilidade artística e até moral, pelas aberrações que comete. Por exemplo, na edição de 2017 desta obra, Os Mestres de Nuremberga, a celebração da Festa de São João e o concurso de poesia musical transformaram-na em Os Julgamentos de Nuremberga do regime nazi, copiando a sala, com a Polícia Militar americana como em 1945, e até a bandeira soviética, inglesa, americana e francesa que a presidia. E assim as canções de Hans Sachs, que eletrificaram o nascimento da Alemanha ao serem cantadas como hinos da revolução de Lutero, ressoam num tribunal de criminosos para criminosos nesta cidade devastada e massacrada, com bombas incendiárias de acordo com a paranoia do “carniceiro Harris”, num dos atos mais sangrentos da história mundial (e completamente desnecessário de acordo com a estratégia militar). Uma cenografia absurda (misturando figurinos e cenários de todas as épocas), obscena (o cavaleiro Walther colocando a mão no retrato de Eva como se quisesse esfregar os seus genitais), repulsiva na conceção geral e nos detalhes, totalmente fora de sintonia com o texto e a música.
Tudo o que podemos dizer destes rumos – que já passou mais de um século de barbárie artística e quase ninguém levantou a voz para dizer “o rei está nu” – é que estamos revoltados com o que só pode inspirar nojo, mal-estar, angústia, caos, desprezo. Quantos monstros do abismo parimos! Não nos surpreendamos, pois, com a loucura que nos aflige, submetidos a estes miasmas das profundezas e esgotos do pior da natureza humana!
Devemos recordar os ensinamentos da pura filosofia de Nilakantha Sri Ram quando diz que muitas vezes confundimos a Beleza com o agradável, o engenhoso ou o intrigante; e por esse caminho, pela lei do pêndulo, facilmente podemos chegar ao repulsivo, ao absurdo e ao angustiante. Continua dizendo, como Platão, que Verdade é Beleza e Beleza é Verdade, com maiúsculas, claro.
Quando nesta obra, depois de Beckmesser, canta o cavaleiro, Walther, a quem todos unanimemente reconhecerão o prémio[1]:
“Com a luz do pôr-do-sol, a noite me envolveu;
num caminho íngreme, havia encontrado
um ribeiro de água pura que o riacho me mostrava
com uma risa sedutora:
ali, sob a azálea
por cujas folhas brilhavam resplandecentes as estrelas,
como se fosse um sonho poético, eu vi,
sagrada e bela, e fazia me beber
água preciosa, a mais maravilhosa das mulheres:
A Musa do Parnaso”
“Que dia maravilhoso quando despertei do sono poético!
O Paraíso com que eu sonhara,
e cujo caminho agora o riacho me mostrava rindo,
estava diante de mim no meio de um esplendor celeste e transfigurado;
a ela, à nascida ali, à escolhida pelo meu coração,
à imagem mais bela da face da Terra,
à destinada a ser a minha Musa,
ali me atrevi a cortejar: em plena luz do dia,
graças à minha canção, consegui que Parnaso e Paraíso fossem meus!”
É triste que ao traduzi-lo perca todo o seu encanto poético. Em qualquer caso, o leitor pode acompanhar o livreto original com a sua música no link que aparece na nota de rodapé. Neste poema as imagens são compreendidas, acompanhadas e, além do seu significado, abrem com as suas evocações portas fechadas da alma. Como disseram as mesmas pessoas que ouvem esta música e canção:
“Tão engraçado e familiar,
e ao mesmo tempo tão distante,
No entanto, quando ele canta,
parece que vai aparecer de um momento para outro!”
E depois
“Arrulhado como no mais belo dos sonhos o sigo,
mas apenas o entendo”.
Essas palavras quase definem um decálogo estético. Uma obra de arte, se é bela, tem que estar resplandecida por uma auréola de graça, que por ser graça é de natureza divina. Mas deve ser familiar, deve estabelecer uma ligação com o próprio coração que reconheça nele uma proximidade, como de uma dimensão, a sua, a da alma, conhecida, mas esquecida, ou seja, deve despertar nela uma reminiscência, no sentido que Platão dá a essa palavra. Ao mesmo tempo “distante”, porque abre as portas para um caminho infinito, além dos passos que hoje somos capazes de aventurar. A obra, o canto neste caso com todo o poder da música e sobretudo da voz humana, que evoca, “parece que vai aparecer de um momento para o outro”, ou seja, aquele mundo de enigmática e perfeita beleza que vai materializar-se diante dos olhos do nosso coração e até do nosso rosto. “Arrulhado”, porque deve embelezar a alma, envolvê-la num manto mágico de harmonias que lhe permitam abrir as suas asas novamente e voar. E embora fosse sublime, inspirando “terror sagrado”, um relâmpago na noite, a alma deve ser capaz de reconhecer que naquela Beleza está a sua verdadeira natureza e raiz, mesmo quando agora tanto nos seja insuportável e parece que ela se afogará em lágrimas ou que se desfaze em fogo a carne que a aprisiona. “Apenas o entendo”, o que não quer dizer que seja absurdo ou ininteligível (que foi sempre a desculpa dos cultores do feio e amorfo), mas que do que diz é percebido apenas a ponta que permite revelar o mistério, como o fio de prata de Ariadne que permite sair do labirinto. Beleza velada, belo o mesmo véu que permite a luz da sua presença, mas não obscurecida por um grosso muro.
Quando pensamos em tratados de Estética (a filosofia da “sensibilidade” para o Belo, própria do ser humano), sempre vêm à mente os livros de Kant, de Hegel, de Schelling, mas é difícil que um verdadeiro artista não tenha sido também filósofo e que tenha refletido profundamente sobre a natureza do “feito artístico”. E muito menos um autor como Wagner em que precisamente, neste drama musical deixa seladas as suas meditações sobre qual é o sentido da beleza, onde nasce, como emergem as cristalizações harmónicas desta mesma beleza de acordo com a linguagem e o material utilizado por cada artista. No caso dos Mestres Cantores a arte que serve de instrumento é, claro, a poesia e a música, com formas mentais aprisionando a Ideia-Verdade nas suas redes, redes feitas de palavras (imagens de ações, seres e conceitos abstratos realizadas com elas) e de sons (com sentimentos codificados na linguagem matemática que incorpora o ritmo, a melodia e a harmonia que constituem a música).
Um dos grandes debates e quase paradoxos da arte reside em saber se existem regras que permitam definir o belo, trazendo-o à luz, quase à força, pela simples presença deles. Apesar das barbaridades ditas pelo que Ortega y Gasset chama de “Genghis Khan” da Filosofia, ou seja, por Hegel, que pensa – tal é a sua insensibilidade! – que a Arte Sacra das Civilizações antigas é inferior, por ser anterior e por ser mais inflexível nas suas rígidas regras, que uma obra de qualquer romântico do seu tempo, e diríamos ainda hoje, de qualquer alienado do nosso, o Pártenon não é inferior ao Guggenheim de Bilbau, este último tão admirado, embora para alguns possa parecer um pedaço de plasticina metálica sem tom nem som, para a vergonha das gerações vindouras, nem os versos de Poeta em Nova York superiores aos de Safo, 2.500 anos antes, nem as pinturas murais levantinas – tão semelhantes às de muitos pintores contemporâneos, inspiradas nelas e na arte africana – superiores às de Altamira, pelo menos dez mil anos mais antigas.
Esse dilema sobre a Arte está muito bem exposto nesta obra de Wagner, que havia estudado cuidadosamente num livro da época (século XVI) as centenas de normas que permitiam aos Cantores elaborar um bom poema-canção, quase matematicamente e que se não cumpridas bania o mesmo para o disforme e inútil. Essa é a tablatura que aparece nos Mestres Cantores e que quase enlouquece Walther, quem com a sua inspiração e genialidade as ignora sem a menor modéstia, criando também novas formas musicais-poéticas que os antigos mestres são incapazes de ver ou aceitar no inicio.
(Continuará)
José Carlos Fernández
Escritor e Diretor de Nova Acrópole Portugal
Imagem de destaque: Os Mestres-cantores de Nuremberg, Wallmüller. Creative Commons