Qualquer um que tenha lido a Divina Comédia de Dante sabe que esta é uma Viagem da Alma, da de Dante, ou de cada um de nós, ou seja, de toda a Humanidade. A Alma encontra-se com paisagens de desolação, de negação do mais sagrado no Inferno, e também de esperança e de redenção na Montanha do Purgatório, e com momentos de beatitude e divina compreensão, mesmo que seja sonho nada mais, nos diferentes céus do Paraíso.
Quantos criadores se deixaram levar pelo encanto deste feitiço, desta viagem às profundezas e ao Céu, guiados pelas cenas, diálogos e gestos que Dante, genialmente vai traçando. Com tanta força que nos arrasta!, e depois o pintor, ou o escultor, ou o músico vão tentar expressar esta vivência do texto na arte cujas leis conhecem.
Desde os códices medievais em miniatura, às imagens sonhadoras e evanescentes de Dalí, quantos pintores recriaram com as formas e cores as paisagens da Divina Comédia. Destacamos as gravuras do inglês John Flaxman e as de William Blake, pois Dante causou um grande impacto também no carácter empírico deste povo. Ou as de Gustavo Doré, tão realistas, em que quase se pode sentir a dureza da pedra ou a agitação das árvores, e a sua textura e ramagem.
Na música, comovem-nos os terríveis e celestiais acordes da Sinfonia Dante de Liszt, e na escultura a colossal Porta do Inferno de Augusto Rodin, ambas sublimes.
A Divina Comédia, logo após o assassinato dos Templários, é, embora de facto medieval – com o seu corpus de experiências e interpretações da vida – uma porta aberta para o Renascimento, com a sua doutrina do Amor, atributo puro da alma humana, como um fogo que tudo incendeia: Inferno com a sua sensualidade punida pela Lei, o Purgatório com a sua esperança e saudade da pureza, e o Paraíso com o reconhecimento da sua verdadeira e pura essência.
A vida das Estrelas é a vida de Deus, o centro único de onde tudo irradia. Negar a sua luz na alma é o Inferno; senti-las, para além das dificuldades, e graças a estas com o seu poder redentor, é o Purgatório; viver o seu Eterno Alento (pois as Estrelas são os Arquétipos de Platão ou os Números dos Pitagóricos) é a dança da luz e amor do Paraíso. Esta visão é renascentista, e não é por casualidade que cada um dos Livros da Divina Comédia termina com a palavra “estrelas”.
Um dos génios do Renascimento que, mais dado o seu caráter sonhador e que ele próprio se sentiu filho da Deusa da Beleza, sentiu-se arrebatado pelo feitiço da Divina Comédia, é Botticelli. E quando, nos finais do século XIX, o Kupferstichkabinett de Berlim comprou 85 placas dele ilustrando este livro de Dante, vieram à luz pública; e mais tarde soube-se que dessa mesma coleção eram 8 ilustrações que a Biblioteca do Vaticano tinha adquirido da coleção da Rainha Cristina da Suécia. A mais importante delas, o Mapa do Inferno, está nesta coleção, e é uma obra portentosa nos seus detalhes. Parece uma banda desenhada de toda a viagem de Virgílio e Dante através deste labirinto descendente e de horrores em que se sente o lema que figura na inscrição da sua entrada: “Aqueles que entram, perdem toda a esperança”
Também, interpretando as palavras de Giorgio Vasari, são atribuídos a este pintor 19 desenhos então gravados em cobre para a primeira impressão deste livro, em 1481. Desconheço em que argumentos e factos se baseiam, para além das declarações do historiador do Renascimento italiano, mas o espírito e a feitura destes desenhos pouco se assemelham às pinturas de Botticelli, mas podemos dizer que são medievais. Se não, julgue-o leitor.
Vasari contou-nos sobre as queixas do pai de Botticelli, que em vez de aceitar pedidos lucrativos, tinha-se fechado no seu quarto e que imerso na melancolia, realizou estes desenhos. Tal é a perplexidade que, ao estudá-los, os especialistas prolongam o período de composição dos mesmos, de 1485 até ao momento da sua morte, em 1510. A obra ficou inacabada, embora não saibamos até que ponto. Pois se desconhece se as ilustrações estavam ou não a cores, e se a cor era encomendada a outros. Que a última página, em branco, aluda à Luz Divina, e nada mais precisa ser dito! e que o pintor não representava a Rosa Mística, sublime, que Dante descreve, é uma interpretação, embora verdadeira em semântica, muito típica do nosso século de violência e perplexidade, isto é, absurda. Faz-me lembrar o túmulo de El Cid, Alma de Espanha, em Burgos, ao trasladar os seus restos mortais para a catedral de Burgos, em 1921. Incapazes, ou sem o orçamento ou coragem para fazer um sarcófago condigno de tal personagem, em vez de admitirem sinceramente a sua impotência ou desânimo, simplesmente disseram que o sarcófago de tão grande personagem só poderia ser toda a catedral, e por isso livraram-se do trabalho de lhe fazerem um. Coisas verás, Sancho…
Ao contrário de quase todos os ilustradores anteriores e mesmo posteriores – pois ninguém se atreveu a fazer o que Botticelli fez – as pinturas não escolhem cenas da Divina Comédia, mas no plano original deviam estar todas, todas aquelas que aparecem em cada um dos 100 Cantos da magna obra. Repete a imagem de Virgílio e Dante, ou de Beatriz e Dante na mesma placa várias vezes, acompanhando a ação completa dos mesmos no livro. Isto era inédito na pintura conhecida, e, no entanto, é a forma que usaram os egípcios nas pinturas dos seus papiros, por exemplo, o de Ani do chamado Livro dos Mortos. Na obra de Botticelli, como neste último, deve ser lida sob a forma das vinhetas de uma banda desenhada, a única maneira de acompanhar fielmente os diferentes sucessos da Alma, quer na Divina Comédia, quer no Papiro de Ani, que no fundo, são muito semelhantes.
As placas que compõem o manuscrito têm uma largura de 47 cm por 32 de altura, e acompanhavam cada Canto (algumas placas foram perdidas), escritas, o que formaria um livro em estrutura vertical e grande formato, o dobro do tamanho da própria página ilustrada (ou seja, 47 cm por 64).
Sendo o pergaminho usado de requintada qualidade, e, portanto, caríssimo, não havia possibilidade de erros no traço. Botticelli sinaliza a linha com uma ponta de prata, e experimenta várias opções. Só quando está convencido é que pinta com tinta a ranhura que já deixou na pele. Há placas quase em branco, mas depois têm desenhos quase completos quase invisíveis.
Virgílio em vez de aparecer com trajes típicos de Roma Clássica vem com um chapéu bizantino. E é quase certo que a inspiração para esta personagem foi o formidável Gemisto Pletão[1], um dos grandes Iniciados que estiveram por trás do Renascimento Florentino, e que deve ter gerado um impacto definitivo em Botticelli, como o grande Mestre que era. Embora se o conheceu pessoalmente, foi como uma criança ou adolescente, dadas as datas, já que Gemisto Pletão promoveu a Academia de Marsilio Ficino, então fundada em 1459, e a data de nascimento de Botticelli é em 1445. Dante aparece sempre com a cor vermelha, a do sangue da vida, e a do amor em ação, e o Virgílio com vestes azuis, as da sabedoria.
Beatriz é a mesma Deusa do Amor, tal como se mostra no quadro do Nascimento de Vénus. Os seus gestos são os mesmos, o seu rosto, o seu corpo, não há dúvida sobre isso, o que é uma bela prova que o pintor entendeu em toda a sua profundidade a mensagem da Divina Comédia. E como é mencionado pelos mesmos especialistas nos vários documentários sobre este tema, Botticelli consegue pintar a microgravidade, como se comportam as vestimentas em tal estado, não é fácil de imaginar, de qualquer forma. Pois, não é o mesmo voar com gravidade que a dita microgravidade, como sabemos agora no nosso século tecnológico. Beatriz é alma pura, e como tal é ausente de peso, as suas vestes rodeiam-na criando tal sensação, magistralmente conseguida. Pelo contrário, Dante, embora entre no Céu, fá-lo sempre com o peso da Terra e mostra as vestimentas que caem normalmente.
Outro detalhe interessante que não tenho visto mencionado, é a relação de tamanhos entre Beatriz e Dante, que no início acompanham, se não exatamente, com aproximação à Proporção de Ouro. Mas a medida que Dante vai ascendendo no Paraíso, vai se tornando cada vez mais semelhante com Beatriz até serem os dois praticamente idênticos. Por exemplo, no último Céu, o do Empíreo, quando se preparam para subir o Rio da Luz Divina que já leva ao coro das almas perfeitas, traçado pelo caminho não em vertical, como outros ilustradores o fizeram, mas seguindo a diagonal da Duplo Quadrado, ou seja, Raiz de 5, o núcleo vivo do Pentágono estrela, outro ensinamento sublime.
É admirável como Dante, com Beatriz, no céu da Lua, com as suas almas bem-aventuradas fazendo o desenho da mesmo Astro em crescente no firmamento, tem duas faces. E não é um erro, porque não estão traçadas, ambas estão pintadas. O que nos quis dizer o pintor florentino? É uma alusão à dupla face da Lua? Ou que é nesta “porta da Lua” com a alma ainda não muito obstruída, nem perfeitamente virtuosa – assim descreve Dante estas almas que habitam nesta dimensão – sente o poeta o chamamento, o peso da Terra ou o da memória? Ou é que quer olhar para a Luz que ilumina o semblante da mesma Lua?
E as chamas que se agitam Vénus – e que não enchem o seu disco, como o fazem, por exemplo, no Céu de Mercúrio – gerando a forma de um crescente, como na Lua, será uma alusão antes da prova de Galileu, que Vénus também tem fases, que descobriu com o telescópio este sábio? Pois sabemos que na escola neoplatónica de Ficino havia um programa de ensinamentos secretos, que só através da arte ou alegoria foram insinuados mais tarde, veladamente.
Também não é coincidência, no céu de Saturno, a Escada de 10 degraus, o número de ordem de seres e categorias, pelo qual se eleva através da meditação, ao céu da contemplação, e transcende a própria mente, que este planeta representa. Esta Escada foi o símbolo da Dialética, como é representada nas artes liberais do Trivium, e é a coroa de todas as ciências, segundo Platão. Muitos, entre os famosos medalhões de Notre Dame de Paris confundem esta com Alquimia, quando se trata de Dialética, que é, em última análise, uma forma de alquimia mental, como explicou H.P. Blavatsky em “A Chave para a Teosofia”, falando da oração mental (à qual Santa Teresa de Jesus daria tanta importância quando sincera e surgida das profundezas da alma, e muito perigosa, hipnótica e estultificante se não é assim).
“A oração é, em vez disso, um mistério; um procedimento oculto, pelo qual pensamentos e desejos condicionados e finitos, incapazes de ser assimilados pelo espírito absoluto, que é incondicional, são transformados em desejos espirituais e em vontade, chamando-se este procedimento de “transmutação espiritual”. A intensidade nas nossas ardentes aspirações transforma a oração em “pedra filosofal”, ou aquela que transmuta o chumbo em ouro puro. Pela nossa “oração de vontade, a única essência homogénea torna-se na força ativa ou criativa, e produz efeitos de acordo com o nosso desejo.”
Naquela que talvez seja a imagem inacabada da Rosa Mística, na qual Beatriz está ao lado de Eva e da própria Virgem Maria, retrocedeu o pincel de Botticelli. Não se sentia preparado para representar este mistério que o próprio Dante disse que não sabe como referir, pois, fazê-lo é tão impossível como a quadratura do círculo? Foi impedido pelos diálogos e a influência de Savonarola, que tantas sombras e dúvidas lançaram sobre a alma do pintor, com o seu fanatismo e esquizofrenia, e, por outro lado, um terrível magnetismo, influência contrária da que tinham exercido Ficino e os ensinamentos de Gemisto Pletão?
Não o sabemos, mas a verdade é que o pintor do céu, da beleza, do amor e de todo o nobre e bom que há na alma, com a imaculada ternura dos seus traços que vemos, por exemplo nas suas pinturas da Primavera ou do Nascimento de Vénus, entra depois numa dimensão escura e torturada que, obviamente vai refletir a sua pintura.
Diz-se que as ilustrações de Botticelli do Inferno ou do Paraíso não são, “dantescas”, que não são terríveis. E não me parece verdade, basta olhar com uma lupa ou com detalhe as almas no inferno e como são representadas. É aterrador! Mas ainda é Botticelli, não El Bosco, a sua ternura mediterrânica, florentina, e a da sua própria alma, aparecem em cada linha. A sua beleza move-nos, mas não nos esmaga, nem nos imobiliza perante o terror do sublime, mas docemente, de mãos dadas, como Virgílio ou Beatriz, nos leva ao céu das suas vivências filosóficas e estéticas, um presente dos Deuses.
José Carlos Fernández
Escritor e diretor de Nova Acrópole Portugal
[1] Basta ver o retrato de Pletão no fresco do Palácio dos Medici, feito por Benozzo Gozzoli, é idêntico.