Talvez a gota de água saiba que está no Oceano, mas será que sabe que o Oceano está dentro dela?

Pensamento Zen

Mãe de todas as mães, fonte inesgotável do plasma universal, a água é o berço da vida. Em cada ser humano permanece uma memória oceânica, tão profunda e misteriosa como a nossa alma, sempre em suspenso entre dois mundos: o consciente e o inconsciente, o visível e o invisível.

Nas profundezas do Oceano permanecem os vestígios do passado e os sonhos do amanhã. Entre a Terra sólida que nos sustém e o mistério do Além está o Oceano, espelho movediço de todos os horizontes possíveis da alma peregrina. O passado e o futuro dormem nas suas águas ainda intocadas pela luz solar da plena consciência e, em cada travessia por essas águas insondáveis, ansiamos pela terra firme, onde vamos poder construir futuras plataformas para novas experiências.

À semelhança do nosso planeta, somos compostos de dois terços de água, de natureza polar e circular. A água possui um poder penetrante e absorvente, apta a transportar os nutrientes necessários para a manutenção da vida, convertendo-se em suporte de informação para todos os macro e micro-organismos.

A água tem o poder plástico de assumir todas as formas, sem se apegar e identificar com nenhuma delas: ora sólida como o gelo, a neve e o granizo, ora líquida como a chuva, os rios, os mares e oceanos, ora gasosa como o vapor e, por vezes, também ígnea ou mercurial, na linguagem alquímica.

Composição fotográfica dos três estados físicos da água na natureza: líquida no oceano e nas gotículas das nuvens, sólida no gelo e gasosa no vapor de água na atmosfera (invisível). Creative Commons

A água é o solvente universal que absorve, envolve, liga, recebe, une, amolece, dilui, dissolve, reproduz, reflete. Ela é o espelho narcísico da beleza do mundo e o reflexo do Espírito de Deus que flutua na sua superfície.

Os Sábios da Antiguidade grega, como Tales de Mileto, consideravam a água como Princípio de todas as coisas. Heráclito de Éfeso afirmava que “não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio porque as águas se renovam a cada instante.”

O ciclo da água é redondo, operando num circuito fechado, sempre imutável. A água dos mares evapora-se na atmosfera, sob o efeito do calor do sol, formando as nuvens que se moverão sob a influência dos ventos. Auxiliadas pelo efeito da gravidade, as gotículas que compõem as nuvens tornam-se, a pouco e pouco, mais pesadas, descendo de volta, ao solo, sob a forma de precipitação (chuva, granizo, neve). Esta água da chuva alimentará os lençóis freáticos subterrâneos, renovando os rios que, por sua vez, desaguarão no mar. E assim, do mar ao céu, do céu à terra e da terra ao mar, a viagem da água é “Panta Rhei”, um fluxo contínuo.

A Água e as suas Metamorfoses

Como o rio Proteu da mitologia grega, que podia assumir mil formas, a água serve de suporte para ligar os três mundos: o físico, o psíquico e o espiritual.

No físico a água não é apenas H2O, mas um universo em si mesmo. A água é a matriz de todos os nascimentos, oceano primordial que viu nascer os Deuses e os Mundos. Sangue da terra, os rios são a suas veias, que recolhem em si a água dos capilares dos glaciares, dos meandros dos montes, conduzindo-a ao grande coração do Oceano que, através das artérias das nuvens, a restituirá à terra, novamente purificada. Os rios, quais longas e sinuosas fitas prateadas são as estradas pelas quais os homens caminharam e onde, ao redor das suas margens, construíram as suas casas e cidades.

O Oceano Cósmico revela Brahma, Vishnu e Shiva. Domínio Público

Foi graças ao poder fecundante da água que nasceram e se ergueram grandes civilizações: a Mesopotâmia e a Babilónia irrigadas pelos rios Tigre e Eufrates; o Egito atravessado pelo rio Nilo; a Índia abençoada pelo rio Ganges; a China banhada pelo rio Amarelo. Os mares, as nascentes, os lagos, as fontes termais, as águas subterrâneas e as placas de gelo são outros tantos reservatórios do seu inesgotável manancial.

A água é, simultaneamente, um fluxo e refluxo que se ergue e repousa ao sabor das marés; jorra e impulsiona; salta e flui; contorna todos os obstáculos e desce em torrentes ruidosas. Sob a ação do calor, as águas evaporam-se, esvaziando os leitos dos rios.

As águas vestem-se de todas as cores, desde o azul-celeste ao verde-esmeralda; ora claras e transparentes, ora opacas e turvas, frescas ou cálidas, barulhentas ou silenciosas, sagradas ou profanas. São as águas amnióticas do começo da vida humana, e o fim de um grande ciclo, com as suas inundações purificadoras e os seus dilúvios destruidores.

A Terra possui a maior parte de sua superfície coberta por água em estado líquido. Fotografia do planeta feita pela tripulação da Apollo 8 em 1968. Domínio Público

As águas servem de ponte entre os continentes, através das quais os descobrimentos marítimos deram “novos mundos ao mundo”.

As correntes marítimas aquecem e refrescam a crosta terrestre, criando, graças à sua circulação, novos ecossistemas.  A água é denominada de “o ouro azul”, por ser fonte de riqueza para os homens. Ela arrasta areia, lodo, sal, algas, ouro e tesouros naufragados, ao mesmo tempo que a sua fauna marinha sustenta a maior parte da população mundial.

Outrora, as águas faziam girar a roda dos moinhos e forneciam vapor às primeiras locomotivas. Engenhosos sistemas de irrigação trouxerem vida às terras áridas, bem como água às nossas torneiras, concedendo-nos, atualmente, energia limpa extraída das nossas barragens.

Poetas e escritores fizeram da água a sua musa: Camões, em “Os Lusíadas”, Victor Hugo, em “Trabalhadores do Mar”, Júlio Verne em “Vinte Mil Léguas Submarinas”, Jean Cousteau no famoso “Lobo do Mar” e “O Mundo Silencioso” e ainda Fernando Pessoa na sua “Mensagem”.

O mar toca todas as notas, tem as vozes de todas os instrumentos humanos, e nela se inspiram grandes compositores e músicos como Claude Debussy em “O mar”, Frederico Chopin nos seus “Noturnos”, Vivaldi com “A Tempestade no Mar”, Wagner em O Navio Fantasma” e Ravel com “Uma Barca no Oceano”.

As conchas serviram como primeiros instrumentos de sopro; a harpa céltica, com as suas vibrações cristalinas que nos lembra o canto das sereias, enquanto a guitarra portuguesa chora de saudade.

A água foi também o tema predileto de grandes pintores, como o jogo de reflexos de água nas Nympheias de Monet, os torvelinhos assombrosos de Turner, a grande onda de Kanagawa do mestre japonês Hokusai, os estudos dos movimentos da água, de Leonardo da Vinci… enfim, toda uma plêiade de artistas que a imortalizaram em todos os seus estados de esplendorosa beleza e poder.

A Alma da Água

“Nada se assemelha mais a esta água do que o correr da grande torrente humana que vindo também sem se saber donde, e dirigindo-se sem se saber para onde, vai descendo, descendo através das páginas da história, ao longo das margens do ódio e do amor, ora tinta de sangue, ora amarga de lágrimas, ora sorrindo com os raios dos triunfos e das festas. E nas pobres gotinhas dessa água, somos arrastados com as gotinhas irmãs que, uma vez nos acariciam confiantes, outras nos submergem com ódio cruel. E assim incessante, infatigável, fatal, desce ao mar, desce a família humana ao oceano do ignoto.”

“A Alma das Coisas”, Paulo Mantegazza

A água é comparada a um espelho invertido, servindo de intermediária entre o Céu e a Terra. Utilizada desde tempos remotos na Hidromancia, ela permitia questionar e revelar as memórias da alma humana. A água reflete os nossos estados de ânimo, ora sereno e imóvel como as águas do lago, ora atormentados e ruidosos como uma tempestade no mar. Nas experiências de Masaru Emoto, que investigou a memória da água, foram obtidos resultados surpreendentes, relacionados com a influência dos nossos estados anímicos sobre a água. As moléculas do líquido modificam-se a partir de estímulos externos, absorvendo e reagindo às vibrações de um ambiente musical ou simplesmente através de uma palavra emitida com forte intenção emocional, tais como: amor, ódio, paz, guerra. Para demonstrá-lo, Masaru Emoto congelou amostras, nas quais foi possível identificar diferentes formatos de cristais de água. Em ressonância com a vibração de caráter emocional, a água regista e revela, nas fotografias dos seus cristais de gelo, estruturas de uma grande beleza e harmonia ou, pelo contrário, formas distorcidas e opacas. Sabendo que o ser humano é composto por dois terços de água, podemos imaginar as consequências e influências da ressonância dos nossos pensamentos e emoções sobre o nosso equilíbrio psicossomático.

Formação de cristais de gelo durante a ocorrência de um sincelo. Creative Commons

Em numerosas tradições, a água constituía também um motivo para uma viagem iniciática. O herói que embarcasse nessa viagem deveria atravessar e superar os obstáculos do seu mundo interior, onde reina, com o seu poderoso tridente, Poseidon, o Deus grego dos oceanos e dos abalos sísmicos, vivendo nos seus abismos insondáveis, semelhantes à dimensão inferior do nosso inconsciente, onde nascem os monstros aquáticos dos nossos medos e ilusões. Com os seus cavalos marinhos, Poseidon derruba os nossos falsos alicerces, com o seu cortejo de sereias, tritões e nereidas que seduzem a alma prisoneira das suas paixões.

Ulisses, Gilgamesh, Tristão, tiveram que mergulhar no mais profundo da sua alma para regatar a paz, a imortalidade e o amor.

Os rios dos Mundos inferiores, como o negro Styx que atravessa os infernos, e o rio Lethé do esquecimento, são outras tantas atribuições das águas subterrâneas. Aí reina o Deus Hades, Senhor da sombria morada dos mortos, divindade do mundo subterrâneo e das potencialidades imersas na matéria, segurando uma chave e uma cornucópia, pois só concede a sua riqueza mais preciosa), a chave da liberdade, àquelas almas virtuosas que abdicaram das riquezas do mundo.

A água e o Espírito

“… ele virá para nós como um aguaceiro, como a chuva da primavera que rega a terra.”

(Oseias, 6.3)

A água é como o Espírito, límpida e clara quando serena. É tida como sagrada quando permite a consagração de uma nova vida.

A água participa dos ritos de purificação e de batismo. Símbolo de renovação e renascimento é considerada água lustral pelo seu poder de deixar passar a luz.  A fonte do conhecimento é uma imagem universal das águas puras que restauram as feridas da alma sedenta de sabedoria.

Segundo a mitologia da Índia, o rio Ganges desceu dos céus trazendo consigo parte do céu para a terra, ligando assim o mundo dos humanos ao dos deuses. Dezenas de milhares de peregrinos fazem a viagem para se purificarem nas suas águas, assegurando assim uma nova oportunidade de eliminar o seu velho karma e preparar um renascimento mais auspicioso. O rio Ganges é adorado, no seu elemento natural, como uma mãe nutridora, ou personificado numa imagem antropomórfica de Gaṅgā devī (deusa), representada sentada no seu veículo, o makara (animal mítico do oceano), segurando um lótus numa mão e um pote de água na outra. Ganga é adorada pelos hindus como a deusa da purificação e do perdão. Algumas das primeiras menções de Ganga são encontradas no Rigveda, onde ela é mencionada como o mais sagrado dos rios.

Para os antigos egípcios, o rio Nilo, ou Hapi, era considerado uma fonte de fertilidade e de alegria, graças às suas cheias periódicas que tornavam a terra fecunda. Ponte entre o mundo dos vivos e dos mortos, o Nilo é também o espelho do Nilo celeste. Sobre as suas águas prateadas avança a barca sagrada dos ritos funerários que leva a alma do defunto até à Terra da Luz Pura.

Os ritos de purificação, pelas águas, permitiam preparar a elevação da alma à morada dos Deuses. A Lavagem dos pés é um ritual emprestado dos egípcios que se insere no quadro da purificação do coração, equivalente ao batismo. Desatar as sandálias era então considerado como a libertação da alma, dos seus pecados. A água aponta o caminho através dos infortúnios do mundo para a Terra Prometida.

É o caminho do Silêncio interior, do Espírito Santo que derrama sabedoria no coração sedento. No Gênesis, a água é o reflexo do Espírito que flutua na sua superfície, enquanto para o islamismo, no Corão, é onde reside o trono divino.

“Todo aquele que beber desta água terá sede de novo. Mas quem beber da água que eu lhe darei, esse nunca mais terá sede. E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna.”

(João 4, 12-14)

A ponta mais ocidental da costa atlântica, Santiago de Compostela marca a fronteira entre dois Mundos: o caminho da terra e o caminho do Céu estrelado, sendo Finisterra o lugar onde se cruza o “Oceano de baixo” com “o Oceano de cima”. Neste lugar, o peregrino realiza três votos que consagra à finalização da sua viagem: queimar as suas velhas botas, tomar um banho de purificação nas águas do Oceano e assistir ao pôr do sol, porque, à semelhança do sol, a água nunca se esquece do caminho.

“A vida como a água do mar só se purifica subindo para o Céu.”

Alfred de Musset

Para além de todos os benefícios que a água trouxe à Terra e aos seus inúmeros habitantes, quero realçar aquela mensagem que nunca devemos esquecer: a fidelidade à sua memória.

Independentemente de arrastar e purificar milhões de resíduos contaminados, a água permanece igual a si mesma, una, fiel às suas origens, límpida e cristalina, sempre pronta para renovar o mundo.

A nossa humanidade deve aprender, através do exemplo da água, a reverter o seu sangue em prol de uma vida profunda, lavando as suas mágoas e ódios ancestrais. Por mais insignificante que cada gesto nosso possa parecer, para melhorar a vida, será dele que brotará o germe do nosso futuro. Todos somos como gotas no oceano, todos juntos somos o Oceano.

Foz do Rio Minho. Creative Commons

O Rio e o Mar
Dizem que antes de entrar no mar
o rio treme de medo.
Olha para trás, para toda a jornada,
os cumes, as montanhas,
o caminho longo e sinuoso
que abriu através das florestas e aldeias
e vê diante de si um oceano tão grande
que, entrar nele,
será desaparecer para sempre.
Mas não há outro caminho.
O rio não pode voltar.
Ninguém pode voltar.
Voltar é impossível, na existência.
O rio deve aceitar a sua natureza
e entrar no oceano.
Só entrando no oceano,
o medo vai diminuir.
Porque só então o rio saberá
que não se trata de desaparecer no oceano,
mas sim tornar-se oceano.
Khalil Gibran

 

Françoise Terseur

Imagem de destaque: Impacto de uma gota na superfície da água. Creative Commons