Ultimamente, parece-nos ver um crescente número de pessoas no mundo apelando para que se estreitem as ténues fronteiras entre a tecnologia utilizada para servir a humanidade, e aquela que parece tomar a nossa liberdade. Temos smartphones e relógios que tornam a nossa vida facilitada, ou muitas vezes mais complicada… deixando os utilizadores, muitas vezes, cada vez menos capazes, enquanto os dispositivos se tornam cada vez mais sofisticados. Basta notar a degradação do uso da nossa linguagem, e a total negligência da prática tradicional de escrever no papel, para perceber o preço que talvez estejamos a pagar. As redes sociais, como ironicamente são chamadas, têm vindo a ser fortemente condenadas nos últimos anos, muitas vezes por pessoas que estão no coração da indústria. Estas redes são muitas vezes antissociais, e facilmente reduzem a qualidade das nossas relações e os valores que partilhamos. Podem servir as agendas comerciais, enquanto alimentam a polarização e o extremismo, não é um segredo escondido.
Não há dúvida que precisamos de nos tornar conscientes da utilização que fazemos da tecnologia, para encontrar um equilíbrio dinâmico. Isto pode parecer fácil no princípio, mas nem sempre o é na prática; para discernir entre meios e objetivos, impedindo que a ferramenta se torne o cocheiro do nosso mais valioso propósito.
Para determinar se é boa ou má, qualquer ferramenta, seja uma faca, um veículo, um software, uma droga, etc., depende principalmente da forma como é usada. Isto nunca deve ser negligenciado ao formarmos o nosso julgamento ético. É também bastante claro que a tecnologia ao serviço da humanidade não é em si um fator negativo. Pelo contrário, é uma indesmentível expressão da nossa capacidade para fazer avançar e enriquecer as nossas vidas. Sabemos, no entanto, que isso nos pode destruir, se usado incorretamente ou para um propósito errado.
É com clareza acerca dos nossos objetivos fundamentais, o propósito da nossa vida, que podemos avaliar e julgar as ferramentas que empregamos na nossa vida. Com que finalidade as utilizamos? Quais as consequências que nos podem trazer? Estão elas realmente servindo-nos? Apesar da sensação de que estamos perdendo, em relação a algo que o “mundo inteiro” está usando é fundamental que nos continuemos a perguntar se isso realmente nos serve na busca do propósito da nossa vida, ou se facilita um desvio do nosso caminho.
Esta necessidade fundamental de distinguir entre os objetivos e os propósitos não é realmente um desafio que enfrentamos hoje. Como muitas culturas e civilizações já constataram há milhares de anos, um ser humano é um complexo de identidades e, é de natureza dual. Por um lado, existe um aspeto temporário e material, enquanto por outro existe o Espiritual. Esta última é uma identidade interior e superior, a Alma ou o Eu Superior, enquanto a primeira é apenas um recipiente, uma máscara que usamos (a Persona, ou Personalidade), na qual nascemos e morremos. Este recipiente biológico pode ser de natureza mais complexa do que o termo “bio” refere-se hoje, reúne vários fatores, inclusive o nosso corpo físico, que por si só é um complexo incrível, mas também compreende as formas subtis de energia (Prana), e os planos de emoções e pensamentos, além da interface biológica com a qual estão relacionados. Se prestarmos atenção aos ensinamentos dos nossos antepassados através de culturas e civilizações, podemos perceber quão pouco conhecemos de nós mesmos. Eles parecem sugerir que este incrível “dispositivo”, o nosso corpo, é muito mais capaz do que pensamos. Mas afinal de contas, como sugerem, é uma máquina – nada mais.
Uma anedota sobre a escola Pitagórica compartilha que um candidato de estudos avançados, foi desafiado com a pergunta: “Você tem alma?” Para todos os que responderam afirmativamente a porta permaneceu fechada. A resposta correta foi: “Não, eu tenho um corpo!” Isto não é realmente uma questão intelectual, mas uma questão de identidade. “Quem sou Eu?” É uma questão filosófica fundamental que deve determinar o nosso modo de vida e a nossa relação com praticamente tudo… a começar por nós próprios, pelas nossas próprias personalidades. Sou uma alma – e tenho um corpo, tenho sentimentos, tenho pensamentos. São ferramentas, meios de interação que precisam ser orientados de forma particular e dominados. Caso contrário, as ferramentas tornam-se os nossos mestres e podem ser usados por outros, como os mestres da caverna que Platão refere, na sua famosa alegoria.
É aí que reside a nossa verdadeira liberdade de ser. Mas começa e continua principalmente em nós mesmos. É uma batalha interior, antes de mais nada, que ecoa em tantos mitos e alegorias. É uma batalha que exige um constante discernimento entre os meios e os objetivos, o interior e o exterior, o superior e o inferior, que facilita o nosso desenvolvimento na vida, individual e coletivamente, fluindo de dentro para fora. É a busca constante para revelar a verdade interior oculta. Somos seres humanos. – seres vivos. Nem máquinas, nem programas ou ferramentas.
Yaron Barzilay
Publicado em New Acropolis Library em 31-03-2021
Imagem de destaque: Pessoa utilizando um relógio inteligente. Domínio Público