Não é fácil transcender o tempo. Os seres humanos, geralmente, encaixam-se no momento histórico que lhes coube em sorte, sem conseguir ver mais além dos dias e das horas, sem encontrar o canal luminoso que une os feitos mais além das datas.

Por isso, estas linhas estão escritas para os que sabem recordar o passado pensando no futuro; para os que pensam que a história é o devir harmónico dos ciclos e que somos os seus protagonistas. Mas não um protagonista que se deslumbre com o elo da cadeia ao qual lhe coube aferrar-se, pois esse é um protagonismo pessoal que morre numa vida, mas aquele que sabe que é parte de uma cadeia, espiralada e ascendente. Esse é o ritmo e a dança da história. Aquele que sabe como se bebe no passado sem dormitar nele, compreende o seu presente sem pensar que está isolado na estepe do tempo e consegue construir um futuro que seja um exemplo para que, quando convertido em passado, possa ser uma fonte na outra volta dos ciclos.

Somente assim é que se pode entender a vigência do Ideal Cavaleiresco nos nossos dias. E estas linhas estão escritas para os cavaleiros de hoje, para os idealistas de sempre que jamais dão trégua à matéria.

Foi assim que há uns séculos, na cidade fortaleza de Camelot, encarnaria um mito tão antigo como o mistério ou a busca de Deus; a conquista do Santo Graal; ou o cálice que contém o Espírito; ou as tábuas do conhecimento primordial; ou a luz na essência das essências.

Mas como os mitos necessitam de componentes históricos que os manifestem, tornou-se necessário que nessa Idade Média que se iniciava, o símbolo acendesse novamente o seu antigo arcano. Artur Pendragon foi o escolhido. O homem mito. O homem história. Artur, Rei Urso, é um elo de uma longa cadeia na busca e conquista do Graal. Não foi o primeiro nem será o último.

Camelot seria o motor dos tempos que continuavam, sem o qual não seguiriam adiante as ideias puras numa idade negra. Mas, se para colocar em andamento um motor é necessário conhecer o seu mecanismo, para que um símbolo outorgue o seu significado é necessário saber quebrar a barreira da inércia e fazê-lo funcionar.

Do mito Artúrico entendemos que, como tal, encerra em si uma série de chaves. Analisaremos uma em especial: a do homem e da busca do seu próprio ser. Artur, a sua Távola Redonda, os seus cavaleiros, Merlin ou o próprio Graal, têm, por um lado, o enfoque histórico, por outro, o místico e, enlaçado com eles, o mito. Todo se harmonizam e completam, porque a história sem o mito é um deambular confuso pelo tempo, e o mito sem a mística converte os homens em escravos das formas aparentes que dão às suas ações e não das essências.

Por isso, quem souber quebrar a casca da história, descobrirá o mito e quando, já próximo das causas, as transcender, encontrará a mística, a causa oculta da história, a união. E assim, a história que se transforma em mito, sobrevive, porque se insere no plano temporal e, como símbolo, torna-se presente nas nossas consciências, fresco como no dia anterior, para fazê-lo descer e convertê-lo, uma vez mais, em história.

O Santo Graal não morreu. Está presente em nós, é preciso reencontrá-lo.

Mas só poderemos descobrir o mistério exterior quando tivermos dominado o interior, o do nosso próprio ser. Para descobrir o paradeiro do cálice de ouro e esmeraldas é necessário antes tê-lo conquistado. Quem não possuir para o interior jamais poderá ter para fora, já que funciona assim a inexorável marcha das ideias.

Os Cavaleiros da Távola Redonda prestes a partir em busca do Santo Graal. William Dyce (1806–1864). Public Domain

A Busca Interior

Artur e a sua mesa redonda, rodeada por noventa e nove cavaleiro presentes e um ausente, representa o homem em si mesmo, rodeado pelas suas qualidades e defeitos. O círculo é o símbolo da perfeição e a távola representa o esforço da vontade para a encontrar.

O rei encontra-se entre duas forças, como numa ponte, organizando o contingente para a batalha final. Por uma parte, Sir Mordred, o seu irmão, representa as forças do mal que nidificam no homem, rodeados por um grupo de cavaleiros que são como aqueles defeitos que combatem contra as partes nobres do indivíduo.

Por outro lado, Sir Lancelote, o aspeto positivo de Artur, o seu cavaleiro escolhido, a parte mais nobre do seu ser, que será o eterno inimigo de Sir Mordred. É a disputa constante entre o bem e o mal, entre o espírito e a matéria. O rei, no meio, com a dúvida, decido, ajudado pelo mago Merlin, que é como a voz da sua própria consciência, com quem fará de Camelot a Cidade dos Sábios.

A Rainha Guinevere. John Collier. Dominio Público

A rainha Ginebra representa a alma que, pertencendo a Artur, sente-se atraída pela sua parte mais sublime, Sir Lancelote do Lago, que na chave mítica é uma parte do próprio rei. Ao contrário do que outros comentaristas quiserem ver, esta relação amorosa é um símbolo do jogo da alma. É um amor de corações e não de corpos, constante na lenda cavaleiresca. A atração que Ginebra e Lancelote sentem torna-se intolerável para Sir Mordred, pois quando a alma se enamora do Ser, a matéria, a personalidade comove-se e tenta evitar o ocorrido utilizando as paixões, os prazeres e os apegos como meios. Qualquer engano é útil para afastar a alma da sua ascensão natural. Assim, no mito artúrico, Mordred e os seus cavaleiros maquinarão utilizando todas as artimanhas possíveis para conseguir o seu objetivo.

Lancelot na Capela, uma ilustração de The Book of Romance. Creative Commons

Mas mais além do corpo, mais além da alma, encontra-se o espírito, contido no cálice sagrado, o Graal. Deus em potência no homem. E para conquistar será necessária a batalha final. Nela, todo o corpo perecerá, morrerão os defeitos com Mordred, morrerão as qualidades com Lancelot. Artur deverá sacrificar-se na tentativa, para que um só cavaleiro, aquele que nunca se sentou na távola, o da cadeira vazia, perante o sacrifício dos corpos densos de cada ser humano, possa chegar em espírito puro à posse do cálice sagrado.

Sir Galahad. Arthur Hughes (1832–1915). Dominio Público

A Nova Ordem Cavaleiresca

Não é a primeira vez que este mito aparece. É um símbolo antigo, que encontramos na Índia, no Mahabharata, com Arjuna e a sua luta entre kuravas e pandavas; ou no Ramayana, com Rama e o rapto de Sita por Ravana; ou na Grécia, com Orfeu e Eurídice nos infernos; bem como na Pérsia com Zoroastro e a luta entre Ormuz e Ahriman. Enfim, a luta é constante, vem desde os primórdios dos tempos e deverá continuar até ao fundo dos mesmos.

Devemos recriar, perante a noite que se avizinha, uma nova Cavalaria, os novos buscadores do Santo Graal. Devemos reafirmar a verdadeira condição humana. É nosso dever reconstruir a ordem interior e a ordem natural.

Sempre que surgirem homens capazes de se reconquistarem a si próprios através do trabalho e do esforço, haverá homens capazes de reconquistar a história.

O motor da história não está na matéria mas na força do Ideal. Quando a história é possuída pela matéria, não anda, encontra-se detida. O motor apagou-se. As peças caem, oxidam-se. Tudo apodrece e corrompe.

Façamos com que a história funcione de novo. Não permitamos que o ácido do materialismo corroa a engrenagem. Formemos a Ordem, busquemos o Graal.

Rei Arthur. Charles Ernest Butler (1864–1933). Dominio Público

O devir deteve-se e urge devolver-lhe o movimento…

Aos valentes. LAUS DEO

Juan Manuel de Faramiñán Gilbert
Escrito em 1975