Héracles é o Heros por excelência. Símbolo da suprema inspiração heróica que ainda jovem escolheu o caminho das provas, dos obstáculos, em detrimento do caminho fácil marcado pelo prazer e uma vida despreocupada. Héracles é filho de Zeus, Deus do Olimpo e atributo de expansão, bem-aventurança e Sabedoria, e de Alcmena, mulher de Anfitrião, rei de Tebas. Filho da Imortalidade e da Mortalidade, Hércules, representa aquele que se venceu a si mesmo, o Homem que sentiu a Aspiração e a Vocação Heróica presente na necessidade de Imortalidade. No momento do seu nascimento, Júpiter prometeu a este seu filho um alto destino, marcando a sua alma com a Semente da descoberta interior, a Semente Divina. Porém, Juno, esposa de Júpiter, enciumada, colocou inúmeros obstáculos à vida deste Semi-Deus, representando os elementos inferiores com os quais o mortal tem de se debater a fim de alcançar a suprema libertação, o Olimpo. Hércules tenta vencer as armadilhas de Juno, do caminho escolhido, com auxílio e providência dos Deuses que lhe transmitem Valentia, Coragem, Força, Audácia e Confiança Interior. Eis o Herói do segundo grupo de Platão, o Heros com Alma Esforçada, aquele que pratica a Virtude guerreira.
Hércules, o aspirante que desafia o seu interior, é conhecido pelos Doze Trabalhos armadilhados por Juno e cujo simbolismo nos remete para a sua iniciação e entrada nos ocultos tesouros do Uno. Nos Doze Trabalhos, Héracles mostrou a sua Alma Heróica lutando contra o Leão da Nemeia, que assolava a região matando os seus habitantes e que possuía uma interessante particularidade: a sua pele não se deixava infligir por arma alguma, tendo de ser dominado pelas próprias mãos. Este primeiro trabalho de Hércules, coloca ao aspirante a Heros uma profunda reflexão. Para dominar o Leão interior, simbolizando o oposto da Virtude, ou seja, a ambição, a necessidade de poder, honras, méritos, é preciso apelar às próprias mãos e não a armas externas. As mãos simbolizam a acção, a vontade, a Vocação Heróica e Virtuosa. Hércules, o Herói tão inspirador, mata o Leão da Nemeia com as suas próprias mãos fazendo da sua pele uma vestimenta, símbolo da superação do Eu Superior sobre o Eu Inferior. Mas para alcançar a imortalidade, Héracles não utilizou apenas a sua força externa marcada pela Vontade, mas também o seu poder de transcendência presente no Quinto Trabalho onde limpou os currais do Rei Aúgias desviando dois rios pois os animais exalavam um odor mortal, representando a necessidade que o aspirante tem de lavar a lama presente na sua Alma. A Alma impura do aspirante é um dos maiores obstáculos à sua condição de Heros; por isso, é importante proceder a uma limpeza contínua, caso contrário ficará contaminada. A Vontade, presente na força, une-se à Espiritualidade, presente na Pietas e na Devoção. Esta relação marca todos os trabalhos de Héracles, ajudando o aspirante a vencer monstros e lutas terríveis. Mas é no seu último trabalho que Héracles atinge a verdadeira imortalidade, a chave de Ouro do seu tesouro interior, a verdadeira condição de Heros, a de filho de Zeus. No palácio de Hades, Deus dos infernos, Hércules resgata Cérbero, representando a salvação do aspirante e a restauração da sua nova condição, a de Semi-Deus. É o momento em que o aspirante se eleva das trevas para contemplar e receber a luz do Sol. É o momento em que o Homem resgata a sua condição de filho de Deus e, a partir do alto, respira a verdadeira liberdade. É o Herói que nasce! Aquele que, como Hércules, se reconciliou com Juno, símbolo dos obstáculos internos, casando com sua filha Hebe. Aquele que, como Hércules, se lançou às chamas do fogo divino, a fim de retirar a túnica, símbolo do eu inferior, oferecida por Dejanira. Mas será que Héracles, ao logo da sua caminhada terrena, repleta de monstros, inimigos, combates e lutas, não sentiu o desalento interior? Ulisses, na sua condição de semi-deus e aspirante a Herói, responde a esta questão ao deparar-se com um dos grandes obstáculos ao alcance do Heros: a Solidão.
Homero narra maravilhosamente o percurso deste magnífico Herói, cuja jornada nasce na Ilíada, aquando da Guerra de Troia, mas desenvolve-se brilhantemente na Odisseia, aquando do seu Regresso.
“Sozinho ficou Ulisses, famoso lanceiro e nenhum dos Argivos ficou a seu lado, pois o terror dominava-os a todos. Desanimado assim disse ao seu magnânimo coração: [1]
Ai, pobre de mim, que estarei para sofrer? Grande mal seria se fugisse com medo desta turba; mas pior seria se fosse tomado só; pois o Crónida pôs em fuga os outros Dânaos. Mas por que razão o meu ânimo assim comigo dialoga? Sei que eles são vis e que fugiram da batalha; por outro lado, àquele que é excelente no combate, a esse compete ficar sem arredar pé, quer seja atingido, ou outros atinja.”
Ulisses, símbolo da Areté, da Virtude, do Valor Humano, demonstra nesta sublime passagem o desânimo do Herói. Perante o medo e fuga daqueles que o acompanhavam, Ulisses fica sozinho na sua luta, frente a seus inimigos. Ao dialogar com o seu magnânimo coração, Ulisses executa uma reflexão rápida sobre a sua posição e objetivos, constatando que está sozinho no meio da turba, deixando-se por momentos vencer pelo medo. Mas Ulisses rapidamente focaliza a sua atenção, separando aqueles que tiveram um comportamento vil e fugiram da batalha e, por ouro lado, a sua posição de Verdadeiro Herói, aquele que não arreda pé, quer seja atingido, ou outros atinja. A Valentia, a Persistência e a Perseverança marcam este Semi-Deus que acima de tudo possui uma brilhante capacidade de Atenção e Astúcia perante a adversidade. Ulisses enquadra-se no terceiro grupo de Platão, a Alma Moderada, Paciente e Fulgral. Sob a providência de Zeus, Ulisses é considerado seu dileto, surgindo com os atributos de Sagaz, Paciente, Audaz, Astucioso e mesmo Divino.
“Como me esqueceria eu do divino Ulisses, cujo espírito sobreleva ao de qualquer outro homem e aos deuses imortais, que o céu detém, nunca faltou com sacrifícios?”
Zeus vê este seu filho como o mais Astuto de todos os Heróis, pois apesar de possuir força física e guerreira colmata a adversidade utilizando a sua perspicácia e agudeza, como podemos presenciar nesta passagem de regresso a casa após o cativo de Calipso.
“Ai, pobre de mim! (…) mas não me deixarei ainda convencer, pois longe está a terra que vi com os olhos, onde ela disse que me salvaria. Não, é isto que farei: isto parece-me a melhor coisa: enquanto as madeiras permanecerem bem atadas, aqui ficarei e enfrentarei os sofrimentos. Mas quando as ondas tiverem estilhaçado a jangada, então tentarei nadar, visto que não há outra solução melhor.” [2]
Assim como os Doze Trabalhos de Héracles, para Ulisses, o regresso a casa simboliza o seu percurso rumo à imortalidade. A saída de Ulisses da ilha onde se encontrava cativo e a necessidade de enfrentar o mar turbulento de Poseidon surge como uma inspiradora alegoria que enche de Vontade o mais humilde aspirante a Herói. Pela prática da Virtude, o Herói alcança a sua meta, mas sem nunca esquecer a providência Divina, a mão invisível sempre presente.
“Ter-se-ia afogado o infeliz Ulisses para lá do que lhe estava destinado, se reflexão rápida não lhe tivesse dado Atena de olhos garços.” [3]
A providência Divina auxilia o aspirante no atributo da Virtude. Hércules e Ulisses, dois Heróis marcantes, enfrentam adversidades e todo o tipo de monstros e bestas, a fim de alcançar a suprema imortalidade. A condição de Herói é atribuída a Héracles, pela força, valentia, pujança, e a Ulisses, pela temperança, perseverança e astúcia. Filhos de Zeus e da Terra, a condição Divina é algo a atingir. Filhos da Imortalidade e da Mortalidade, não desvalecem perante os obstáculos. Utilizando como armas a Virtude e a Providência Divina, os Heróis resgatam a sua verdadeira condição reclamando a sua paternidade, a de Filhos legítimos de Zeus.
Mas será que um Herói de Alma Contemplativa seria capaz dos grandes feitos de Héracles e Ulisses? Poeta e músico, Orfeu nasceu do ventre da musa Calíope e era considerado o músico mais talentoso, pois o som que entoava da sua lira acalmava todos os animais que o rodeavam, envolvendo-os numa imensa tranquilidade. Seu pai, Apolo, ofereceu a Orfeu esta lira, representando a capacidade de transmitir, pela arte, a sua suprema magnanimidade. Orfeu representa o aspirante que, com a sua música e Vocação Poética, atinge o estado de Heros. A Alma apaixonada e vacilante que procura ultrapassar a instabilidade do amor, para atingir a imortalidade. Orfeu é uma das entidades Heróicas mais interessantes, pois retrata magnificamente a inconstância e a insegurança Humana. Ao apaixonar-se por Eurídice e, após esta ter sido encaminhada para o reino de Hades devido à perseguição de Aristeu, Orfeu encarna o verdadeiro Herói enfrentando todos os obstáculos a fim de encontrar o seu grande Amor, a superação do Eu Superior e consequente imortalidade. A relação que o aspirante mantém com a Vocação Heróica é, como Orfeu representa, um estado de puro Amor; caso contrário, nunca poderá ser uma Verdadeira Vocação. Sem Amor. não existe Vontade; sem Amor, não existe Virtude; sem Amor, não existe Espiritualidade. Orfeu encarna esse Amor, estado sem o qual o aspirante não poderia alcançar a sua condição de Heros. Ao som do Amor entoado da sua lira, Orfeu amolece o coração de todos aqueles que o ouvem, mesmo de Hades que, perante tão sublime melodia, chorou lágrimas de ferro permitindo que Euridice regressasse ao mundo dos vivos. Levado pelo Amor, Orfeu resgata Eurídice, a sua contraparte Superior, trazendo-a à luz e libertando assim a sua Alma. Orfeu é o Herói legítimo pois, tal como Héracles, enfrenta Hades com o propósito de atingir a Verdadeira Libertação. Movidos pelo Amor, como Orfeu, pela Força, como Héracles ou pela Astúcia, como Aquiles, o aspirante a Herói segue a Natureza da sua Alma, a sua Vocação Interior, mas utilizando sempre a Virtude como a espada que tudo penetra, mesmo a pele intransponível do Leão da Nemeia. Contudo, num momento de insegurança, Orfeu vacilou e perdeu a sua imortalidade, deixando-se vencer pelas Mênades que abafaram o canto da sua música, do seu Amor. Mas apesar de ter vacilado, Orfeu não desistiu e, embora com o corpo despedaçado, continuou a clamar por Eurídice, a sua contraparte, unindo-se com ela no Monte Olimpo. A Mortalidade atinge a Imortalidade. Orfeu, o Herói Contemplativo, une-se à sua amada, ao Amor que perseguia e acabou por encontrar com o som da sua lira.
Os Argonautas
Não existe maior fonte de inspiração capaz de igualar a expedição dos Argonautas em busca do Velo de Ouro. Uma embarcação de Heróis que, unidos pelo mesmo Ideal, lutam para alcançar a Verdadeira Imortalidade. Nos Argonautas, encontramos a partilha de um só objetivo, a libertação do Carneiro Alado, a suprema representação da liberdade interior, o resgate da Alma manchada pela matéria. Os Argonautas reúnem Heróis como os Dióscuros, Orfeu, Héracles, Argo, Jasão, o líder da expedição, que num ambiente de profunda fraternidade partilham o mesmo Ideal, enfrentando todos os obstáculos. Os Argonautas avançam sobre a turbulência do imenso Oceano, lutando contra criaturas terríveis, mas sempre custodiados pelos Grandes Devas. Os Heróis desta expedição são aspirantes que vivem um confronto individual, na procura da sua imortalidade, mas também um confronto coletivo presente na partilha dessa imortalidade pois, enquanto Heróis, não abdicam de unir-se na transmissão desse Ideal pessoal. Os Argonautas representam uma grande nau que vagueia num largo Oceano rumo a esse Velo de Ouro, rumo a um Horizonte luminoso. Mais do que um Herói, o aspirante deve querer ser um Argonauta, aquele que, na partilha de um Ideal, vive sob a égide da Virtude e da Espiritualidade.
A união dos pequenos Heróis, possuidores de Naturezas distintas, seja Guerreira, Astuta ou Contemplativa, formam elos de irmandade capazes de rumar em direção a esse Carneiro Alado, a esse Símbolo que representa o voo da Águia. Pela prática da Areté, aquele que aspira à condição de Argonauta, deve ter dentro de si o perfeito compromisso de tal missão. Sob a prática da Virtude e sob a benevolente providência Divina, os Heróis, os Argonautas, rumam em direção a esse Horizonte longínquo, a esse Horizonte cuja luz penetra na Alma com uma força irreversível. O Argonauta é o Verdadeiro Herói, o Verdadeiro Virtuoso.
“Uma vida em conformidade com os Deuses e com os homens não nos daria motivo para nos queixarmos deles, nem causa para que eles nos condenem.” Marco Aurélio
Isabel Areias
Bibliografia
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– Sobre la Naturaleza de los Dioses. Cícero. Editorial Gredos.
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– Guía Iconográfica de los Dioses y Héroes de la Antigüedad. I. Aghion, C. Barbillon, F. Lissarrague. Alianza Editorial.
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– Illíada. Homero. Livros Cotovia.
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– Odisseia. Homero. Livros Cotovia.
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– Manual de Filosofia Moral. Jorge Angel Livraga Rizzi. OINAPO.
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– Glossário Teosófico. H.P.B.
Anotações
[1] In Ilíada. Canto XI – 405
[2] In Odisseia. Canto V- 360
[3] Ibidem. Canto V – 435