Excerto do livro Pelas Grutas e Selvas do Hindustão
(…)
Na estranha mitologia dos brāhmaṇas – que à primeira vista é também mais legendária do que a mitologia grega – e, em geral, na sua mais estranha concepção do mundo, todavia jaz uma profunda filosofia. A forma externa da idolatria não é senão uma cortina que oculta a verdade, como o véu de Ísis. No entanto, esta verdade não se evidencia como tal. Para alguns, a cortina oculta, não o rosto de Ísis, mas simplesmente um espaço vazio que se perde naquilo que para eles é a obscuridade impenetrável; por outro lado e para outros, desse lugar emana a luz. Para aqueles que não possuem por natureza esse sentido inato, interno, que outros possuem, e que os hindus chamam acertadamente de «terceiro olho» ou o «olho de Śiva», é muito melhor contentarem-se com os motivos fantásticos sobre a cortina, pois não podem sondar a profundidade da obscuridade impenetrável, nem encher um espaço vazio. No entanto, para aquele que possui o «terceiro olho» ou, falando mais claramente, que é capaz de transferir a sua visão desde o objectivo grosseiro até à profunda pureza, vê luz na obscuridade e no vazio aparente discerne o Universo… A consciência da sua natureza interna mostrar-lhe-á de forma infalível que a presença de Deus é percebida aqui, mas não pode ser comunicada, e expressá-lo de forma concreta tem por desculpa o ardente desejo de transmitir este sentimento às massas. Assim, ainda que censure com a sua alma a forma de culto, já não se rirá abertamente dos ídolos e da crença neles por parte daqueles, que incapazes de penetrar mais além da cortina, se satisfazem com a forma exterior, apenas porque é difícil para eles, senão completamente impossível, chegar a qualquer concepção viável do «Deus Desconhecido».
Karman, que não perdoa nem aos Deuses.
A fim de mostrar de forma gráfica que os 330 milhões de Deuses da Índia juntos apontam a um Deus Desconhecido e Uno, tratarei de falar com simplicidade. Para isto, bastará relatar uma das histórias alegóricas dos antigos hindus presente nos Purāṇas, uma história que, aparentemente, não foi descoberta pelos nossos orientalistas.
O fim do último pralaya (ou seja, o período intermédio entre as duas criações do nosso mundo), o Grande Rāja que habita na eternidade do espaço infinito, querendo dar aos homens vindouros um meio de o conhecerem, construiu um palácio no Monte Meru feito das suas qualidades inerentes e fixou ali a sua residência. Mas quando os homens voltaram a habitar na Terra, este palácio, do qual um dos extremos estava apoiado sobre um confim de «infinitude» e o outro sobre o outro confim, demonstrou ser tão vasto que a pequena raça nem sequer suspeitou da sua existência; para eles, o palácio era o firmamento celeste, para além do qual, segundo eles, nada existia. O Grande Rāja, vendo a dificuldade e compadecendo-se da pequena raça, decidiu revelar-se a eles, não na sua totalidade, mas sim em partes. Demoliu o palácio criado com todas as suas qualidades e começou a tirar um a um dos ladrilhos da Terra. Cada ladrilho converteu-se numa estátua; um ladrilho vermelho num deus, e um cinzento numa deusa; e cada um dos devatas e devatīs que haviam encarnado em estátua, recebeu uma das inumeráveis qualidades do Mahārāja. De início, todo o panteão era constituído somente de qualidades superiores. Mas as gentes, aproveitando a impunidade, tornou-se mais depravada e má… Então, o Grande Rāja enviou o Karman (a «Lei da Compensação») à Terra. Karman, que não perdoa nem aos Deuses, alterou muitas das qualidades em instrumentos de castigo; e foi assim que os Deuses destruidores e vingadores apareceram entre as divindades clementes e benevolentes.
Esta história, que nos foi contada por um brāhmaṇa de Madurai, explica porque ele chamou à deusa Mīnākṣī «um ladrilho» e, também, indica a unidade de fundo em todo este politeísmo. A diferença entre a essência espiritual dos dii maiores do sagrado Monte Meru – o Olimpo da Índia – e os dii minores não é demasiado grande. Os primeiros são raios directos, e os segundos são raios fragmentados, refractados de uma mesma candeia. O que são na realidade Brahmā, Viṣṇu e Śiva? Eles são o triplo raio que emana directamente da
«Candeia do Universo», Svayambhū, o poder ou espírito que vivifica e fecunda a matéria, encarnada em Sarasvatī, Lakṣmī e Kālī, as três representações de Prakṛti (a «matéria»), as três Deusas e os três Deuses. Estes três pares, sintetizados em Svayambhū, a «Deidade Imanifestada», são os símbolos que personificam a sua invisível presença em todas as manifestações da Natureza. Resumindo, Brahmā e Sarasvatī, Viṣṇu e Lakṣmī, Śiva e Kālī, representam na sua totalidade o espírito e a matéria nas suas qualidades triplas: criação, preservação e destruição.
Cada verdade manifestada, seja ela qual for,
tem a sua relação directa com a Divindade, ou seja,
a Verdade existente por si mesma.
Viṣṇu é uno, mas possui 1008 nomes, cada um dos quais é o nome de uma das qualidades do Uno. As qualidades pessoais de Viṣṇu estão, por sua vez, encarnadas nos Deuses secundários do panteão hindu. Assim, convertendo-se numa personalidade separada de Viṣṇu (ao mesmo tempo que Viṣṇu é apenas a personificação de uma das sete qualidades ou atributos principais de Svayambhū), cada personificação é chamada aspecto ou «manifestação» de Viṣṇu, Brahmā ou Śiva; ou seja, de um dos Deuses e Deusas principais. Cada um deles tem numerosos nomes que os brāhmaṇasoficiantes de um ou outro culto repetem como papagaios, ainda que nos dias da Antiguidade tenham tido um profundo significado; Svayambhū é a primeira emanação ou raio de Parabrahman, a Divindade sem atributos, é o primeiro sopro do espírito; e é trimūrti, síntese dos três poderes espirituais em união com os três poderes materiais. A partir das qualidades destes três casais nascem os Deuses menores, os dii minores, que por sua vez representam as qualidades dos Deuses maiores.
Tanto é assim que as sete cores primárias do prisma no qual o raio incolor se decompõe, dão origem, através de novas fusões, a cores compostas secundárias que se diversificam ad infinitum. Os brāhmaṇas dizem que o deus Sūrya (o Sol) tem sete filhos, cuja descendência constitui um bom terço do panteão dos devas; e o Deus do Ar, Vāyu, é o pai das sete sílabas primordiais e das sete notas musicais que geram e conciliam todas as combinações possíveis de sons na harmonia da Natureza.
Na Índia antiga, a religião estava estritamente vinculada à contemplação da Natureza. As verdades universais e a própria essência da Verdade estavam personificadas nas Deidade. Cada verdade manifestada, seja ela qual for, tem a sua relação directa com a Divindade, ou seja, a Verdade existente por si mesma. No panteão da religião hindu, só o método de expressão exterior é, na verdade, impuro e tem, geralmente, uma forma repelente e caricaturizada.
A conclusão lógica que se deve tirar de tudo isto é que o panteísmo da Índia – que externamente deificou todas as forças materiais da Natureza, como se apenas personificassem as formas exteriores – está em relação com o campo do conhecimento da Física, da Química e, em particular, com o da Astronomia, e possui em si algo da natureza do materialismo poético, como uma continuação do Sabeísmo caldeu. Em todo o caso, se deixamos de lado a sua forma exterior, que levou as massas ignorantes ao mais repugnante culto idolátrico, e penetramos na fonte primordial dos mitos do Panteísmo, então não encontraremos aí Deuses, nem sequer um culto externo a diversos objectos dos reinos da Natureza nas suas formas comuns, mas sim um culto ao Espírito omnipresente, que é da mesma forma imanente na menor folha de erva, como no poder que a engendrou e estimulou a crescer.
Esta é a explicação simples e natural dos trinta e três crores (2) (330 milhões) de Deuses da Índia. Estes Deuses foram criados e dotados de existência como resultado da cega inclinação para personificar aquilo que não pode ser personificado, dando assim lugar aos «ídolos». Com o curso do tempo, a pedra fundamental da concepção filosófica e religiosa que os sábios tinham do mundo, caiu nas mãos de ambiciosos e frios brāhmaṇas calculistas, que a destruíram em pedaços e a reduziram a pó para a sua conveniente assimilação por parte das massas. Mas para o pensador, tal como para qualquer orientalista imparcial, estes pedaços desperdiçados, assim como a sua gravilha finamente triturada são, apesar de tudo, fragmentos daquela pedra, atributos da energia manifestada de Parabrahman, o Uno que É eternamente sem princípio e sem fim.
Os brāhmaṇas vedāntinos postulam três tipos de existência: pāramārthika, a real e verdadeira; vyavahārika, a condicionada e prática; e prātibhāsika, a ilusória. Parabrahman é a única representação da primeira, e por isso, é chamado Sat, «aquele que realmente é» ou a Existência-Una; à segunda classe pertencem os Deuses personificados em diversas formas, as almas pessoais (3) dos mortais, e tudo o que se faça manifestado como fenómeno no mundo da percepção subjectiva. Esta classe, depois de obter existência na imaginação das massas ignorantes, tem uma fundamentação não mais firme do que aquela que vemos nos sonhos; mas em função da realidade da relação prática da gente com estes Deuses, a sua existência define-se condicionalmente. A terceira classe de existência inclui objectos tais como as miragens – uma madrepérola percebida como pedra, uma serpente erguida percebida como corda – e até o homem, numa das suas subdivisões. As pessoas pensam, imaginam que vêem uma ou outra coisa; consequentemente, para aquele que o vê e o imagina tal qual, realmente existe. Mas esta realidade é apenas temporal e a própria natureza destes objectos é efémera, por tanto, condicionada, e devido a isto, em última análise, conclui-se que esta realidade é apenas uma ilusão.
Todas estas concepções não interferem apenas na crença da personalidade e unidade da deidade, como também servem como barreira intransponível para o ateísmo. Na Índia não existem ateístas no sentido que nós europeus damos a esse termo. Um nāstika é um ateu no sentido de não-crente nos Deuses e imagens. Isto é conhecido por toda a gente na Índia e estamos completamente convencidos disto. Os ateístas e, inclusivamente, os agnósticos do Ocidente não têm nada que ver com os nāstikas do Oriente. Os primeiros negam tudo de forma grosseira, menos a matéria; os últimos, ou seja, os materialistas indianos, os nāstikas, não negam de nenhum modo a possibilidade de existência daquilo que não compreendem. O autêntico filósofo compreenderá, não apenas a forma exterior, mas também o espírito da sua negação. Convencer-se-á com facilidade de que se, em referência à abstracção chamada Parabrahman, enunciam que este princípio «carece de vontade e actividade, sensação e consciência», fazem-no precisamente porque, segundo a sua compreensão, o Uno, com tal nome, é a vontade incondicionada, a actividade sem princípio e sem fim, a consciência e o conhecimento de si autógenos.
Daí resulta que os panteístas da Índia, ao manterem os seus ídolos, pecam tão somente de um excesso de sentimento religioso, se mal aplicado. E também que, depois da total destruição e absoluta não-criatividade do materialismo animal na Europa, este Panteísmo surja como refrescante moral e espiritual, como um oásis exuberante no meio de um estéril deserto de areia. É melhor crer ao menos numa das qualidades da divindade, personificando-a e adorando-a com base à aparência que represente para cada um, segundo a sua capacidade de entendimento, o semblante e símbolo mais conveniente do Todo, do que negar o Todo com base no pretexto de que não pode ser demonstrado por métodos científicos e não crer em nada, tal como fazem os nossos doutos materialistas e os agnósticos da última moda.
Segundo o ponto de vista expressado, e apesar de que nos podemos surpreender e inclusivamente divertir sinceramente com a originalidade da eleição do seu objecto de culto, nós compreendemos porque é que o senhor Peters deixou de ser tão repentina e inesperadamente um materialista ardente da escola de Mill e Clifford para passar a ser panteísta e até pūjista. (4)