“O parentesco da linhagem humana não é por vínculo de carne e sangue mas pela participação comum numa mesma mente. E a mente de cada um é um Deus já que provém da divindade.” Marco Aurélio

A questão referente à natureza dos deuses, refere Cícero, é uma questão de grande beleza para o conhecimento do espírito e necessária ao despertar de uma condição Divina, assente na Pietas, relação retributiva entre o Homem e os Deuses cujos alicerces assentam na Justiça, na Devoção, culto prestado à divindade, e na Religião, materialização histórica da Devoção e da Pietas. Pela prática destes dons, o Homem evita o culto e a superstição, gerando dentro de si uma afinidade Divina presente na sua Mente, dádiva dos Deuses e objecto de diferenciação dos restantes seres vivos. Apesar do alcance divino estar norteado pela prática Religiosa (Pietas e Devoção) a existência de um conhecimento interior Divino, que não deriva de nenhum ensinamento ou tradição, é real visto que “os deuses existem porque o homem tem dentro de si esta intuição”[1], porque a própria natureza gravou a Ideia inerente à Divindade no espírito de cada Homem. Desta feita, torna-se pouco provável a não existência dos Deuses e a negação da sua força organizadora e provedora. Se chegamos a uma casa e a encontramos arrumada e arranjada com rigor e disciplina concluímos que alguém a quem se obedece a dirige. O mesmo sucede com os Deuses, a Classe Mental capaz de governar movimentos naturais tão grandes, expõe Cícero. Tales de Mileto refere sublimemente que a “água constitui o início das coisas, no entanto, a mente capaz de modelar o todo a partir da água é a Divindade”[2]. Nesta perspectiva filosófica o todo existente é dirigido mediante a mente dos Deuses que comunicam com o Homem por essa mesma fonte: a Razão. Ao outorgarem ao Homem a Mente, a Razão, os Deuses canalizam no interior de cada ser Humano uma essência que em união origina a água primordial. Cabe ao Homem descobrir e utilizar essa dádiva Divina como um pequeno tesouro que anseia a chave do seu Mestre.

Assim, o Homem une-se aos Deuses por intermédio da sua Mente Superior plasmada em tons de intuição profunda e acessível pela prática das três Virtudes já citadas: Pietas, Devoção, Religião.

A Virtude

Honor et Virtus post mortem floret. Paolo Veronese. Dominio Público

A Virtude surge em todos os tratados filosóficos como uma das principais ferramentas de acesso ao Divino. Praticada, a Virtude gera o nosso Mestre interior, aquele que possui a chave do tesouro e porta de acesso aos Deuses.

Para activar todos estes Grandes Mistérios é importante compreender a natureza Rajasica da Virtude. “Vir” impele à acção, ao combate, à luta, à força, à libertação do Herói interior. E neste caminho, a melhor forma de alcançar os Deuses é praticando a Virtude pois a divindade se complacenta ante a Sabedoria e a Virtude. “Vir” é Rajas por intermédio de Tamas, o sublime equilíbrio, pois não se pode contactar os Deuses pelo exterior mas pelo interior. Mas na sua suprema inteligência, os Deuses sabem que apenas podem alcançar o interior do homem encarnando figuras Humanas portadoras de histórias repletas de tramas, ira, desejo, combates e feridas. É nas suas discórdias, nascimentos, desaparecimentos, lamentações, adultérios, prisões e uniões com o género humano que estas grandes Divindades atingem o seu grande propósito: a transmissão da Virtude.

Apresentam-se sob a forma Humana mas não através de ”um corpo, mas uma espécie de corpo, nem sangue, mas uma espécie de sangue”[3]. São Deuses ou Divindades Inferiores, como refere H.P.B., porque no seu papel de Devas estão entre o Homem e o Uno. São “meras personificações transitórias do céu, dos astros, dos elementos, forças ou fenómenos da Natureza”[4] e habitam o mesmo mundo que os homens pois juntamente com eles são os únicos que servindo-se da Razão vivem segundo uma Grande Lei, a da Natureza. Dentro desta Lei o Homem encarna lado inferior, nocturno e terreno, e os Deuses o lado superior, luminoso “deiwos”, e o firmamento, o céu, “div”. Os Deuses, enquanto seres superiores dão visibilidade à Natureza, a “Alma e Corpo do Grande Todo”[5] impossível de alcançar ou imitar. Enquanto intermediários entre o Homem e o Uno, os Deuses atingiram, ao longo da história da humanidade, um estado de imortalidade largamente cobiçado. Numa perspectiva filosófica, a chave de interpretação desta condição encerra uma tónica transcendente. A imortalidade equipara-se à tão ambicionada Afrodite de Ouro, a eterna juventude tão desejada pelo Homem e que reside dentro de si mesmo.

Mas ao possuir um canal de ligação Divino, o Homem torna-se um pequeno Deus capaz de reclamar este direito à imortalidade. Para isso a sua Mente e a sua voz têm de estar sempre puras e integras pois estas e outras Virtudes como a Confiança, o Valor, a Concórdia, o Discernimento, a Prudência, a Coragem, a Fraternidade ou o Amor brotam dos Deuses e germinam nos homens.

Para atingir a Imortalidade o Homem tem de unir-se à Virtude pois ela é a ponte de lançamento para o alcance Divino. A Moral, o Esforço e a Vontade são os grandes motores da Virtude elevando o Homem para as altas realidades espirituais contrariando os baixos instintos animais. Como Plotino refere, o Homem possui dentro de si uma pedra preciosa que ao contaminar-se nas coisas do mundo manchou-se de barro. Pela Virtude o homem alcança a água que devolve o brilho original dessa pedra preciosa transmutando a sua condição de triste mortal no alcance da felicidade eterna. É aqui que o Homem desperta o seu Deus Interior. É aqui que o Homem experimenta o poder dos Grandes Devas. É aqui que o Homem se converte em Herói atingindo a Imortalidade.

“Apesar de não vermos a nossa alma, respeitamo-la e o mesmo deveria acontecer com os Deuses que, para além disso tornam-se evidentes, visto que a qualquer momento experimentaremos o seu poder.” Marco Aurélio
O Heros

Eros. Pixabay

Se os Deuses vivem entre o Uno e os Homens, o Heros é aquele que vive entre os Homens e o Deuses. Filho da mortalidade e da imortalidade, o Heros é o aspirante que experimentou o poder dos Deuses encontrando a chave do seu tesouro pela prática da Virtude. Ao superar a sua condição Humana, o Herói toca as asas dos Deuses convertendo-se no supremo portador da Virtude e num exemplo para os restantes mortais. Experiência a conexão Mental e com isso a Suprema Sabedoria. Guiado por ideais nobres e altruístas, o verdadeiro Heros pauta a sua vida com uma moral transcendente e por isso encarna os Valores, emanados pelos Deuses, presentes na Coragem, Prudência, Temperança, Cortesia, Sacrifício, Fraternidade. Dentro de todas as Virtudes conquistadas pelo Homem Superado existe, como no todo circundante, um início e um fim, um alfa e um ómega, ou seja, a Vontade e a Justiça. O Homem que aspira o alcance da imortalidade tem de possuir o Valor da Vontade.

Esta é a primeira ferramenta de trabalho do futuro Heros e o motor colocado à disposição do Homem pelos Deuses. Pela Vontade o Homem atinge o seu Herói interior e resgata a sua condição de pequeno Deus. A Justiça surge como a Virtude Última, aquela que o Homem, na sua condição de Herói, domina na plenitude.

Entrar nos Heróis narrados pelos grandes poetas, como Homero ou Shakespeare, é sentir o movimento ascendente impulsionado pela Aspiração, Vocação e Vontade Heróica. Só pode atingir o Heros aquele que possuir a Verdadeira Vocação Heróica caso contrário irá transformar-se no anti-Herói de atitudes altruístas mas camufladas pela vaidade, orgulho, vingança e ódio. Esforço e Perseverança são os Valores a desenvolver para quem pretende travar esta luta interior exemplificada por inúmeros Heróis de diferentes épocas históricas. Homens e mulheres dotados de grande coragem, força, astúcia e inteligência. Trata-se da necessidade que o Homem tem de fazer um acordo consigo mesmo, denominado por Zenão de “Prudência”, a semente da Virtude. Virtus implica uma valentia que brota no interior e transparece no exterior através de uma aparência forte, viril, bela e justa. O Virtuoso define-se na sua verticalidade moral e acima de tudo transcendente. A Pietas e a Devoção apresentam-se como os alicerces da sua caminhada cuja tónica heróica é acima de tudo espiritual pois os Heróis alcançam esta condição com a ajuda dos Deuses. Todos os Homens com Aspiração e Vocação Heróica foram alentados pelos Deuses, pela providência Divina. A mão dos Devas orientam o Aspirante salvando-o das bestas e monstros que o assolam pois o Homem, na sua condição mortal, necessita desta providência a fim de ultrapassar todos os obstáculos e confrontos interiores. O Homem é advertido mediante sinais e ajudas Divinas muitas vezes invisíveis aos seus olhos carnais e, por isso, uma das grandes Virtudes do Herói é a Atenção, como Argo retractado com vários olhos.

“Nenhum Homem chegou a ser grande sem uma inspiração Divina.” [6]

Nesta jornada Heróica os Deuses amparam o Homem utilizando uma das maiores Virtudes: a Benevolência. Ao lado dos Deuses o Homem tem o mesmo valor que uma besta ou um animal medíocre que requer uma infinita paciência para ser domesticado. Assim como o Homem conhece as limitações do seu animal, também os Deuses conhecem as limitações do Homem necessitando por isso da sua Benevolência.

Mas para os Deuses a Dação e a Entrega a este trabalho de elevação da Humanidade apaga esta diferença transmutando-a em Amor, a mais nobre das Virtudes.

Um Aspirante a Herói não está entregue a si mesmo.

Um Aspirante a Herói é Amado por esses Deuses que portam uma Ideia Superior, Ideia que nasce do Uno e torna-se compreensível aos seus olhos pelos Devas. Seria impossível alcançar o estado de Herói Interior e Transcendente se os Deuses não fossem uma forma de materialização da essência inerente à Honra, ao Valor, à Concórdia, à Liberdade, à Vitoria e ao Amor. Homens e Deuses unidos pela Mente, pela Virtude, pelo Espírito, pelo Heros. União que o Homem recusa a aceitar pois apenas vê nos Deuses a fonte da sua Fortuna. Ninguém dá graças aos Deuses por ser Virtuoso! Ninguém pede à providência Divina um pouco mais de Fraternidade! Quando o Homem conquista ou possui um dom, não o associa a algo que procede da divindade. Mas quando conquista saúde, trabalho, honras ou glórias, não poupa esforços em agradecimentos e peregrinações. Cícero refere que para o Homem a sorte material nasce da providência Divina mas a Sabedoria, o Valor, a Confiança, a Mente nasce de mérito e esforço próprio. Mas se os Deuses representam as Virtudes Duradouras, ou seja intemporais, por isso são imortais, o Homem deve clamar e agradecer à providência a fim de ser inspirado e alcançar esses Valores. Enquanto pequeno Heros, o Homem deve apelar aos Deuses a fim de obter Discernimento e não Fortuna, pois como Heracles, o aspirante escolhe o caminho de pedras, repleto de provas, a fim de Conhecer-se a Si Mesmo. Sócrates refere que a diferença entre um sábio e um ignorante está no facto de este saber que é imperfeito e estar disposto a melhorar. O pequeno Herói anseia limpar a sua Alma tirando os véus de ignorância. Entrando em contacto com a Virtude, o aspirante abandona o seu Eu inferior, a personalidade, a fim de conquistar o seu Verdadeiro Ser. A Virtude não gera sofrimento, esforço ou prisão. Para o Herói, a Virtude gera felicidade e liberdade. Acima de tudo sensação de Dever cumprido.

“A vivência da virtude implica heroísmo, capacidade de trabalho e combate. A virtude é a vivência consciente das normas do caminho é não ceder face ao corpo, aos temores da personalidade e vaidades da mente. A virtude é o Pteros, o órgão alado da alma, o motor que nos leva de regresso à real felicidade, a nós mesmos, à realidade, ao Logos.
Fazer nascer o Deus que existe dentro de cada discípulo e onde cresce esse anjo espiritual é terreno perdido pela diabólica sombra que ainda permanece presa às costas de cada homem.”
[7]

Todo o aspirante a Heros deve ter o espírito como guia pois só assim poderá reconhecer os caminhos da Justiça, da Verdade, da Temperança e da força. Proferindo Epicteto: “Tu, alma minha, não fazes mais do que levar sobre ti um morto”[8].

A Natureza do Heros

Eros, Emil Wolff. Dominio Público

Os Grandes Devas são como os astros que velam as noites do Homem, sempre atentos a todo e qualquer movimento do orbe terrestre. O mundo dirige-se mediante a Sabedoria dos Deuses e todo o Homem dorme sob a sua providência pois todas as Almas são banhadas por esta omnipresença Divina que atende sempre à Natureza da Alma aquando a sua caminhada. Platão refere a existência de três tipos de Almas: a Alma Contemplativa, a Alma Esforçada e a Alma Temperante. Esta perspectiva leva-nos a descartar a ideia de que o Herói, para ser um Verdadeiro Heros, tem de ser guerreiro, combativo, cheio de força e vigor. Hércules, o Herói por excelência causa no aspirante de Natureza Contemplativa, um certo desanimo. Por isso podemos citar Orfeu, o Herói músico, cuja Natureza difere do nosso Hércules mas nem por isso deixa de ser um Heros. Como referimos, a procura do Herói está intimamente relacionada com a Vocação, ou seja, a Natureza da Alma, e as Virtudes a desenvolver estão, para Platão, associadas a essas três Naturezas: Virtudes Poéticas, próprias da inteligência, como a sabedoria e a sensatez; as Virtudes Guerreiras, centradas na valentia ou virilidade, como a fortaleza ou força, no sentido clássico, como a coragem a altivez e a própria força física; Virtudes da Temperança, como o comedimento, a paciência e a frugalidade. Mas como a Natureza nos ensina, na superação da diversidade está a unidade, e apesar do caminho tomar várias formas, a presença dos Deuses é contínua mesmo que a senda seja difícil, repleta de obstáculos e provas a serem superadas.

Mas perante tantas provas a travar, como poderá o pequeno aspirante sentir a inspiração e providência Divina? Não há dúvida de que o Homem para se tornar num aspirante a Herói tem de sentir os Devas.

Ao longo da história da Humanidade esta questão afectou grandes pensadores que encontraram na Natureza a resposta. Todos os Deuses emanam uma essência que está directamente ligada a algum aspecto da Natureza incluindo a sua vertente zoomórfica. Neptuno, o Deus do Mar, Rá, Deus do Sol, Atena, representada por um mocho, Ceres Deusa dos Cultivos. Existem inúmeros exemplos capazes de encaminhar o aspirante à Virtude e à compreensão do Universo. A Natureza é o Supremo meio de manifestação dos Deuses, e possui, assim como o Homem, o Universo, o Mundo, o Sol, a Lua ou as Estrelas, Mente e Espírito. Unidos por esta força, o Herói deve contemplar a Natureza e obter dela a força e Sabedoria necessárias à superação dos obstáculos. Não falta ao pequeno Heros fonte de inspiração no alcance do seu estado de Herói cujo raio de germinação está em sintonia com a sua Vocação. Mas para além do elevado trabalho realizado pelos Devas que, utilizando a matéria-prima fornecida pelo Supremo Deus arquitectam o todo manifestado, temos exemplos de Verdadeiros Heróis que, pela prática da Virtude, superaram os mais altos obstáculos aspirando à condição de Deuses. Como diria Séneca: “que a virtude nos guie e nosso caminho será seguro”.

Isabel Areias
Bibliografia
  • Sobre la Naturaleza de los Dioses. Cícero. Editorial Gredos.

  • Guía Iconográfica de los Dioses y Héroes de la Antigüedad. I. Aghion, C. Barbillon, F. Lissarrague. Alianza Editorial.

  • Illíada. Homero. Livros Cotovia.

  • Odisseia. Homero. Livros Cotovia.

  • Manual de Filosofia Moral. Jorge Angel Livraga Rizzi. OINAPO.

  • Glossário Teosófico. H.P.B.

Anotações

[1] In Sobre la Naturaleza de los Dioses

[2] Ibidem

[3] Ibidem

[4] In Glossário Teosófico

[5] Ibidem

[6] In Sobre la Naturaleza de los Dioses

[7] In Manual de Filosofia Moral

[8] In Sobre la Naturaleza de los Dioses