JÚLIA – As suas palavras são correntes; os seus juramentos, oráculos; o seu amor, sincero; os seus pensamentos, puros; as suas lágrimas, intérpretes verdadeiros da sua alma. O seu coração dista da perfídia como a terra do céu.
LÚCÍA – Oxalá a encontres assim a chegar ao seu lado.
Não há prazer na terra comparável à alegria de servir o Amor.
É considerada também uma das primeiras obras escritas por Shakespeare, e ainda que somente a encontremos pela primeira vez impressa no First Folio do ano 1623, há menções a ela em 1598, e os especialistas afirmam, baseando-se em questões de estilo, que deve ter sido escrita em torno de 1591. É um dos dramas menos representados do nosso poeta, e de facto, não encontramos registo de que o tivesse sido em vida de Shakespeare, e nem sequer, até ao ano 1762.
O tema é, aparentemente, a amizade entre dois fidalgos de Verona, e como a paixão – os dois jovens rendidos de amor por uma mesma mulher – quebra este santo irmanamento. No entanto, encontramos uma mensagem velada que podia associar-se ao mistério da encarnação das almas.
Dois jovens de nobre educação (fidalgos), Valentino e Proteu, de Verona, vêm-se obrigados a separar-se quando o primeiro vai para a corte do imperador de Milão. Proteu está enamorado de Júlia e prefere ficar na ociosidade das suas coitas, ainda que tenha sido repreendido pelo seu amigo pela sua inatividade e o jugo dos seus afetos. E, no entanto, o pai de Proteu, com a finalidade de que adquirisse experiência e instrução, envia-o também a Milão, contra os seus desejos. Quando chega a esta cidade encontra o seu amigo enamorado de Sílvia, filha do duque de Milão, e ele mesmo fica arrebatado pela sua beleza.
Proteu chega inclusive a caluniá-lo ante o imperador para se desfazer do seu rival, antes amigo da alma, e assim Valentim é exilado e ao fugir, convertido em chefe de um bando de “ilustres” foragidos, que medram num bosque entre Verona e Milão. Júlia, incapaz de esperar o retorno do seu amado Proteu, viaja a Milão disfarçada de pajem e entra ao seu serviço. Sílvia, ao saber da traição de Proteu a seu amigo, amaldiçoa-o e não cede ao seu cortejo, nem ao de Turio, inepto, mas rico pretendente, que por causa do seu dinheiro era o preferido do seu pai. Sílvia foge e engana a vigilância paterna, simulando ir confessar-se numa ermita. No final todos se reencontram no bosque, onde Proteu, farto de ser rechaçado decide tomar Sílvia pela força. Valentim defende-a, chamando-o à razão, em virtude da sua velha amizade. Proteu arrepende-se, e renuncia a ela, inclusive, quando o amigo “a cede”, dando assim mais valor à sua amizade que ao próprio amor. Júlia desmaia e eles descobrem quem é, e Proteu volta a ficar com ela. No final, já “cada ovelha com o seu par”, encontram a felicidade, pois o imperador autoriza Valentim a casar-se com a sua filha.
No meio desta trama os dois criados de Proteu e Valentim, Launce e Speed respetivamente, causam as delícias do leitor com as suas piadas e equívocos.
Harold Bloom, um dos mais famosos, eruditos e superficiais dos especialistas do nosso dramaturgo, no seu “Shakespeare, a invenção do humano” diz que esta obra deveria ser descartada (!!!) por falta de consistência e falta de genialidade. Tem razão em que se geram situações inverossímeis, mas é que precisamente nelas está o quid da questão esotérica. A última coisa que Sílvia diz na obra é “Céus!” quando Proteu decide violá-la, e no resto das páginas já não se ouve, ainda que seja, diríamos hoje, a “rainha da festa”, pouco credível! E ainda menos que depois desta vilania, não consumada, o seu amigo Valentim esteja disposto a cedê-la, e ela se mantenha num “ambíguo silêncio”.
Sem vergonha e mentecapto é como chama H. Bloom a um e a outro dos protagonistas, fidalgos de Verona, e justifica assim que o público não possa aceitar esta farsa, tão inacreditável.
É Mather Walker, no seu artigo “Francis Bacon e as Raízes Místicas dos Dois Cavalheiros de Verona” quem, em minha opinião, encontrou uma das chaves secretas desta obra. Há um personagem insuspeito, que assume uma importância aparentemente desmedida, que é o cão de Launce, chamado Crab. Inclusive, o próprio Launce assume as culpas de ter roubado um pedaço de carne, para evitar que a sua mascote seja castigada.
Este cão faz-nos pensar, desde logo, no deus egípcio Anúbis, cujos sacerdotes identificaram com a estrela Sírio. A própria constelação Canis Minor na qual está, desenha perfeitamente o perfil desta divindade-cão, e nela, Sírio converte-se no seu olho direito. O nome Crab é caranguejo, ou seja, a constelação com esse nome na qual esta estrela exerce a sua influência, pois a sua conjunção com o Sol se dá no mês de Julho, os dias de maior calor, chamados, precisamente, da “canícula” ou do cão (ou seja, de Anúbis). O conhecimento sobre este Deus, chamado o Senhor do Tempo, pôde chegar a Shakespeare através das obras de Plutarco, das quais era infatigável leitor, como se vê em Júlio César e no Timão de Atenas. Ele, Anúbis, é o pastor de almas (daí a sua posterior relação com Cristo) e guia-as para a luz, é,desta forma, o Deus dos Mortos e o dos Iniciados. Protege-as e ajuda-as a encarnar (na sua forma de “Abridor de Caminhos, Upuaut, cujo símbolo é, precisamente, a placenta), e também a desencarnar, guiando-as nas sendas invisíveis. São também chamativas nesta obra, num diálogo “humorístico” entre Proteu e Launce, as alusões ao homem como ovelha que necessita um pastor que a guie e proteja. As alusões também à importância do báculo que sustenta em pé no caminho, já que este cajado de pastor era outro dos símbolos associados a Anúbis, ao que os Egípcios pediam ajuda para se “manter” em pé no meio das correntes e dificuldades do mundo inferior (a terra na qual suportam as provas as almas encarnadas). Além disso Ele, como guia no invisível para a Luz, era o Senhor da Esperança.
VALENTIM – Cala! A não ser que a primeira palavra que pronuncies tenha sobre a minha vida um poder de morte. Se é assim, rogo-te que a faças ouvir como o último cântico da minha última dor.
PROTEU – Não deplores o que já é irremediável, e procura os remédios para o que deploras. O tempo é pai e criador de todo o bem. Se permaneces aqui não poderás ver a que amas [a Sílvia, que representa a Sabedoria, o equivalente à Sofia gnóstica ou à Atena grega], imprudência que além disso, te custará a vida [a da alma]. A esperança é o báculo de um amante, caminha desde aqui com ele e usa-o contra os pensamentos de desespero.
Além disso, como muito bem explica o professor Fernando Schwarz no seu Egipto Invisível, Anúbis representa o eixo Sul Norte, e Valentim, logo depois deste diálogo, diz ao seu criado que se reúna com ele na Porta do Norte, sai nessa direção, para entrar no bosque. É o símbolo da alma que desencarna ou que avança para o profundo, para o desconhecido.
Recordemos, também, a importância que se deu na Antiguidade Clássica e na filosofia neoplatónica às portas zodiacais de Caranguejo e Capricórnio, as dos solstícios de verão e de inverno respetivamente. Tal como se refere no Antro das Ninfas de Porfírio, são, alegoricamente, as portas pelas quais as almas entram na matéria (ou seja, que simbolicamente “morrem”, no solstício de verão) e pelas que saem dela (pelas que “nascem”, ao libertar-se da carne-prisão-esquecimento):
Para os Egípcios, não é Aquário o signo com que começa o ano, mas Caranguejo, já que perto de Caranguejo se encontra a estrela Sothis, chamada estrela do cão pelos Gregos. Para eles, o primeiro dia deste mês vem assinalado pela saída de Sothis, que é o princípio da geração no mundo. Por essa razão, Homero não estabeleceu nenhuma porta a Levante ou a Poente nem nos equinócios, ou seja, em Carneiro ou Balança, mas a Sul e a Norte; a Sul as aberturas mais meridionais e as mais setentrionais a Norte; pois este antro estava consagrado às almas e às Ninfas Hidríades e estes lugares convêm ao nascimento e morte das almas.
Mather Walker, no artigo já citado, diz que Valentim-Proteu-Turio, os três pretendentes de Sílvia (Sofia, a sabedoria pura, mas exilada na terra dos mortais segundo o gnosticismo do Pistis Sophia) representam:
- Valentim – a mente racional e pura, o manas da filosofia hindu e teosófica, a alma causal que semeia e recolhe o fruto dos seus atos no teatro do mundo. Não deixa de ser chamativa a identidade deste nome com o autor de Pistis Sofia, e também com a alma valente, que deve adquirir experiência e sabedoria na terra. Sabedoria é a pura luz, a alma de tudo o que existe, a mãe, amada e último anseio do ser humano, a conquista definitiva. A experiência é a que é necessário ir adquirindo num processo alquímico de dor e superação, pois o ouro prova-se e depura-se com o fogo, e os homens com a desgraça, segundo tantas vezes ensinaram os clássicos. A experiência adquire-se com o trabalho e aperfeiçoa-se com o tempo, lemos nesta obra, e o tempo é pai e criador de todo o bem[1].
- Proteu – o corpo astral, a psique ou corpo formativo (inclui a mente inferior ou de desejos, kama-manas na terminologia teosófica), a imaginação e a fantasia. O próprio nome de Proteu é muito indicativo, pois a psique é proteica, transforma-se incessantemente. Assume as imagens da natureza – toda a natureza, com os seus reinos mineral, vegetal e animal vivem e encontram o seu eco e reflexo na nossa psique –, quando olha para fora; ou segue os ditados do Eu interior, a mente, se esta ilumina com força desde dentro. Que apropriada a frase que diz este personagem: “Fugia do fogo, para não me abrasar, e caí no mar, onde me afogo”, este é exatamente o percurso da psique desde a mente, que consome com o seu fogo, até à matéria, que a absorve e afoga.
- Túrio – o corpo. O facto de que careça de qualquer tipo de luz, distinção e nobreza, nem sequer potencial, diz tudo; ainda diz mais, que seja rico, que tenha posses terrenas. E que seja um perfeito cobarde– “ninguém tão cobarde como o egoísta” disse um sábio, e nada tão egoísta como a aranha sempre à espreita que é o eu inferior. Também que seja escuro, que escura é a terra e o carvão que absorvem a luz, e a matéria que quer aprisionar a alma. No De Imaginum de Giordano Bruno, descreve-se a relação entre a forma e a matéria, como o abraço de um menino branco e uma menina escura.
São na realidade os mesmos três estados, condições ou naturezas que aparecem na escolha de Pórcia no Mercador de Veneza, e associados ao ouro solar (a mente), a prata lunar (a psique) e o chumbo[2] saturnino (a matéria opaca).
Um dos assuntos que mais nos chama a atenção é as vezes que se diz que Valentim e Proteu são um, ou um para o outro. Por um lado, porque esse é o sentido íntimo da amizade. Como diria Aristóteles, um amigo é um “outro eu”. Mas ambos são muito diferentes, são então como as duas faces do mesmo, como o princípio emocional e o mental na natureza humana, ou como as duas faces da mente na filosofia hindu, uma apontando ao permanente, ao céu, e a outra a tudo o que acontece e vive no mundo. São como Castor e Pólux na mitologia grega, um (Valentim) imortalizando o outro (Proteu) que ao não pertencer a si mesmo, morre a cada instante, pois a cada instante se transforma. É assim que Proteu quebra todos os juramentos, atraiçoa-se a si mesmo, muda uma e outra vez repentinamente o objeto do seu amor:
O que há no rosto de Sílvia que os meus constantes olhos não podem encontrar com mais frescura ainda em Júlia?
Em resumo, Valentim é a parte da alma que continua intacta ao encarnar, simplesmente entra no sofrimento amoroso que lhe permite aperfeiçoar-se; Proteu é a parte da alma que se rompe em pedaços na queda, a que muda, a que já não se reconhece nem a si mesma pois quebra todas as suas fidelidades.
Vejamos no texto essa identidade Valentim-Proteu:
Valentim diz a Proteu:
Um mesmo dia será o vosso casamente e o meu. E não teremos mais que uma festa, uma casa, uma mútua felicidade.
E quando o Duque pergunta a Valentim: “Conheceis-lhe?” Ele responde: “Como a mim mesmo. Desde a infância que estamos juntos.”
Na imaginaria egípcia, que passaria em parte à imaginaria grega, a alma humana é formada na roda de um oleiro (pelo deus Khnum, o modelador, na egípcia, e por Prometeu na grega), e é feita dupla, ou seja, com duas figuras diferentes. Como o Ka egípcio – que é o duplo astral – que é um nó de forças celestes, o verdadeiro veículo, e não o corpo, do Eu mental. É a base da imaginação, através da qual nos unimos com todas as coisas, como um espelho mágico que tudo reflete, e o único modo de aceder à verdade pois as imagens mentais são as portas ou janelas através das quais acedemos ao desconhecido. Por isso Proteu diz a Valentim, quando este vai viajar de Verona a Milão:
PROTEU – Pensa no teu amigo Proteu quando encontrares algo extraordinário, digno de nota, na tua travessia. Tem-me presente nos momentos de felicidade, quando tudo for bem. E nos teus perigos, se te rodearam, encomenda os teus infortúnios às minhas santas orações, pois serei o teu intercessor, Valentim.
VALENTIM – E rogarás pelo meu êxito num devocionário de amor?
PROTEU – Rogarei por ti em certo livro que amo.
Estranha afirmação, que nunca chegaremos a saber a que se refere. É o livro do coração de amigo, pois nele se grava tudo o que a nossa alma, com as suas vivências, escreve, ou refere-se ao que na idade média chamavam Livro da Vida e os ocultistas Arquivos Akáshicos ou Luz Astral, ou seja, a matéria plástica na qual se recolhem todos os acontecimentos em todos os planos de consciência, sejam materialmente objetivos, ou simplesmente pensamentos, sentimentos, etc.?
A ideia que apresenta Mather Walker é que a alegoria nesta obra é, como dizemos, a encarnação das almas. Descem, desde a sua inocência, ao lugar dos conflitos, que também é o da aprendizagem e o do desejo e do medo, do prazer e da dor. Primeiro viaja Valentim, que é a mente, depois segue-o Proteu, o astral, que assim que chega, converte o amigo em inimigo, e assim são ambos até que a obra se resolva. Depois viaja Júlia, a amada de Proteu, que é a sua clara contraparte, como o é a sabedoria da mente. Uma e outra vez se alude a que Júlia e Proteu são sombras, são como espelhos que refletem o que neles se olha. A belíssima cena de Júlia a quebrar em mil pedaços uma carta de amor e jogando com as palavras como se fossem seres é muito eloquente. Rasgou-a simulando a sua indiferença quanto ao seu conteúdo, e logo a reconstrói:
Júlia – E porque me zanguei tanto?… Que ódio tenho às minhas mãos por ter rasgado tantas frases cheias de amor! (…) Quero beijar, em reparação, um após outro, todos estes pedacinhos de papel (…) Mas aqui aparece muitas vezes o nome de Proteu [essa imagem de caleidoscópio, com efeito repetitivo é também muito próprio da mente emocional, facto comprovado todos os dias nos mecanismos dos nossos pensamentos] … Não sopres, bondoso vento! Não me roubes nem uma só palavra até que encontre todas as letras desta carta, à exceção do meu nome!
Júlia é aconselhada por Lúcia, que é a sua donzela e conselheira. Lúcia representa a intuição ou visão certa da alma, como o seu próprio nome indica. Não viaja até Milão, pois a intuição é celeste, não pode descer à terra, e é memória de todo o verdadeiro, de todo o eterno que a alma tenha executado:
JÚLIA – Aconselha-me, Lúcia, ajuda-me, amável rapariga! E posto que tu és o livro de memórias em que se imprimiram em caracteres que não se apagam os meus pensamentos…
É também enigmático e eloquente o que diz Lúcia:
Eu vejo muitas coisas, ainda que acrediteis que tenho os olhos fechados.
A viagem de Júlia, de Verona a Milão, deve simbolizar a descida da alma, pois é comparada com um rio que se precipita ao mar. Esta analogia do rio de água doce com a alma da mulher também é uma das mais belas da literatura de todos os tempos:
“Se o manso ribeiro que desliza com suave murmúrio pretendes deter, protestará, empurrando as suas ondas com impaciente estrondo; mas se livremente o deixas seguir o seu curso, acariciará com melodioso sussurro o esmalte dos seus grãos de areia, beijando com amor quantos arbustos encontre na sua peregrinação, e depois de ter brincado docemente em mil revoltas, irá precipitar-se no mar embravecido. Portanto, deixa-me partir, e não tentes deter o meu curso; serei tão sofrida como a gentil corrente; a mais dura marcha será para mim um desporto até que os últimos passos me conduzam ante o meu amado. Uma vez lá, esquecendo todas as minhas penas, descansarei como uma alma bendita no Eliseu.”
Sílvia, como dissemos, é a Sabedoria, encarnada. Por isso quando perguntam a Valentim se é um anjo no céu diz que não, mas que sim é uma maravilha na terra. E quando o pai o descobre querendo raptá-la, a metáfora que usa é a das estrelas:
Ah, Faetonte (porque és filho de Merops), aspiras guiar o celeste carro, como cocheiro, e com a tua louca audácia queres abraçar o mundo? Pretendes elevar-te até aos astros, porque eles te emprestam a sua luz? Fora, vil intruso, escravo vaidoso! Comparte com os teus iguais os teus falsos sorrisos.
Sílvia é, na versão literal, narrativa, a sua amada; na alegórica, a própria luz da sua alma, a sabedoria, o verdadeiro objetivo de que tenha descido ao mundo (Milão):
Desterrar-me do seu lado é arrancar-me de mim mesmo… Horrível desterro! Que luz é luz se não vejo a Sílvia? Que prazer é prazer se Sílvia não está ao meu lado, a não ser que sonhe que ela está ali presente e que a imagem da perfeição venha a ser alimento da minha vida? Se de noite não estou próximo de Sílvia, não tem harmonia o rouxinol. Se de dia não contemplo Sílvia é tudo sombras e o caos para mim. Ela é a minha essência. Não posso viver sem ser nutrido, iluminado, protegido, sustentado na vida pela sua influência benfeitora!
E ela é trata-a mais como uma deusa do que como uma mortal:
É santa, formosa, discreta,
Os céus adornaram-na de tais perfeições,
Que não pode menos que ser admirada.
É tão terna como formosa,
Porque a sua beleza concorda bem com a sua ternura.
O amor acode aos seus olhos,
Para encontrar neles o remédio da cegueira;
E tendo-o encontrado, estabelece-se ali.
Cantemos, portanto, a Sílvia,
Que Sílvia é perfeita.
Excede todos os mortais
Que habitam neste triste solo.
Levemos-lhe as nossas grinaldas.
Em outro momento reza-lhe, à distância:
Oh tu, que habitas no meu peito, não deixes a tua morada tanto tempo vazia, não deixes que a sua ruína cresça pela tua ausência, e caindo em pedaços tombe o edifício e não deixe memória do que foi! Sílvia, alenta-me com a tua presença! Tu, ninfa amorosa, consola o teu desolado pastor.
Quando Valentim foge de Milão e se refugia no bosque é como a alma que se retira das rodas de ferro do mundo, entrando num reino ainda não celeste, mas interior. É a alegoria do bosque nos contos infantis ou nas sagas de cavalaria, onde o Aspirante devia entrar para encontrar-se consigo mesmo, e lutar contra todos os monstros que habitam na mente. Os foragidos que o atacam, e ao ver a sua qualidade moral e inteligência o proclamam rei, numa chave podem simbolizar os poderes ocultos da alma, as forças internas que esperam a sua presença para a destruir, se não é suficientemente pura, ou pôr-se ao seu serviço se o é, o equivalente do que na Índia chamam siddhis ou serpentes-poderes, como nos ensina H.P. Blavatsky na Voz do Silêncio que podem ser de natureza psíquica ou espiritual.
BANDIDO 2º – Considerando, por outra parte, que sois um desterrado, resolvemos, pois, fazer-vos proposições. Quereis ser nosso capitão, converter em virtude a necessidade e viver como nós nestes despovoados?
BANDIDO 3º – Que te parece? Queres ser dos nossos? Diz “sim”, e serás o nosso capitão. Render-te-emos homenagem e te obedeceremos e amaremos como nosso chefe e rei.
BANDIDO 1º – Mas se recusas a nossa oferta dar-te-emos a morte.
(…)
BANDIDO 3º – (…) Vamos apresentar-te toda a quadrilha e mostrar-te os tesouros que possuímos, e os que, assim como nós, podes dispor.
Numa das cenas o Duque de Milão simula que está enamorado para descobrir a intenção do rapto de Valentim a sua filha, e pergunta a este como conquistar o objeto do seu amor, dado que ele já está desatualizado nestas lides:
Perdi o costume de cortejar e os meios modernos são outros.
A resposta é um verdadeiro tratado sobre a arte da sedução e sobre a psicologia feminina. Tal como se manifestava, pelo menos, naquela época.
Atrai-a com presentes, se nela não fazem efeito as palavras. Muitas joias, com o seu eloquente silêncio, dizem às vezes mais na alma da mulher que todos os discursos (…) Nada aborrece tanto as mulheres como a solidão, que é o que as torna loucas, então, se te fala com desdém, não é para se libertar da tua presença. Pois “sai” nos seus lábios não quer dizer “vai embora”. Adulai, elogiai, rogai, exaltai os seus encantos.
Noutra passagem diz: “o que mais detestam de coração as mulheres é um homem que seja falso, cobarde e mal nascido.” Outros defeitos poderão ser suportados, mas estes não.
Nesta, como em outras obras de Shakespeare, diz-se que a virtude mais importante do homem é a constância, ou seja, ter um coração de diamante, e não um carácter volúvel, fútil, aéreo. Ter gravidade moral e fortaleza interior. A maior parte dos males que adoecem a sociedade, que são um eco dos males que afligem a alma humana, são causados por esta falta de constância, que não é rigidez nem imobilidade, mas “a vontade inquebrantável e continuada na determinação de fazer uma coisa”, ou seja, as nossas convicções e a sua realização não são agitadas por mudanças de tempo nem de circunstâncias. Esta virtude, infelizmente, é hoje muito mal compreendida. Na época de Shakespeare era a virtude régia por excelência, e muitos educadores de príncipes trouxeram à luz os textos de Séneca a respeito dela, especialmente o seu livro “Da constância do sábio”. Naqueles tempos, a facilidade com que os nossos atuais governantes falham as suas promessas seria simplesmente inaceitável, na primeira ruptura de palavra ficariam desacreditados frente aos olhos do mundo e do seu povo e seriam tratados com o mais absoluto dos desprezos. Hoje, as massas são seduzidas pelos seus governantes que lhes mentem uma e outra vez, e o pior de tudo, aceitam isto com naturalidade. Ó tempo, ó costumes!
Shakespeare faz dizer a Proteu:
O homem seria perfeito se fosse constante. Só este defeito é a origem de todas as suas faltas, e arrasta-o a todos os pecados. A inconstância perde antes de ter ganho.
Artículo interesante e ilustrativo. El estudio de las otras “lecturas” de los dramas de Shakespeare aún está sin hacer, aunque imagino que no debe ser nada fácil. ¡Qué personaje tan esfíngico, sorprendente se esconde detrás de este nombre, de este autor! Las situaciones morales que plantean sus obras son, al parecer, sólo el reflejo de otras situaciones que tienen que ver con el misterio del alma Humana, en toda su grandeza. Algo lógico, pues todo lo que existe en la sociedad es un reflejo de lo que habita en el alma humana. Leer a Shakespeare sabiendo que sus obras son alegorías de Misterios, y hallar el hilo de Ariadna de los mismos es una tarea aún casi no comenzada, y eso que ya han pasado cuatro siglos. Esperaremos! con Platón sucedió algo semejante. Tuvimos que esperar seis siglos hasta que los neoplatónicos interpretaron públicamente el sentido esotérico de sus obras, o tres siglos más hasta que un Proclo nos dijjo que cada una de sus obras era una “sinfonía musical de ideas” donde cada imagen aparentemente casual tenía un sentido trascendente, superior.