Estranho é este reino da Natureza, de onde a primazia do sentimento, acima de outras características, faz com que nos homens surjam as mais diversas emoções, no que respeita aos animais. Assim, temem-se, amam-se, são-nos indiferentes… mas dificilmente os admiramos, para o qual bastaria apercebermo-nos do destaque que Maya pôs à disposição desta especial forma de vida.

Quando julgamos os animais, colocamo-nos em dois pontos de vista extremos: ou são feras nocivas das quais há que escapar, ou até tentar matar, ou são seres inferiores (aos homens, entenda-se) que podemos submeter e utilizar sem maiores escrúpulos. No intermédio cabem todos os matizes possíveis: já não está só o que caça para comer, mas também o que goza afiando a pontaria sobre um corpo vivo; e não falta o que tortura animais porque a sua cobardia especial o impede de se confrontar com outros humanos mais fortes que ele.

Mas, a Natureza pôs no mundo os animais para nada mais do que assustar ou servir aos homens? E Maya aguça a sua inteligência para manter um estímulo económico para os homens?

Vejamos se, atrás dos véus da ilusão, existe algo mais.

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Dizem que os animais carecem de mente, que não podem raciocinar. Em princípio, isto é certo, ainda que não saibamos se para mal.  Na verdade, mais beneficia do que desfavorece os animais a sua carência de raciocínio.

Sem a mente, o instinto e o sentimento afloram nos animais em toda a sua simplicidade e naturalidade. 

No plano instintivo, para os animais torna-se fundamental comer, preservar as suas vidas, reproduzi-las, cuidar por um período das suas crias e saber como morrer a tempo dignamente. 

Há animais que comem até se saciar; mas não é exatamente um vício o que os leva a ser assim, mas uma espécie de instinto de economia que os obriga a guardar para “quando não haja”. Alguns guardam comida em covas e recantos; outros, fazem-no nos seus próprios estômagos, ou em bolsas especiais que Maya fabricou nos cantos da boca. A gula dos humanos é desconhecida para os animais; há instinto de comer, mas não vício. Se os animais matam para comer, pelo menos não o fazem por prazer; é a necessidade que os obriga.

O animal ataca por defesa, não por desafio. Defende-se a si próprio, ou defende a sua cria, mas se não vê perigo no homem, é raro que o fira ou mate. Há, sim, instinto de defesa, mas não desporto de matar.

Tigres. Pixabay

Para preservar as suas vidas, Maya pôs à disposição dos animais mil e um disfarces variados que lhes permitem dissimular-se entre as cores da Natureza; e assim, eles subsistem entre os seus inimigos animais naturais e entre os seus inimigos homens. Não viste os insetos cuja cor se confunde com a folhagem? Ou os olhos da coruja de noite, que se confundem com os pirilampos? Não viste a pele listrada de tigres e gatos, que passa despercebida entre os ramos das árvores?

Maya ajuda-os a todos… e, contudo, o peixe grande come o pequeno. Há em toda a Natureza uma aparente crueldade, que não é senão outro dos jogos ilusórios da subsistência. A força vence. Mas cada animal tem uma característica que lhe permite defender-se dos mais fortes; nenhum está desamparado nem desprovido. Agora, tudo é uma questão de pôr em marcha o valor das habilidades.

Todos os animais têm o instinto fundamental da reprodução, desde os mais pequenos insetos até aos mais evoluídos mamíferos. Mas, se analisarmos estes últimos pela sua principal semelhança com a natureza humana, veremos que, uma vez mais, há instinto, mas não há vício nem paixão. Os animais acasalam e reproduzem-se na época do ano mais apropriada para o desenvolvimento das suas crias. Nesses momentos procuram os seus pares e não há força que os separe dessa missão.  Porém, passada a época, o animal regressa à sua vida tranquila, e não tem a mente de continuar a pensar no prazer de um ato sem consequências, de uma união sem filhos.

Milhares de exemplos poderíamos citar do enorme cuidado que as bestas põem no desenvolvimento das suas crias. Mas a mãe guia o filho pequeno enquanto o filho não pode cuidar de si próprio; uma vez atingido este objetivo, o filho é adulto e “faz a sua vida”, enquanto a mãe se dedica a si mesma. Não há sentido de posse; há simplesmente sentido de maternidade e cuidado que termina quando termina o ciclo natural do ser pequeno que se tornou um adulto.

Coalas Pixabay

Todos os animais sabem morrer, e fazem-no em silêncio, serenamente, alguns talvez com um vislumbre de tristeza, mas sem desespero. Os animais não pensam… e talvez por isso não ponham em dúvida a sua própria eternidade. Eles aceitam os seus ciclos e vivem-nos sem os pensar. Eles “sentem” a vida; não a racionalizam. Por isso, não vemos neles o típico cansaço psicológico que tanto mata os humanos.

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Há nos animais dois tipos de inteligência: uma que é a característica do seu próprio desenvolvimento instintivo, e que os faz obrar acertadamente em cada um dos momentos da sua vida, e isso torna-os “sábios” no que nasceram para fazer. E outra, que é como “emprestada”, superior à própria espécie; uma espécie de “alma de grupo” que promove atitudes ultra inteligentes que surpreende os próprios humanos.

E é que no jogo de Maya tudo está perfeitamente encadeado. As pedras, no seu mundo de matéria quieta, têm um vislumbre do movimento que advirá algum dia para elas: então, contraem-se e dilatam-se. As plantas, na sua vitalidade fixada à terra, têm um vislumbre de sentimento quando florescem melhor ou pior segundo o modo com que são tratadas. E os animais, no seu mundo de emoções, têm um vislumbre de inteligência que o amanhã lhes trará no devido tempo. Também vemos como os homens racionais têm reflexos de etapas suprarracionais, que por agora não lhe pertencem, mas que serão suas com a evolução constante.

A inteligência superior dos animais manifesta-se em múltiplos exemplos. Já foi dito e escrito o suficiente sobre a vida das formigas ou das abelhas. É surpreendente verificar a formação do voo dos pássaros, o instinto migratório que os leva de um ponto ao outro do globo…

Cisnes voando. Pixabay

Há nos animais inteligência para enfrentar situações novas, para superar obstáculos, para curar feridas, para reconhecer a sua terra, para percorrer caminhos quase desconhecidos. Há neles um “radar” que lhes vem de mais longe que o seu mundo de sãos instintos e limpas emoções. Um radar que é o arquétipo da mente, de uma inteligência prática e sem entraves, um pouco diferente da que agora os homens desfrutam. Poderíamos chamá-la de “alma grupal”, como antes dissemos, ou a “grande mente do mundo animal”.

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Mas, sendo as emoções os elementos mais destacados do mundo animal, queremos dedicar-lhes um pouco de atenção, para as retirar dos jogos de Maya.

Os animais não são todos iguais; como entre os homens, as plantas e as pedras, há-os mais ou menos evoluídos. Costumamos aceitar que os mais evoluídos são aqueles que reconhecemos como domésticos. Estes vivem com os humanos, aceitam as suas leis, partilham-nas, respeitam-nas e amam-nas. 

Falar da fidelidade dos animais domésticos é bem pouco para destacar o que na verdade quero dizer. É verdade que há fidelidade; de certa forma, se quiséssemos exemplificar a fidelidade – oh, vergonha nossa! – teríamos que recorrer aos animais…

Mas eu acredito que os animais adoram os homens porque eles representam um deus para a sua esfera. A planta é um deus para a pedra, e o animal é, de certa forma, para a planta. Então, o homem é o deus dos animais, é o ser perfeito que, com o passar dos séculos, eles poderão chegar a equiparar-se. 

O animal doméstico ama os seus deuses, e quando encontra o “seu deus”, o seu amo, mesmo a palavra amor fica pequena. É um amor sem condições, sem exigências, sem ressentimentos. É simplesmente amor…

Já viram como estes animais procuram sempre a companhia dos seus donos? Viram como os defendem, como os seguem para além da morte? Viram como adoram as suas roupas, o seu perfume, a sua voz, as suas coisas todas? Como adotam o estado de atenção apenas com uma palavra do mestre?

Felicidade. Pixabay

Apesar de Maya jogar connosco e com os nossos sentidos, apesar de que a nossa inteligência esteja ainda em fase de estruturação, temos aqui uma boa ocasião para obter o mais válido dos ensinamentos. 

Contudo, falta-nos muito para sermos “homens domésticos”, homens evoluídos. Nós não reconhecemos tão facilmente os nossos deuses como o fazem os animais. E ainda que esses deuses se nos mostrassem, nem os amaríamos, nem lhes obedeceríamos; as leis divinas são meras abstrações e a palavra sagrada é um convencionalismo na maioria dos casos. Desconhecemos a verdadeira devoção e a verdadeira fidelidade. E se tivéssemos que escolher entre viver entre os homens ou seguir os nossos deuses até à morte… o egoísmo humano, as “vantagens da mente” far-nos-iam optar pelo caminho errado.

No meio da ilusão que nos envolve, acabamos de vislumbrar um laivo de verdade: se os animais são puros e saudáveis nos seus instintos, nas suas emoções e na sua inteligência básica, porque não observar o seu puro amor a Deus? Porque não guiarmo-nos por este seu instinto que – infalivelmente – busca o superior? Podia ser que, assim, a mente chegasse, por fim, a servir-nos de alguma coisa…

 

Delia Steinberg Guzmán

Extraído do livro Os Jogos de Maya. Editorial Nova Acrópole

Imagem de destaque: Gato Pixabay