“Haveria algo mais secreto, pensou, mais lento, semelhante ao comércio dos amantes, do que a resposta balbuciante que foi dando, ao longo de todos esses anos, à velha canção sussurrada das florestas, das quintas, dos cavalos castanhos parados junto ao portão…?”
“Tinha sido composto com respeito pela verdade, pela natureza, pelos ditames do coração humano, que já era raro nestes tempos de excentricidade sem escrúpulos.”
Este romance é um dos mais conhecidos por Virgínia Woolf, e o caráter andrógino do herói, semelhante à Pórcia do Mercador de Veneza ou a Serafita de Balzac, foi, entre as personagens desta autora, o que mais alcançou o público em geral, por exemplo, com o filme de mesmo nome, de 1992, ou Vita & Virgínia, de 2018, cuja relação (e mais especificamente a escritora de Joana D’Arc, ou seja, Vita Sackville West) seria a inspiração para este romance, Orlando.
Além do tema preferido, ou seja, a natureza do caráter masculino ou feminino como uma tendência psicológica que, embora enraizada no sexo, depende da atitude da alma – ou seja, que desde o natural, imposto pelas hormonas e a bioquímica, então a mente humana e os seus movimentos são determinantes nessa polarização de papéis – há muitos outros que merecem precisamente o nosso interesse.
Mas primeiro talvez devêssemos refletir sobre o modernismo no romance, que segue diretrizes muito semelhantes às que se segue na primeira metade do século XX na arte em geral (na pintura, na escultura, na arquitetura, na poesia, na música, etc.). É evidente que cada época tem as suas próprias necessidades e a alma assim as expressa e procura. E também esta, a nível individual e coletivo, deve ser sensível a certos ciclos do tempo, ou aos fluxos de chuva cósmica que a Terra nos seus giros e avanços enfrenta. O século XX começou com um imperioso, e quase animalesco, grito de querer romper com todas as normas estabelecidas e todos os cânones de beleza típicos da civilização ocidental, muitas vezes improvisando de um modo absurdo, caótico e outras copiando mal e sem sentido outros estilos de outras culturas, algumas delas, ou primitivas, ou degeneradas, cujos ritmos, sonoros ou visuais eram mais excitantes e nos permitiam mais facilmente uma fuga de um presente e uma vida, que por muitas razões, estávamos começando a odiar. É como se a mente humana (dirigida até aquele momento, para o bem ou para o mal, pela cultura do Ocidente) se fragmentasse em mil pedaços, e com ela também se quebrasse uma verdadeira estética da alma, a capacidade de assinalar, sem deformações, a Estrela do Ideal ou a Beleza Perfeita. A consequência de tudo isto, em mais cinquenta anos (porque esses processos, de raiz mental, levam tempo para chegar à superfície como efeitos palpáveis) e muito depois, tem sido a “sociedade líquida” tão bem descrita por Zygmunt Baumann, uma dissolução de todos e de tudo que nos faz prever um colapso e uma catástrofe das sociedades (com base, precisamente, como tais, nos vínculos, que são o oposto dessa liquidez que sofremos). Alguns pensadores, e com muito bom senso, chamam a isto o início infeliz da Era de Aquário, que com as suas águas dissolve tudo, e depois de toda a porcaria arrastada e o fim de um ciclo, talvez, como na Idade Média após a queda do Império Romano (que sofreu uma deterioração muito semelhante) em quinhentos ou mil anos comecemos a recuperar para um destino mais belo e glorioso do que nunca anteriormente vivido.
Nalguns lugares e mentalidades esse relógio está atrasado (aqueles que resistem ao caos, ou simplesmente estão fora dessas correntes do mundo, e de todas elas), e noutras está adiantado, ou porque são os precursores, ou simplesmente porque são os primeiros “loucos arrastados” pela lama. É curioso, por exemplo, comparar esta obra de Virgínia Woolf com outras, belas como uma rosa e cristalinas como um diamante, como Gitanjali de Tagore e outra praticamente desconhecida hoje, ambas de 1912, ou seja, 16 anos antes de Orlando. Referimo-nos a Malvaloca, um drama dos Irmãos Quintero, que pelos seus valores tradicionais, parece vir diretamente de outra galáxia. Também essa geração de diferença entre ambas as obras foi decisiva, com a Primeira Guerra Mundial no meio e depois A Belle Epoque.
A grande aceitação que tiveram as obras de Virgínia Woolf (1882-1941) deve-se a isso, porque responde muito bem a essa necessidade, a de romper com o estabelecido, que vem quebrar o espelho da mente, ou seja, o logos que é a alma-significado não só do artístico, mas da própria natureza e do ser humano por excelência. A consciência é como um fluxo que é atraído por belas ideias e por mil sensações físicas e emocionais (memórias, esperanças, medos, desejos), e agora, privado do apoio da mente, gira sobre si mesma como uma chama, ou como o fio louco de uma aranha. Não sabemos o que é antes e o que é depois, e estamos no umbral da loucura, e até entramos nela, vítimas de uma acumulação de experiências dos sentidos labirínticos, sem o fio de Ariadne. Tolstoi figurou muito bem, e com grande detalhe, este estado de sensações exacerbadas e caóticas nos momentos antes do suicídio do amante de Anna Karenina.
O impossível faz a sua aparição em cena, porque o sonhado mistura-se com o real. O sonhado, ou imaginado é de grande importância, inspira, guia o real, permite-nos desenhar pontes e entrar no desconhecido, encontra significado, ou descanso, ou propósito… pode até ser mágico e Real, com maiúsculas. Mas assim como a eletricidade corre pelo fio, mas não se mistura com ele, ou a colher na sopa, quando isso acontece… cuidado! São os momentos de entrada no inconsciente ou antes da morte ou extinção, onde nada mais importa. Os quatrocentos anos de vida na juventude de Orlando, ou o seu mudança, sem mais, de sexo, operado pela natureza, ou o seu marido sempre dobrando o Cabo Horn, ou a chegada deste na avioneta e outras várias cenas, juntamente com todas as outras em que, diretamente não sabemos onde estamos; pode fazer odiosa a leitura deste livro, que às vezes parece um jogo burlesco de significados, de palavras, de sensações, que surgem em esguichos, mesmo em estado psicadélico, que nos lembra também Fernando Pessoa, que escreveu na mesma época e sujeito aos mesmos ventos psíquicos, ou a algumas cenas de algumas das obras de Hermann Hesse em que não sabemos se viola a causalidade ou é que, no seu caso particular, entra no ocultismo.
Certamente o romance psicológico abriu-nos as portas da sensibilidade para outras dimensões, e também, da loucura, especialmente quando os pés deixam de estar firmes no chão. Talvez mais do que um romance psicológico deveríamos começar a chamá-lo de romance caleidoscópico (e sem a bela geometria do mesmo aparelho).
E ainda assim, reconhecemos com admiração os traços geniais neste quadro bizarro. A consciência voa como um ganso selvagem (com o qual a alma de Orlando se identifica), fixa o seu olhar no sol, ou mesmo nas estrelas; as reflexões e argumentações são agora surpreendentes, e este romance enche o cesto da memória com belos frutos.
Orlando é um cavaleiro da Rainha Elizabeth da Inglaterra; depois, amante febril de uma princesa russa (que encontra, ou acredita encontrá-la, quatrocentos anos depois gorda e sebosa numas grandes lojas); decorador do seu palácio e jardins e depois grande anfitrião de grandes festas; embaixador real na Turquia, onde após uma crise e sonho letárgico de uma semana, o seu sexo muda; então, cigana pastora e deambulante; nobre e escritora mais tarde, sem perder um só dos encontros das festas da sociedade e, em seguida, acolher os grandes escritores da época; casada e por fim vivendo – embora com desgosto – os anos loucos da Belle Epoque, e nas últimas páginas acreditamos que Orlando abre as portas da transcendência, sem que isto signifique a morte.
Há uma série de símbolos, anseios e experiências que percorrem, perenes e vitais o romance. O carvalho em que ele se senta, medita e espera e se funde com todas as vozes da natureza num belo e arrebatador panteísmo, carvalho cujo esqueleto e raízes vão para o passado, e que representa o Axis mundi de Orlando, nestes mais de 400 anos de vida. É como se fosse a sua própria alma real, ou a da sua família, a sua árvore genealógica nobre – que remonta aos tempos romanos e normandos – e que dá sentido ao que somos, como presente, e o que podemos ser, como futuro. O grande poema escrito e corrigido repetidamente que acompanha sempre o protagonista, recebe, precisamente esse nome, “o Carvalho”, que no século XX edita e se torna num best-seller.
O anseio é fixar a eternidade e o mistério da beleza eterna em palavras, no ritmo dos seus períodos e orações, no murmúrio sonoro da língua inglesa. A busca pelo significado do que é escrever, o grito da alma para deixar uma marca se não espiritual e eterna, sim duradoura, vem e vai, entra e sai na obra, faz as suas volutas em espiral nela, e de certa forma a sustém, como as que sustém nos seus capitéis nas colunas jónicas. E é não apenas a saudade deste livro – entregue, diz-se, como um tributo de amor à sua grande amiga e amada a quem a personagem de Orlando figura – mas de todas as suas obras, porque Virginia Woolf é uma escritora de alma, de pura e verdadeira vocação, e foi este génio que lhe permitiu na época em que viveu abrir as portas do futuro (quebrando os ossos do passado de uma forma que ainda não recuperámos).
Embora acenando ao vento legítimo do misticismo e da religiosidade natural, um hálito satírico e um certo ceticismo e até mesmo niilismo e zomba de si, da maneira socrática, dá vida a este romance. Mas noutros momentos encontramos firmes assentos, rochas profundas, reflexões de aço, licor áureo de alguns pensamentos mil vezes destilados em meditações que os transformam em quase certezas e marcos imóveis que percorrer sem se perder. Há todo um livro de prudência e ao mesmo tempo esplandecente filosofia que se entrelaça com o corpus caleidoscópico de sensações, com o fluxo da consciência e com a maior ou menor historicidade de Orlando e as suas épocas, em traços rápidos e seguros.
Reflexões sobre a vida e a sua relação com a literatura; ou o trabalho embora anónimo que se soma ao das gerações anteriores, sem alarde ou vaidade, de forma natural e simples; sobre os múltiplos eus e tempos simultâneos vividos que devem ser governados por um eu único que seja a razão e guia dessa multiplicidade incoerente (seguindo os passos de Freud e a filosofia de vida e experiências da mesma autora); uma crítica – e que tanto bem fez – ao abandono moral e intelectual da mulher de uma sociedade que só dá valor ao homem; o abismo incompreensível que medeia entre o génio e a sua revelação, e a pessoa que é o seu temporário apoio, naturezas tão diferentes e paradoxais como a madeira e a chama que nela arde; e tantos outros temas da filosofia natural, expressa por uma alma sensível de poeta e que fizeram deste livro um clássico que quase passou do limiar dos cem anos, arco do triunfo que saúda apenas as grandes obras laureadas, além da aprovação ou não dos seus contemporâneos.
José Carlos Fernández
Escritor e diretor de Nova Acrópole Portugal
Imagem de destaque: Selo da Romênia, de 2007, em homenagem a Virgínia Woolf. Creative Commons.