“Toda a mitologia de Shiva é uma enumeração das surpreendentes verdades da ciência da Consciência” – Subash Kak

Os Shiva Sutras são uma serie de aforismos ou máximas de sabedoria (sutras) atribuídos ao sábio Vasugupta que viveu no séc. IX a.C.. São-lhe atribuídos uma origem divina e diz-se que Vasugupta os recebeu de uma personagem celestial (um siddha), ou que o Deus Shiva lhos ditou numa visão espiritual, ou que lhe indicou uma rocha próxima onde encontraria os escritos. A rocha é hoje o monumento denominado Shankaropalo, um lugar de peregrinação de devotos. Estes aforismos causaram um grande impacto no seu tempo, pelo que dispomos, já desde essa época, de vários comentários, como o Vimarshini de Kshemaraja, o mais famoso dos comentários, ou o de Bhaskara, chamado Varttika, do séc. XI, comentários sem os quais, às vezes o texto é quase ininteligível. Em Portugal temos acesso à tradução (inédita no momento em que escrevo este artigo) do jovem professor de Sânscrito e Iconografia hindu, Ricardo Louro Martins, na qual nos fundamentaremos para tentar entrar nesta obra que expõe como poucas os mistérios da consciência como raiz de tudo quanto existe. Esta afirmação da actual Física Quântica não é senão a verificação do que os egípcios escreveram na sua máxima, hoje conhecida como o primeiro Principio de Kibalion “Tudo é Mental”, é a mesma que guia estas 77 máximas de saber condensado.

Tal é a importância desta obra que significou o florescimento do chamado Shivaismo de Cachemira, uma Escola de estudos sobre a Consciência, ainda que, como todas elas, firmemente enraizadas nos Upanishads (aos quais tantas vezes são semelhantes a esta colecção de máximas) com uma dinâmica própria. Os especialistas discutem se o número de máximas é 77 (versão de Jaideva Singh), 78 (Subash Kak) ou 79. Em qualquer caso o número não é casualidade, nem tão pouco a divisão que se faz do texto em três partes. O número 77 é 7 x 11, e o número 11 na filosofia védica está associado aos ventos espirituais de Rudra-Shiva, sendo Rudra a forma mais antiga de Shiva, “o benevolente”, posterior na história, e mais associado ao hinduísmo que à religião védica propriamente dita. E o número 7 é a chave da mesma natureza activa, indica como esta se estrutura piramidal e organicamente.

Shiva Nataraja, como poder destruidor e renovador do mundo / wikimedia

O estilo do texto, como o dos Sutras, ou em geral, de toda a literatura védica, é sintético, a sabedoria é oferecida em séries de imagens mentais ou em máximas altamente condensadas que quase parecem fórmulas algébricas. As traduções são tão diferentes que o leitor ocidental pode ficar desorientado e ainda decepcionado e sem esperança de encontrar o miolo destes santos ensinamentos. O autor destas linhas pensa do mesmo modo que a incomparável H. P. Blavatsky que mostrou com mil e um exemplos que estas obras escritas devem ser lidas com a ajuda de certas chaves de interpretação, que remetem na linguagem dos símbolos a 7 grandes Ciências como a Teogonia, a Alquimia, a Astronomia, Psicologia, etc. (1) Por exemplo, o engenheiro e investigador Subash Kak, que tão valiosos contributos fez, reivindicou o formidável tesouro do conhecimento védico e realizando comparações com a ciência actual; na tradução que faz dos Shiva sutras enfoca-os como uma Ciência da Consciência, e a interpretação é portanto neuropsicológica. Jaideva Singh centra-se no valor de Shiva como Deus dos Yoguis e as máximas são lidas relacionando-se com o despertar dos seus poderes. Por exemplo na máxima número 14, segundo a versão de Subash Kak, diz “o observado tem uma estrutura”, mas na de Jaideva Singh especifica mais: “todos os fenómenos objectivos externos e internos são como [convertem-se para um yogui iluminado] o seu próprio corpo”, referindo-se assim à experiência extática ou de samadhi do yoga que sente o universo inteiro na sua mesma carne, sangue e ossos, no seu próprio corpo, o micro-cosmos do macro-cosmos. O que diz literalmente este aforismo ou sutra é que “o corpo, o veículo” (sharira) é o “fenómeno, o visível, manifestado”. Prefiro aqui, por exemplo, a versão sem demasiadas transformações (e que depois cada um faça as que quiser, saiba ou possa), quase literal, símbolo a símbolo, de Ricardo Louro Martins, que o traduz como “o corpo é o manifestado”. Pura filosofia Kantiana, o corpo é o manifestado, aquilo que se expressa, é o fenómeno; porque o noumeno permanece sempre oculto. Tudo aquilo que seja objecto de conhecimento, em qualquer dos planos da natureza, por mais subtis que sejam, sempre será o “corpo” ou o “veículo” do sujeito ou o Eu, sempre oculto nas suas vestimentas. No comentário chamado Vimarsini de Ksemaraja, diz, ao explicar o significado deste sutra:

O que é perceptível, seja internamente ou externamente, todo ele aparece ante o Yogui como o seu próprio corpo, ou seja, idêntico a si mesmo e não como algo diferente. Isto é assim a causa do seu grande desenvolvimento (de identidade com o Universo consciente). O seu sentimento é Eu sou isto, tal como o sentimento de Sadasiva relacionado com o universo inteiro é Eu sou isto.

E este comentário é relativo à máxima Drsyam sariram (o corpo é o fenómeno), mas neste caso comenta também lida ao contrário Sariram drsyam (o fenómeno é o corpo) e diz:

Ante o Yogui, o corpo aparece como um objecto perceptivel, um fenómeno como azul, etc., e não como um perceptor, como no caso dos seres empíricos ignorantes. E isto é assim tanto se este corpo o é na forma de delta, ou seja, de corpo físico (como na consciência de vigília); se está na forma de dhi, ou da mente (como no sono), ou prana (como no sono profundo), ou como sunya ox, mero vazio (como no caso de sunya pramdta).

Assim, no corpo e em cada coisa externa, o seu despertar (ou vigilância) é a de uma consciência indiferenciada, do mesmo modo que o plasma do ovo do pavão real é um plasma indiferenciado.”

Sri Yantra, cujos 9 e 43 triângulos estão associados a Shiva, à sua consorte, ou Shakti e ao universo nascido da consciência / wikimedia

Continuando a análise palavra a palavra do sânscrito realizado pelo meu querido amigo Ricardo Martins, e numa versão livre, podemos traduzir os 77 Shiva Sutras assim:

 

I

  1. O Eu é a consciência.
  2. O conhecimento é o limite.
  3. A matriz das origens, a ilusão é a ignorância, o corpo da acção.
  4. O alfabeto, a mãe, é a causa, base do conhecimento.
  5. Shiva, o terrível, a Grande Montanha é a sua trabalhosa elevação.
  6. Dada a união dos círculos (chakra) de poder, todo, o universo inteiro, dissolve-se.
  7. Os estados de vigília, sonho e sono profundo vivem unidos, estão destinados ao êxtase do quarto.
  8. Conhecer é estar acordado.
  9. Sonhar é especular, ou seja, pensar, calcular, imaginar, duvidar.
  10. O estado do sono profundo, viver na ilusão é a ausência de discernimento.
  11. Aquele que é Senhor dos Sentidos, pura consciência (Shiva), banha-se na alegria da Tríade.
  12. Admiráveis são os lugares ou degraus em que se verifica a União Divina (Yoga)
  13. O poder da vontade e a sua luz (Uma) é sempre puro, incriada (não pode ser manchado)
  14. O corpo, o veículo é o manifestado, o fenómeno.
  15. O fenómeno assume a aparência do sonho, quando se verifica a união da mente com o coração-consciência.
  16. Aquele que por meio da sua vigilância incessante extinguiu os animais das suas paixões, une-se ao Princípio Puro (Shiva, a Consciência Absoluta).
  17. O conhecimento do Eu é um conhecimento divino.
  18. A felicidade da união e a plenitude é o êxtase do mundo, e aquilo que todos buscam.
  19. O nascimento dos corpos verifica-se pela união dos poderes (criadores)
  20. Todo o conflito no universo é devido à união e à separação dos seres.
  21. A superioridade sobre os círculos adquire-se com o nascimento do conhecimento puro.
  22. A experiência da força dos hinos (mantra) reside na união gradual com o Grande Lago (Shiva, a Grande Consciência)

 

II

  1. O hino, o verdadeiro mantra é a mente.
  2. A realização vem do esforço, do trabalho, da actividade.
  3. O mistério dos hinos (mantras) reside na existência e bondade do corpo da sabedoria.
  4. O sonho e ilusão da sabedoria mundana é expandirem a mente na matriz
  5. No natural crescimento da sabedoria está o poder mágico do estado de Shiva (a Grande Consciência)
  6. O caminho é o Mestre
  7. O perfeito conhecimento é o dos círculos da Mãe
  8. A oferenda é o corpo e o veículo
  9. O alimento é o conhecimento
  10. Onde o conhecimento é destruído surge a aparência do sonho (a fantasia)

 

III

  1. A mente é o Eu.
  2. O conhecimento é o limite, o conhecimento ata.
  3. A ilusão (maya) é não discernir as verdades, não discernir os frutos e os inícios das acções.
  4. A destruição está no corpo das acções.
  5. A separação, emancipação e victória sobre os elementos reside na união dos canais (nadi).
  6. O poder sobrenatural vem da interrupção da ignorância.
  7. A victória do conhecimento inato é a victória sobre a ignorância, o que dá infinita felicidade.
  8. O desperto é um segundo fazedor, um raio de luz (é cocriador junto a Deus).
  9. O Eu é o Actor-Danzarín.
  10. A alma é o cenário, o campo de batalha.
  11. Os sentidos são os espectadores.
  12. O Poder da pureza e bondade, vem do controlo do pensamento.
  13. A realização é a liberdade.
  14. Assim é aqui como em todas partes.
  15. O estado de atenção e devoção, de concentração, é a semente.
  16. Aquele que assumiu a verdadeira postura, a verdadeira atitude, desaparece no Grande Lago da felicidade.
  17. Ele (o Yogui iluminado) determina e cria a sua própria riqueza e medida.
  18. Se queres destruir a prisão da existência, não assassines em ti mesmo a sabedoria.
  19. Mahishvari e as outras grandes senhoras, assim como as mães dos animais residem nas letras guturais.
  20. O quarto (turya, o estado transcendente) deve ser derramado como o azeite nos três (vigília, sonho, sono sem sonhos).
  21. Realizando a imersão, deve entrar (o Yogi) com a sua própria mente.
  22. A percepcão da igualdade está na prática da respiração.
  23. A origem última dos seres vive no seu centro.
  24. A reaparição daquele que foi destruído reside na soma de dúvidas sobre os objetos e as medidas.
  25. Comparável a Shiva, a Grande Montanha é ele (o yogui iluminado).
  26. O seu discurso é sempre uma oração, um hino sagrado, um canto de poder.
  27. O que faz é puro cerimonial.
  28. Conhecer-se a si mesmo é a grande dádiva, a grande oferenda, o principal magistério.
  29. Aquele que é pastor (de homens) deve beber na fonte de conhecimento.
  30. (Para o yogui que se converte em Shiva) o Universo é o desabrochar dos seus próprios poderes.
  31. Ele é continuidade e dissolução.
  32. Para o Conhecedor, nada muda, apesar disso (da continuidade e dissolução de tudo).
  33. Pois vê mentalmente a felicidade e o sofrimento como alheios a ele mesmo.
  34. Já que livre disso está, livre e só.
  35. É o seu “Eu de acção” quem se une à ilusão (não Ele mesmo, que permanece como Divino Espectador).
  36. Desaparece a diferença entre vontade e acção.
  37. O poder de acção surge do próprio conhecimento de si mesmo.
  38. O primeiro vivifica os três.
  39. Os órgãos dos sentidos são semelhantes ao estado da mente.
  40. O movimento deve ser guiado, o caminho deve ir fora do desejo (até ao interior).
  41. E dele resulta, a extinção da vida (como um fogo que já devorou toda a madeira) e resta a sabedoria (luz do conhecimento).
  42. Aquele que se libera de todas as vestimentas dos elementos é o verdadeiro Senhor.
  43. O vínculo com a vida (prana) é assim natural.
  44. O que mais se pode dizer sobre a unificação na ponta do nariz da corrente lunar (ida) e solar (pingala) e a central (Susumna)?
  45. Que retome de novo a visão interior até si mesmo.

Para descobrir como estas máximas, em geral todos os sutras, são como sementes que se abrem na terra da reflexão, mais e mais e que poderíamos fazer deles bosques de compreensão filosófica, podemos tentar ver como algumas abrem os seus primeiros rebentos. E pedindo antes desculpas se a terra não estiver à altura da qualidade das sementes.

Nataraja – Rei da Dança Cósmica / yoga world reach

Pois bem, do mesmo modo em que tantas outras obras de carácter mistérico, a primeira máxima dá a chave de toda a obra. Os kabalistas dizem que toda a Torah está sintetizada no seu primeiro livro, o Genesis, e este no seu primeiro capítulo, o mesmo no seu primeiro versículo, “No início os Deuses criaram o Céu e a Terra”. E ainda este na sua primeira palavra Bereshit, “no começo”, e assim toda a sua Lei Sagrada, dizem, estaria expressada como símbolo e número pela letra B (de Beth), que é com a que tudo começa: letra que significa “Casa, Morada”, e é símbolo do Espaço Mãe disposto a dar à luz.

Nos Shiva Sutras, a sua primeira máxima é “O Eu é a Consciência”, e indica que esta obra é um tratado sobre a Consciência, suporte do Eu, o Divino dançarino (como Shiva Nataraja) ou o Espectador Silencioso de quanto existe, o Eu como Fogo Central, o Eixo em torno do qual tudo gira, se o vemos num sentido total ou no humano, como raio do Espirito Universal, o fio de Ouro ou Sutratma cuja infinitude atravessa impávida os tempos e espaços. O Eu é a Árvore da Consciência do Bem e do Mal, e desperta com a mente, encontrando-se entrelaçado, mas sem poder misturar-se, com a Árvore da Vida. Filosoficamente podemos afirmar que o Eu é a Chama divina que portamos no caminho da vida, e que devemos proteger de ventos e perigos se não queremos ficar às escuras, e portanto sem poder avançar mais, sem saber diferenciar o amigo do inimigo. O Eu é o verdadeiro sujeito da existência, a Árvore dos Mistérios e da Hierarquia de luz, quem faz retornar à unidade tudo o que transita no caminho de retorno a Deus. Psicologicamente o Eu Consciência é o centro de todos os factores que a rodeiam, e quem dá vida à memória, à sensação, à imaginação e à vontade, é o verdadeiro forjador, desde dentro, do carácter; a substancia ou luz da qual estão banhados ou ainda formadas estas faculdades ou poderes da alma, a que move todos os factores da vida interior. Buscamos, por exemplo chaves práticas para melhorar a memória, ou a imaginação, etc., mas a verdadeira chave é aumentar a consciência, aumentar a presença do Eu, e ainda o interesse inegoísta por algo que surge quando pousamos a consciência sobre um tema ou enfoque da vida: assim sucede ao biólogo que vê num passeio campestre o que um geólogo não vê, e vice-versa; o ignorante não vê nada pois nada arde no lugar reservado para a sua consciência, e os seus interesses estão associados exclusivamente à satisfação dos seus desejos ou a proteger-se dos seus medos.

Numa chave astronómica, esta máxima refere-se ao Sol Central, que faz girar, ou em torno ao qual giram todos os planetas, cada um deles dando a sua nota na escala da Música das Esferas. Se a consciência aumenta o Eu aumenta, até que na expansão definitiva, une-se, livre da atracção terrestre, com o Fogo Universal ou o Eu Universal que a filosofia Hindu chama Brahman.

Consoantes sânscritas / Omniglot

A segunda máxima Jnana bandah, é assombrosa, e podemos traduzi-la como: “O conhecimento é o limite”, ou seja, o que sabemos sobre as coisas é como um ecrã ou barreira mental que não nos deixa caminhar em direcção ao seu mistério, ou a famosa afirmação de que, “a ideia que temos da árvore não nos deixa ver a árvore”; geramos categorias ou “caixas mentais” sobre tudo o que se aproxima à nossa consciência, ainda antes de que chegue a esta, e perdemos assim a oportunidade de ver mais além, de ver em tudo (pessoas, acontecimentos, seres da natureza, etc…) portas que nos levam ao infinito. O conhecimento, desde este ponto de vista, ata-nos e imobiliza-nos (este é o significado da palavra sânscrita bandha, idêntica à portuguesa, como a venda que nos cobre os olhos). Quiçá devêssemos lê-lo ao contrário, os nossos próprios limites (limites que não podemos obviar a não ser que nos dissolvamos no nada), chegam até onde o nosso conhecimento for. Se aumentamos o nosso conhecimento, expandimos os nossos limites, somos mais livres que antes, chegamos onde antes não chegávamos, pois a árvore, sem a ideia da mesma, não a podemos ver, ou não sabemos o que vemos; o que se não é o mesmo é quase. E se o que conhecemos pode chegar a limitar, mais o faz ainda aquilo que falsamente acreditamos que conhecemos, como o que nos acontece com a opinião rápida e superficial que fazemos das pessoas que nos rodeiam ou os preconceitos baseados em opiniões não muito sólidas, que dirigem a nossa vida, ou os paradigmas da Ciência que fazem que esta fique imobilizada durante séculos no que é absurdo.

O que conheces encarcera-te, mas não é uma prisão o próprio espaço e tempo? Não é uma prisão a causalidade em si mesma, não é uma assassina do Eterno? E no entanto, para aquele que se conhece a si mesmo, para quem vive no centro de si mesmo, dizem os místicos que vive o Universo inteiro, pois “Deus é um Circulo cujo centro está em todas as partes e a circunferência em lado nenhum”; pois tudo o que existe, ou surge, ou faz eco e reflete-se no espaço mágico do coração humano.

“A matriz das origens, a ilusão é a ignorância, o corpo das acções”. A primeira parte da oração é, em sânscrito, yonivargah, que significa, precisamente, “grupo das origens, ilusão” e também “criação, diferenciação”, sendo yoni, a matriz feminina. É que a ilusão está formada pelos infinitos receptáculos (yonis) da vida, que crêem ou sentem que se apropriaram dela. Cada ser vivo, cada forma de existência é um yoni, e todos eles estão fecundados pelo mesmo Eu Universal ou Corrente da Vida. O segundo termo desta oração ou aforismo é kala-sharira, que significa, literalmente “corpo das acções, ignorância”. A aparente acção do mar é na margem que morre. O mar é a consciência, as infinitas margens onde parece que morre e se derrama no ondular. Cada margem é um destes yonis ou receptáculos de vida, e o yoni-vargah é o conjunto ou soma de todos eles. As acções, o “corpo das acções” são as aparências de formas nas margens que gestam estas ondas do mar de consciência, aparências porque são transitórias, não duram sempre, avançam e retrocedem na margem da manifestação, nascem e morrem. A ilusão reside em cada um destes yonis ou formas-receptáculo de vida. É tal como quando dizemos, “eu fiz isto”. Fiz eu, realmente, sozinho, ou é a corrente de vida que em mim o fez? Se o rei diz, “construi este castelo”, não é definitivamente certo, pois quiçá ele não tenha movido uma só pedra; se o obreiro o diz tão pouco é certo, pois ele é o dono da sua pequena acção, nada na magnitude desta obra, nada se não tivesse sido convocado para o mesmo, nada se não tivesse braços e pernas que executassem o seu labor, logo é tão dono de dizê-lo como o rei, pois quem finalmente fez o trabalho foram as mãos, os braços, as pernas; e se são estes quem se querem apropriar da acção, as células protestariam reclamando o seu “salário”, e então os átomos alçariam a voz ou sairiam dos seus assentos fixos, fora de si pela injustiça cometida. Nisto, os electrões sairiam das suas órbitas pelo egocentrismo do átomo, etc, etc, etc. E no entanto cada um foi penetrado pela vontade de fazê-lo, pode-se dizer que o fez, e que a vontade é o verdadeiro e único rei de toda a existência. O rei, se assumiu a vontade, é quem construiu o castelo ao viver e transmitir o relâmpago deste fogo criador (na Índia o chamado Fohat), desta necessidade de fazer, ao dar as ordens e abrir os caminhos da acção; o obreiro, é rei de si mesmo e dos seus actos ao assumir como própria esta vontade no acto da sua obediência, e assim as mãos e as células, etc… Todos eles são unificados nesta cerimónia de vida, a ilusão é a de cada um que quer apropriar-se do acto inteiro.

Mantra dedicado a Shiva, OM NAMAH SIVAYA, em caracteres sânscritos um pouco livres / wikimedia

A mãe é a base do conhecimento. Esta máxima, tão simplesmente exposta, é também assombrosa na sua simplicidade e profundidade. Sem mãe, quem pode conhecer, se nem sequer existe? E quem diz mãe é tanto num sentido literal como metafórico. Por exemplo, uma Escola de Filosofia é a “mãe” de todos os discípulos que forja, pois há nela um despertar da vida da consciência. Mas “mãe” é também a natureza, mãe de tudo o que vive, e sem a qual não poderíamos nem respirar, é a base ou a causa (pois a palavra adhisthana significa ambas as coisas) de tudo quanto conhecemos, pois as noções que elaboramos sobre a realidade (que está sempre mais além) usam como base imagens dos sentidos, e os sentidos são sempre janelas abertas à natureza; sejam sentidos externos ou internos, tão característicos dos sábios. Além disso a mãe é o primeiro que conhecemos, ao nascer ou quando a alma é associada a um novo corpo na quarta lua da gestação, e vivemos no líquido amniótico da mãe. H.P. Blavatsky, diz magistralmente como sempre a este respeito: “A primeira percepção que o homem tem da procriação, é feminina; porque o homem conhece a sua mãe, mais do que ao seu pai. É por isso que as divindades femininas foram mais sagradas do que as masculinas. A Natureza, portanto, é feminina, e até um certo grau, objectiva e tangível; e o Principio espiritual que a fecunda está oculto”.

A palavra que usa para “mãe” é matrika, que significa também, “mãe divina, shakti, principio criador feminino e alfabeto”. Logo, um dos significados desta quarta máxima dos Shiva Sutras é considerar o alfabeto como matriz fonética e como base do conhecimento, a matriz a partir da qual surgem os sons com que damos forma aos nossos pensamentos, assim ficam estes pensamentos vestidos e armados tendo como base sons codificados. Podem também fazê-lo com base em imagens mentais, como no caso da linguagem dos surdo-mudos. E mais esotericamente ainda se formos ao significado simbólico e sagrado do Alfabeto como o conjunto de poderes da Alma da Natureza, cada um deles representado, como faz Platão no Crátilo ou Eliphas Levi nas suas obras, com uma das letras. E do mesmo modo que podemos codificar harmonicamente a infinidade de cores em 7, assim sucede com a infinidade de sons pronunciados com o aparato fonético que podem ser codificados harmonicamente e colocados em consonância com os Poderes, ou as ideias-raiz ou formas geométricas base, que nos permitem a matemática do conhecimento. Dada a idiossincrasia profundamente mental e filosófica destes povos indo-arianos, em que para eles tudo é construído primeiro pela mente, e daí a importância do alfabeto e toda a sua simbologia, como o demonstra o grande número de referencias a respeito nos Upanishads, ou a dada (que não é apenas conceptual, mas também mágica) aos mantrans ou inclusivamente às sementes deste hinos sagrados, os bija-mantrams, do qual o rei é o AUM, emblema do Triplo Deus ou Logos que rege a Natureza (Criação, Conservação, Destruição).

Se na terceira máxima se fala da Grande Mãe (a Natureza numa chave, o alfabeto noutra) como a base do conhecimento, na quarta refere-se à sua elevação, à sua altura, ao esforço necessário para elevar a própria fortaleza interior, o castelo espiritual, a Acrópole no mais elevado de si mesmo: o quadrado da base (a natureza) e a elevação interior constroem a Montanha (um dos símbolos do mesmo Shiva), que é o mesmo que dizer, a Pirâmide. O sutra diz, literalmente udyamo bhairavah, e a primeira palavra significa “elevação, esforço” e a segunda é um epíteto do deus Shiva e significa “terrível, montanha”. Pelo que podemos também traduzi-lo dizendo que, se a Grande mãe é a base, “Shiva – a consciência motor – é a sua elevação”, ou seja, o que permite esforçarmo-nos. Também podemos lê-lo como ”O terror – dos conflitos e a energia que liberta – é o que permite elevar a Vida, o que permite o esforço.” Ou seja, que esta não se deslize inadvertidamente sem pena nem glória, sem experiencia nem sabedoria, pela planície do medíocre, sem nenhum tipo de dificuldade nem de desafio. Ai de quem nunca sofreu um desaire, que nunca enfrentou uma adversidade! Pois onde não há resistência, nada se pode fazer crescer, simplesmente há uma expansão, como a de uma bolha de ar no vazio.

E assim, desde um passado que nos parece remoto, como se estivessem escritas em letras de fogo, os Shiva Sutras mostram-nos uma sabedoria tão válida ontem, como hoje e amanhã: tal é o tesouro dos clássicos, superaram a prova do tempo.

 

Artigo escrito em Almada, 18 de Julho de 2014
Notas:
  • Segundo H.P.Blavatsky, ver a Linguagem do Mistério e as suas chaves, cada uma destes Ramos de Conhecimento subdivide-se em outros 7, de modo que as ciências são finalmente 49. As que mencionamos antes não sei se são as 7 principais ou as secundárias.