Pierre Hadot foi um dos mais importantes historiadores do pensamento antigo dos nossos dias.

O seu profundo amor pela filosofia e pelo mundo antigo fez com que reparasse nas supostas incoerências do ensino dos autores clássicos. Foi quando descobriu que a filosofia do mundo antigo não é um discurso teórico isolado, mas sim uma reflexão repartida, em resultado de uma maneira especial de viver. Assim, os exercícios espirituais surgem aos olhos do professor Hadot como a peça que falta para completar a imagem da filosofia antiga. As incoerências no discurso desaparecem, e em seu lugar brilha uma autêntica correspondência entre pensamento, sentimento e acção.

No seu livro “Exercícios espirituais e filosofia antiga” compila exercícios espirituais de Fílon de Alexandria, de inspiração estóico-platónica. A reconstrução das listas que realiza remete-nos para três tipos de exercícios:

  1. A atenção, a meditação e a rememoração de tudo o que nos é benéfico.
  2. A leitura, a escuta, o estudo e o exame em profundidade.
  3. O autodomínio, o cumprimento dos deveres e a indiferença perante as coisas indiferentes.

A atenção consiste numa contínua vigilância e presença de ânimo, numa autoconsciência sempre alerta, e numa constante tensão espiritual. Ao assimilar previamente os ensinamentos que se encontraram na meditação, permite dar uma resposta imediata aos acontecimentos.

Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga

A meditação é sobre os princípios fundamentais formulados em poucas palavras, a fim de que se possa recorrer a eles com facilidade, de forma a ser possível recorrer a eles com a segurança e a firmeza de um movimento reflexo. 

Deve-se reflectir antecipadamente sobre os problemas próprios da existência: a pobreza, o sofrimento, a morte. À que encara-los de frente, recordando que não são males, uma vez que não dependem de nós próprios. Deverão ser fórmulas de caracter persuasivo aquelas a que cada um pode recorrer em face de qualquer acontecimento, de modo a controlar os impulsos de temor, cólera e tristeza.

Estes exercícios de meditação e memorização exigem treinamento. É neste momento que entram em cena os exercícios, propriamente de caracter mais intelectual enumerados por Filón: a leitura, a escuta e o estudo, o exame em profundidade. Trata-se de alcançar a formação de um caracter, do ânimo, e não ficar-se pela mera informação. O nosso filósofo cita Goethe para explicar a essência da leitura como exercício espiritual e que aqui reproduzimos:

«As pessoas não sabem quanto tempo e esforço custa aprender a ler. Necessitei de oitenta anos para consegui-lo, e no entanto não saberia dizer se consegui».

A meditação irá alimentar-se da leitura dos escritos de poetas e filósofos. Contudo, a leitura pode incluir também a explicação dos textos. E podem-se ler ou escutar, ou podem ser ensinadas por um mestre. O estudo e o exame em profundidade supõem pois a aplicação prática de tais ensinamentos.

Pierre Hadot. Creative Commons

Pela manhã, terá que examinar-se, previamente, as actividades que se irão realizar ao longo da jornada, estabelecendo-se os princípios que a governarão. À noite, serão novamente analisados para avaliar as faltas e os progressos. Os exercícios de meditação tentam dominar o discurso interior para torna-lo coerente, por meio do diálogo consigo mesmo ou com outros, ou também recorrendo à escrita, dirigindo ordenadamente os pensamentos, alcançando assim uma transformação completa da nossa representação do mundo, da nossa paisagem interior, mas ao mesmo tempo do nosso comportamento exterior. Tais métodos revelam um enorme conhecimento do poder terapêutico da palavra. 

Por último, os exercícios práticos destinados a criar o hábito. Todavia, alguns são de caracter muito interno, por exemplo, a indiferença perante as coisas indiferentes, dado que o sofrimento dos homens provem do temor a coisas que não devem temer e o desejo a coisas que não é preciso desejar. Outros são absolutamente quotidianos: praticar o autodomínio através do esforço por nos despojarmos das nossas vaidades, das nossas paixões, da preguiça, da luxuria, da gula, e livrar-se de todo o pesar, tristeza, ódio ou raiva. Amar a todos os homens livres. 

Para ele é necessária a perseverança, a firmeza. A prática quotidiana de estes exercícios espirituais coloca à descoberto o nosso dever como seres humanos. Para ele estoicismo é ajudar a natureza humana a elevar a coexistência humana, construindo uma sociedade mais justa. Esta é a essência da actividade espiritual, a universalidade. Exercitar-se individualmente sem ter em conta os demais, o mundo ou a natureza é vulgarizar e avilanar a prática espiritual. Pelo contrário, a perseverança quotidiana em cumprimento do nosso dever deve permitir alcançar essa característica que a tradição antiga chamou de alma. 

Francisco Capacete

Publicado na revista Esfinge, em janeiro de 2020

Imagem de destaque: As Meditações de Marco Aurélio. Tradução inglesa de 1811. Domínio Público

Bibliografia

Hadot, P. Ejercicios espirituales y filosofía antigua. Ediciones Siruela, 2006.

Hadot, P. ¿Qué es la filosofía antigua? Fondo de Cultura Económica, 1998.