“Quando percebermos a verdade que radica na natureza, na própria alma das coisas, descobriremos também a beleza que constitui a poesia da vida, o aspeto poético da verdade”.
Sri Ram

Aos mais jovens o título deste artigo evocar-lhes-á a obra de Harry Potter, o primeiro da heptalogia editado em 1997. A outros, aficionados das ciências herméticas, o Lapis Philosophorum, o fim e o segredo da Alquimia, capaz de transformar o chumbo em ouro e de com ela obter o elixir da imortalidade ou da eterna juventude. Os mais subtis, conhecedores do simbolismo desta “pedra” sorrirão, recordando que, como disse Cristo aos seus discípulos, há almas que são a “luz do mundo” e “o sal da vida”, e que servidores do que Paracelso chamara “o Grande Íman” que magnetiza a natureza e a vida inteira, vão “imanizando” as almas humanas. Despertando-as do seu sonho de ignorância e egoísmo e convertendo-as gradualmente em servidores mais ou menos conscientes do Grande Plano que é a Evolução. Ou simplesmente iluminando todos com um sorriso e esperança deixando, como a personagem de Pollyana, um rasto de amor, devolvendo a fé no sentido da vida, da natural solidariedade com o próximo. Pois estas almas benditas são a “pedra filosofal” ou os homens e mulheres de ouro que menciona Platão na sua República, a sabedoria, justiça, prudência e esperança do Estado Ideal.

Reconstrução idealizada da Acrópole de Atenas, por Leo von Klenze (1846) / Wikipedia

Mas não, vou falar da imaginação, do poder transformador dos sonhos, que é também “a pedra filosofal”, e que atua como o Quixote, que vai caminhando por um mundo de ferro para convertê-lo num mundo de ouro.

Vou falar de uma das mais belas canções do nosso país irmão, da canção do poema “Pedra Filosofal” que todos os portugueses sabem cantar e que, recordo, a primeira vez que a ouvi me deixou estupefacto, pela profundidade dos significados da sua letra – do poeta António Gedeão – e pela saudade e ternura da sua música, que é saudade e ternura próprias da alma lusitana, música realizada por Manuel Freire no ano 1969.

A dificuldade de às vezes estabelecer vínculos culturais, enraizados e profundos, não só inovadores e superficiais, entre estes dois países, Espanha e Portugal (aos quais quase nenhuma fronteira geográfica separa), torna-se evidente quando comprovo que quase ninguém em Espanha conhece esta canção que faz vibrar a alma do português. Ao escrever num motor de busca, como o Google, o título da canção em espanhol “piedra filosofal” e o nome do autor, não se acede a ela facilmente e, para muitos, o que não está na internet simplesmente não existe.

O poema, como dissemos, é de António Gedeão pseudónimo de Rómulo Carvalho (1906-1997), científico e poeta nascido em Lisboa. Este poema, “Pedra Filosofal”, faz parte do seu livro Movimento Perpétuo.

Ilustre personagem, o seu autor, um dos maiores divulgadores da ciência em Portugal no século XX e, mais que isso, dos grandes “humanizadores” desta ciência, dando-lhe medida humana, evitando que o conhecimento humano fosse medido pela máquina, pela tecnologia. Já o disse o genial Professor Livraga (1930-1991), que nós construímos as máquinas, mas logo as máquinas nos fazem à sua medida, pois obrigam-nos a pensar em função delas, impedindo-nos de escolher livremente novos rumos. Que bem o descreveu Virgil Gheorghiu na sua “25ª Hora”, uma sociedade desenhada em função da tecnologia da qual nos sentimos tão orgulhosos, não em função dos valores humanos que devemos conquistar e guardar como o melhor dos tesouros. A verdade que nos desumaniza quiçá não seja tal verdade pois, como disse Platão, a verdade é como a luz de um Sol, que faz crescer a verdadeira natureza do que toca, extirpando o adulterado e já velho ou inútil.

Rómulo Carvalho esforçou-se denodadamente por gerar nos seus discípulos e leitores o espanto, a admiração que, diz Aristóteles, é o pórtico de todo o conhecimento. Recorre à história dos grandes descobrimentos científicos, recria os cenários, explica os princípios, descobre a poesia e beleza intrínseca que acompanha a busca da verdade, faz vibrar e brilhar o idealismo dos que consumiram as suas vidas seguindo a estrela de uma lei universal, de uma verdade oculta até então sob o véu das aparências e do superficial. Nas aulas ante os jovens bacharéis (40 anos da sua vida estiveram dedicados ao ensino) convertia-se numa espécie de taumaturgo, recreando as experiências como um mago, dramatizando como um consumado ator, despertando o seu mais vivo interesse e fazendo viver ideias e verdades, não só com a mente formal, mas com o coração. Num documentário emitido pela televisão por ocasião do seu 90º aniversário, entrevistam muitos dos seus discípulos (mais discípulos que simplesmente alunos, pois como no símbolo do pelicano, deu-lhes ao ensiná-los, o sangue da sua alma, para alimentar as suas), convertidos agora em eminências (por exemplo o Dr. Marcelo Rebelo de Sousa), e todos coincidem ao dizer que foi este o professor que mais os marcou, de um modo determinante, na sua educação, que lhes inspirava confiança neles próprios, amor ao conhecimento, espírito de autodisciplina, rigor, seriedade. E dezenas (ou quiçá centenas) de milhares de estudantes e adultos leram os seus livros tão pedagógicos: História do Telefone, Compêndio de Química, História da Radioatividade, a Ciência Hermética, O Descobrimento do Mundo Físico, A Experiência Científica, A Natureza Corpuscular da Matéria, Moléculas, Átomos e Iões, A Estrutura Cristalina, Ondas e Corpúsculos, A Energia Radiante (todos dentro da coleção “Ciência para Gente Jovem”), além de livros de texto para o ensinamento regrado, de Física, Química, Ciências da Natureza, etc. E não esqueçamos o difícil, e o belo, que é fazer uma divulgação rigorosa da ciência, mas com olhos de poeta, ou seja, penetrando com a imaginação na Alma da Natureza, sem deixar de ter os pés bem assentes na terra.

Eles investigam / Pxhere

Como homem universal, ao modo renascentista, não se conforma com ser poeta e divulgar a ciência, converte-se em historiador, e deste afã nascem magníficas obras, como por exemplo: relações entre Portugal e Rússia no século XVIII, A Astronomia em Portugal no século XVIII, História do Ensino em Portugal, desde a fundação da nacionalidade até ao fim do regime de Salazar-Caetano (Lisboa, 1986), o amplo ensaio “O Texto Poético como Documento Social”, ou a obra História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa, etc.

O interesse pela ciência do século XVIII em Portugal, do qual nasceram vários livros e numerosos artigos, explica-o o próprio Rómulo Carvalho numa entrevista no jornal Público de 24 de Novembro de 1996: “No século XVIII foi quando se produziu a transformação fundamental nos métodos de ensino. Foi o momento exato em que o domínio da Igreja, que vinha desde o princípio, foi combatido pelos filósofos”.

Para educar em História o seu filho de sete anos, escreve um volumoso manuscrito, todo ele ilustrado com desenhos, ao qual chama “As origens de Portugal: História contada a uma criança” sem nenhuma intenção de editá-lo, mas que logo apareceria a público post mortem e fac-símile em 1998 a título de homenagem póstuma.

Edita o primeiro livro de poemas com 50 anos, mas desde sempre correu pelas suas veias o sangue de poeta. Com apenas dez anos decide continuar a edição da obra de Camões, “Os Lusíadas” e historiar em verso os séculos seguintes à morte deste autor, e realiza alguns capítulos . Com o seu primeiro livro de poesias, Movimento Perpétuo, escolhe um pseudónimo que é quase secreto durante muitos anos, para não perturbar a sua ação académica. E a partir daqui começa uma ação poética ininterrupta que dá à luz as seguintes obras: Teatro do Mundo (1958), Máquina de Fogo (1961), Linhas de Força (1967), Poemas Póstumos (1984), Novos Poemas Póstumos (1990). Escreve também a obra de teatro RTX 78/24, e o Poema de Galileu (em 1964), para celebrar o 4º centenário do científico italiano. Este último poema foi, como Pedra Filosofal, convertido também em canção por Manuel Freire e é juntamente com este e Lágrima Negra, uma das obras mais famosas de António Gedeão.

Com os seus 90 anos, e conservando ainda um vigor intelectual espantoso, recebe o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Évora (a 8 de Janeiro de 1995), e um ano depois a Medalha de Prata da Universidade Nova de Lisboa, a Grande Cruz da Ordem de Mérito de Santiago da Espada, e a Medalha do Mérito Cultural. Despede-se do mundo, escrevendo uma autobiografia ou memórias, e deixa em branco a última linha para que o leitor escreva a data do óbito.

Dedicou os seus últimos anos pro bono, a trabalhos etnográficos no Museu Maynense da Academia de Ciências de Lisboa, e a 19 de Fevereiro de 1997, falece em Lisboa, como um Hércules, filho de Zeus que retorna ao mundo celestial do qual veio, satisfeito com os trabalhos realizados.

Ele é poeta e é cientista de verdade, não se deixa levar pela soberba de pensar que lá porque a ciência tenha retirado a ínfima ponta do Véu de Ísis já conquistámos o Grande Mistério, nem de que vamos poder fazê-lo em milhares de anos, senão milhões, e em todo o caso, sempre à nossa medida, não quiçá à medida do próprio Mistério.

Isis velada, Herbert Hoover National Historic Site / Wikipedia

Perguntamo-nos com H.P.Blavatsky: “Como pode o condicionado conhecer o incondicionado?”, como se pode ser tão audaz em querer demonstrar a inexistência de Deus, ou inclusive a sua existência? Na referida entrevista televisiva diz:

“Tudo quanto existe na Natureza foi feito, não existia antes, e se formos assim retrocedendo, retrocedendo, retrocedendo, chegaremos a uma fase na qual o nosso planeta sai do Sol, o Sol nasce da Galáxia e… onde chegamos…; enfim, eu não sou capaz de perguntar “quem fez isto?” e portanto, não mo pergunto”.

Em política vemo-lo dececionado com os sistemas, e ainda com a nascente democracia portuguesa, diz que em tudo o que vê na história, todas as formas de governo tratam de fazer prevalecer os seus interesses, uns, diz, de forma totalitária e por meio da disciplina, os sistemas fascistas; os outros através de ou com o engano da liberdade, como fazem as democracias. De facto, dada a sua idade e que não tem já nada a temer de ninguém nem de nada, e não lhe devem importar muito os comentários a seu respeito, diz descaradamente frente às câmaras que ele nunca votou nem pensa fazê-lo.

O poema, e a canção Pedra Filosofal, é um verdadeiro hino à imaginação, de linhas definidas (e não à fantasia nebulosa), o poder da imaginação que é a chama de Prometeu roubada aos Deuses, o que nos permite criar, fazer ciência, e arte, ainda política e inclusive religião, isto é, toda a atividade profundamente humana. O poema é denso, muito denso, muito mais do que parece, quando se analisa palavra a palavra, algo que farei no próximo artigo. Recordo um discípulo que uma vez me comentou que o seu professor de Filosofia, quando tinha uns dezasseis anos, dedicou meio ano académico à explicação de tal poema, e que foi maravilhoso tudo o que pode aprender nele. É curioso comparar esta canção com a de “Sonhar um sonho impossível”, associada a Quixote, signífero de Espanha, pois ambas falam do Sonho, mas não do sonho como cessar da vigília, mas o sonho como poder transformador do real, no sentido que lhe dava o professor J.A.Livraga ou D.Rimpoché quando diz que:

“Não desprezes nunca os teus sonhos. Deves fazer um pacto com eles. Eles são o manancial e a força inesgotável que te levarão à vitória. Atrás do obstáculo encontrarás uma liberdade virginal, um horizonte mais vasto”.

Recomendo que antes de ler o poema escutem várias vezes a canção de tão misteriosa doçura, verdadeiramente embriagante.

PEDRA FILOSOFAL

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

Pedra / Pixabay