Quando a esfera de ar se manifesta entre os humanos – e nos animais – surge a psique e a sua expressão característica: os sentimentos. É um mundo amplo, onde talvez Maya se encontre mais à vontade que em qualquer outro lugar. Nunca o homem é tão sensível nem tão falível, nunca é tão débil nem tão forte, nunca é tão grande nem tão pequeno, nunca é tão fácil de convencer como quando se encontra dentro do jogo dos sentimentos.
Aqui tudo é ar: nada da solidez da terra onde apoiar-se, nem nada da profundidade racional do fogo da mente onde justificar-se. Os sentimentos movem-se, aéreos, oscilando geralmente entre os dois perigosos extremos: o prazer e a dor, o gosto e o desgosto. E à força de tanto pendular, o homem toma consciência do sofrimento: quando vive o prazer, teme perdê-lo, e então sofre; quando vive a dor, não tem outra coisa senão sofrimentos falíveis nesta esfera sentimental: porque, seja qual for o matiz afetivo que nos domina, temos sempre tendência para cair na dor.
Falta, sem dúvida, encontrar o sentimento ideal do meio termo superior: aquele sentimento que supere a dualidade do jogo, que não oscile para o prazer ou para a dor, mas que se situe no seu pedestal e possa contemplar o jogo de Maya, sem intervir nele nada mais que para compreendê-lo.
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Mesmo que todos se encaixem no mesmo mundo, podemos distinguir diferentes qualidades de sentimentos. Há alguns mais perfeitos, e também os há mais grosseiros. Maya ensinou-nos, à medida que jogamos, que as melhores coisas são aquelas que perduram mais tempo. É com este ensinamento em mãos que reconheceremos os melhores sentimentos pela sua possibilidade de maior duração, e estaremos frente a sentimentos vulgares quando não passam de centelhas acesas tão rapidamente quanto apagadas. Tudo o que dura tende a escapar do jogo de Maya; todo o variável continua o jogo da vida manifestado na busca de novas doses de experiência.
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Como nascem os sentimentos? Nascem, em primeiro lugar, porque há um receptáculo, que é o nosso mundo psíquico, capaz de lhe dar corpo e forma. Este mundo da psique reage criando sentimentos cada vez que um agente ativo o coloca em funcionamento. Toda a sensibilidade da Natureza participa neste jogo, e quando Maya se veste com os seus mais belos enfeites, ou quando trata de atemorizar-nos expondo a sua força ancestral, numa e noutra oportunidade, os sentimentos abrem-se perante ela.
As coisas atraem-nos ou repelem-nos; tudo penetra na nossa psique através de uma de duas portas: ou o gosto ou o desagrado, e assim sentimo-nos repelidos por alguns seres, e atraídos por outros. Vivemos a vida “sentindo-a” desta forma simples, até que sejamos capazes de despertar novos e melhores sistemas vitais.
De onde vêm os sentimentos? De outros sentimentos. Quando a Natureza vibra, Maya entra em ação. Maya joga com objetos sensíveis. Da sensibilidade de Maya vêm os nossos próprios sentimentos.
Como crescem, como manter os sentimentos?
Imersos nas redes de Maya, podíamos acreditar que todas as emoções, positivas ou negativas, são fruto da casualidade, que nascem, vivem e morrem sem seguir lei nenhuma, nem ordem estabelecida. Assim, acostumamo-nos a recebê-las como quem vê cair a chuva, e a sentir uma vaga nostalgia quando as vemos desaparecer, sem saber o que fazer para as reter ou prolongá-las. Toda a forma mental é, portanto, inútil, pois não passa de uma casca vazia para cobiçar um sentimento que já não existe mais.
No entanto, os sentimentos não são fruto da casualidade. Da mesma maneira que nascem segundo certas regras, vivem e mantêm-se também segundo certas normas que convém conhecer. Conhecer estas normas é levantar um pouco o véu de Maya e afastar-se do seu jogo, que precisa de nós frágeis e inseguros, mutáveis e sofredores, para aceitar, desta forma, tudo o que nos queira impor.
Se aprendemos no plano físico que todos os objetos requerem manutenção para subsistir, como não haveriam de requerer manutenção os sentimentos para perdurar? Se uma máquina é oleada, se um carro é lubrificado, se o mobiliário e a roupa são limpos, como não precisaríamos de limpar e “olear” os sentimentos? Se se alimenta um corpo para que não adoeça e desfaleça, como não haveriam de alimentar-se os sentimentos?
Um sentimento cresce e mantém-se com grande paciência e esforço. É como uma pequena planta cujas raízes têm de se cuidar. Qual é a raiz do sentimento que estamos a gerar em nós? Tendo-a reconhecido, sabendo como nasceu, devemos regar diariamente essa raiz original para que, vivendo ela, viva toda a planta. Mas, insistimos, faz falta uma grande dose de constância: não se pode querer que um sentimento viva porque sim; isso seria como reconhecer que os seres vivos vivem porque sim, e que morrem porque sim, sem razão alguma, regidos apenas pela absurda casualidade.
Qual é o melhor alimento para um bom sentimento? Basta umas gotas de tolerância… Saber que as coisas que amamos não são perfeitas, tal como nós mesmos não o somos. Aceitar estas imperfeições, não lhes permitindo que destruam os nossos sentimentos. Mas suavizar essas imperfeições pouco a pouco, começando por nós próprios, e continuando para as coisas que amamos.
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Os sentimentos mantêm-se puros quando, como em todas as questões da vida, não admitimos neles misturas. Tal como ninguém atiraria um diamante transparente para a lama, não podemos dar-nos ao luxo de estragar os nossos sentimentos elevados e mais ou menos duradouros, enlameando-os com as dúvidas, o rancor, a malícia, a ira, a apatia… O bom jardineiro remove as ervas daninhas que atacam as suas plantas; e o homem de sentimentos saudáveis cuida das joias das suas emoções como se fosse o melhor dos seus adornos.
A nobreza dos sentimentos é uma questão de altura: quanto mais nos aproximamos da coroa de Maya, mais digno é o nosso sentir. A nobreza perde-se nas nossas quedas, quando os olhos descem aos pés de Maya, quando em vez de céu nos alimentamos de terra. E o sentimento – como dissemos – é aéreo: ele está melhor nas nuvens que na lama…
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Quando os sentimentos se desviam – quando se misturam, caem, degradam-se, atrofiam-se ou se agigantam-se como um cancro – estamos frente a perigosos processos de desnaturalização. Então Maya já não joga connosco; até ela se retira horrorizada do medo obsessivo das paixões e da loucura progressiva. Maya é capaz de jogar até com os véus do ódio, mas não encontra espaço para as aberrações. Muitas vezes, aquilo a que chamamos “loucura” não é outra coisa que um total desajuste com respeito à riquíssima Natureza, onde tudo se encaixa, desde que não nos furtamos às suas leis.
Aqui já não podemos referir-nos a sentimentos: o que foi a fina planta nas mãos de um cuidadoso jardineiro, é agora um seco ramo de espinhos que magoam a quem o tocar; é flor carnívora que come tudo o que dela se aproxima… É paixão descontrolada, é desejo mórbido, é obsessão fixa e desmedida, é um andar em círculo descontrolado que já não encontra o seu centro…
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Morrem os sentimentos? Certamente, como todas as coisas vivas, mas depende de nós a sua duração. Se deixarmos de tomar conta da nossa planta, que é uma joia, ela começará a degradar-se antes do tempo.
Se nos aceitarmos a nós mesmos tal como somos, mas exigimos dos demais – e de todas as coisas em geral – uma perfeição absoluta, decretamos a morte dos nossos sentimentos. Se os outros devem compreender-nos, mas não nós a eles, somos incapazes de sentir. Se só sabemos pedir, mas não nos preocupamos em dar, não há sentimento possível.
Maya recolherá então, piedosamente, os restos despedaçados daquilo que alguma vez foi, e depositá-los-á num lugar seguro até que, depois das necessárias transmutações, renasçam para voltar a participar do jogo ativo.
Morreu em ti um sentimento? Não temas: nada morre. Tudo se transforma. Até mesmo a tua psique. Da tua aparente apatia, da tua terra árida de Inverno, aparecerá um novo broto de amor ou de ódio, e voltarás a jogar com as pedras preciosas dos teus sentimentos, mesmo que não os reconheças como tal… Também isto forma parte do jogo de Maya.
Delia Steinberg Guzmán
Extraído do livro Os Jogos de Maya. Editorial Nova Acrópole
Imagem de destaque: Dom Quixote e Sancho Pança, em representação gráfica de 1863, do ilustrador Gustave Doré. Domínio Público